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Em sua edícula em SP, Celso Unzelte caça resultados perdidos do Corinthians

O jornalista Celzo Unzelte, em sua edícula no bairro do Alto do Ipiranga, em São Paulo, e seu livro "Almanaque do Timão" - Keiny Andrade/UOL
O jornalista Celzo Unzelte, em sua edícula no bairro do Alto do Ipiranga, em São Paulo, e seu livro 'Almanaque do Timão'
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Ricardo Gozzi

Colaboração para o TAB

19/05/2021 04h01

Patrícia colocou o marido pra fora. Sem briga nem escândalo, Celso baixou a cabeça e levou suas coisas para a edícula dos fundos da casa no Alto do Ipiranga, zona sul de São Paulo, onde o casal mora com os três filhos.

Corta.

- Você sabe o que seu pai fez? -, gritou certa vez um desconhecido para Daniel, o caçula do casal de jornalistas.

- Não, o que foi que ele fez? -, perguntou o menino, assustado.

"Ainda bem que eu só tinha escrito uns livros", brinca o jornalista Celso Unzelte, 53, ao recordar o episódio ocorrido anos atrás no estádio do Pacaembu. Não, não tem nada a ver com o fato de ele ter ido parar nos fundos da casa. Ou tem, em parte.

Os únicos deslizes de Unzelte são a pesada carga de trabalho e o imenso acervo acumulado na edícula ao longo dos anos. Milhares de exemplares de livros, coleções completas de revistas, jornais encadernados e gibis ocupam totalmente as paredes dos três cômodos e do corredor — isso sem contar a memorabília esportiva. Foi necessário deixar alguns itens no banheiro, ali ao lado do vaso.

O casamento com Patrícia Rodrigues segue firme, depois da mudança. O retiro de Unzelte na edícula vale somente para as horas de trabalho. Ele se encerra lá dentro todas as noites, assim que termina suas participações como comentarista nos canais ESPN e na TV Cultura. Ele também dá aula de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero.

Celso costuma ser reconhecido, no entanto, como o maior conhecedor da história do Sport Club Corinthians Paulista. Na virada do milênio, lançou o "Almanaque do Timão". Era sobre isso que o desconhecido falava quando abordou Daniel.

Publicado em 2000 sob o selo da revista Placar, da editora Abril, o livro mudou a forma com que a imprensa brasileira trata a história do futebol. Vendeu quase 100 mil cópias apenas na primeira edição e inspirou pesquisadores da história de outros clubes a se lançarem em iniciativas similares.

"Antes a história do futebol pertencia à oralidade. A transmissão de conhecimento baseava-se mais no memorialismo do que na parte documental", explica Fernando Galuppo, historiador da rival Sociedade Esportiva Palmeiras. "O trabalho do Celso revolucionou a forma de se transformar conhecimento em informação", elogia.

Pouco depois da publicação, o historiador Plínio Labriola procurou Celso com um enigma. Autor de "Resistência e rendição: a gênese do Sport Club Corinthians Paulista e o futebol oficial em São Paulo", Plínio apresentou ao jornalista uma lista que exalava mistério. Eram jogos do período varzeano da história alvinegra. Os resultados eram desconhecidos. Nem dava para saber se as partidas haviam sido realizadas. Agora, mais de duas décadas depois, o mistério começa a ser desvendado.

O jornalista Celso Unzelte, em sua edícula onde trabalha e desenha -- ele também é fã de HQs - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Desenho feito na hora pelo jornalista Celso Unzelte, em sua edícula
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Mickey Mouse, Jesus Cristo e Corinthians

Celso Unzelte vive de futebol e Corinthians, mas já quis ser desenhista de histórias em quadrinhos. Num pedaço de papel, sem esforço, ele rabisca à mão livre alguns personagens da Disney. "Era do que eu gostava mesmo", afirma. Na entrada da edícula, centenas de livros de histórias ilustradas não deixam dúvida sobre sua paixão por HQs.

Não ligava para futebol quando criança, mas já se via corintiano. "Mickey Mouse, uma imagem de Cristo com o coração nas mãos que toda casa de vó tinha e o distintivo do Corinthians estavam muito presentes na minha infância", relembra. Passou a acompanhar o Timão nas finais do Campeonato Paulista de 1977. Foi um caminho sem volta.

Entrar em sua edícula é como viajar no tempo e no espaço, através da história do esporte. É até estranho topar com a bancada onde mantém um computador e um imenso scanner. Sem ela, porém, Celso não teria como conduzir suas pesquisas com um mínimo de conforto.

"A biblioteca dele é o mais completo acervo pessoal sobre a história do futebol que conheço no Brasil", afirma Galuppo. Celso encontra o que precisa com a desenvoltura de quem sabe de cabeça onde está cada item.

Anotações feitas à mão pelo irmão de Celso para o seu livro 'Almanaque do Timão' - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Anotações feitas à mão pelo irmão de Celso para o seu livro 'Almanaque do Timão'
Imagem: Keiny Andrade/UOL

De Gigliotti aos resultados perdidos

Celso escutava um jogo qualquer do Corinthians nos anos 1970 em seu inseparável radinho de pilha quando o locutor Fiori Gigliotti sentenciou: "acaba de ser escrita mais uma bela página da história corintiana".

Que página? De qual livro?

Do pai, ouvia: "Bom mesmo era o Baltazar, que fazia muito gol de cabeça".

