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A jornada de Abdullah, líder espiritual muçulmano mais jovem do Brasil

Imã Abdullah no jardim da parte externa da mesquita, criado