"É mesmo, pai. Quantos gols de cabeça ele fez?"

"Não sei. Ninguém contou."

Em 1991, ao produzir uma edição especial da Placar sobre os grandes clássicos do Brasil, Celso teve a primeira amostra dos problemas que encontraria adiante. Entre os grandes clubes paulistas, Santos e São Paulo mantinham registros organizados de todos os jogos que ambos haviam disputado, mas Corinthians e Palmeiras eram rivais até na desorganização.

Celso procurou Antoninho de Almeida, na época um arquivo vivo da história do time. Ao perguntar sobre as súmulas dos jogos do Corinthians, ouviu uma resposta atravessada: "Não tem nada disso aqui, não".

Diante disso, o corintiano Celso Unzelte e o palmeirense PVC (Paulo Vinícius Coelho) aproveitaram os acervos de Santos e São Paulo para compilar os retrospectos dos jogos entre os dois clubes e dos confrontos de ambos contra Corinthians e Palmeiras. Na hora de pesquisar Corinthians x Palmeiras, precisaram recorrer a fontes alternativas.

Também encontrou empecilhos ao perfilar Roberto Rivellino. "Eu queria colocar quantos jogos e quantos gols o Rivellino tinha feito com a camisa do Corinthians. Ninguém tinha essa informação", relata.

Resolveu então aproveitar o fato de muitos jogadores estarem vivos para contar a própria história e colocar um ponto final às dúvidas.

A compilação de dados para a primeira edição do "Almanaque do Timão" começou em 1995. O trabalho de Paulo Roberto Unzelte foi fundamental. Quando a internet ainda engatinhava, o irmão mais novo de Celso ia atrás dos arquivos físicos disponíveis, anotava os resultados à mão e os levava até ele. Quando o trabalho parecia concluído, entretanto, Labriola levou a Celso o mistério dos resultados perdidos.

O assunto só ganhou publicidade em 2005, quando a segunda edição do almanaque chegou às bancas. "Quando saiu a primeira edição, em 2000, fui conferir esses jogos, vi que não estavam ali e repassei minha lista ao Celso", recorda o historiador Plínio Labriola. "Aqueles jogos sem resultado não eram o foco da minha pesquisa."

Celso chegou a se debruçar sobre jornais do período dos jogos listados, quase todos do início da década de 1910. Depois de algum esforço inicial, porém, a busca cessou. Estava desiludido. "Achava que não ia encontrar mais", admite.

O jornalista Celso Unzelte, em sua edícula no bairro do Alto do Ipiranga, em São Paulo - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Rivalidade, ironia e reviravolta

Passaram-se anos sem que nada fosse descoberto. Até que, em novembro de 2019, Galuppo procurou Celso. O historiador palmeirense havia trombado com um recorte d'A Gazeta Esportiva de dezembro de 1948.

No texto, João Murino, um dos sócios-fundadores do Corinthians, mencionava como um grande feito dos primórdios mosqueteiros a vitória por 1 x 0 sobre o Esporte Clube Argentino, então campeão da Liga da Várzea do Carmo. Um resultado desconhecido acabara de ser descoberto! E justamente pelo historiador do maior rival.

Diante da ironia, é inevitável imaginar uma troca de informações permeada de gozações. A relação entre Celso e Fernando, porém, é de respeito e até mesmo de certa reverência um pelo outro. Ainda que as cores clubísticas e a opinião sobre jogos de torneio-início possam dividi-los, algo mais forte os une. "Só uma coisa me encanta mais que o Corinthians: a história do futebol em geral", afirma Celso.

Segundo Galuppo, o resultado foi encontrado por acaso. "No nosso trabalho a gente procura ter um olhar especial para essas matérias memorialistas. Como existe um espírito de colaboração entre quem pesquisa a história do futebol, a primeira reação foi avisar o Celso", explicou.

O jornalista Celso Unzelte, em sua edícula no bairro do Alto do Ipiranga, em São Paulo - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Imagem: Keiny Andrade/UOL

A troca não se limita aos pesquisadores de Corinthians e Palmeiras. "É assim também com o pessoal que estuda o Santos, o São Paulo. Os olhos dessas pessoas brilham, quando falam disso", afirma Celso, que em 2009 lançou "Grande Jogo - o maior duelo alvinegro do futebol contado por dois historiadores fanáticos", escrito a quatro mãos com o santista Odir Cunha. Com Mario Sergio Venditti, Unzelte assina também o "Almanaque do Palmeiras".

Quase simultaneamente à descoberta de Gallupo, o anúncio da digitalização do acervo do Fanfulla, jornal da comunidade italiana de São Paulo com grande circulação entre o fim do século 19 e o início do século 20, provocou uma reviravolta nos trabalhos de Celso.

O acesso ao acervo não só permitiu a descoberta de vários desses resultados perdidos como revelou a existência de jogos cujos registros permaneceram escondidos no fundo do baú da história por mais de um século. Foram pelo menos sete descobertas, em 2021.

Celso vê cada nova informação como uma demão adicional de tinta em uma obra sem prazo para acabar. Cada uma dessas partidas é devidamente adicionada ao Almanaque do Timão, que desde 2014 é um aplicativo. Ele acredita que o Fanfulla é a última esperança de encontrar os resultados perdidos. E ainda não terminou de contar quantos gols Baltazar marcou de cabeça.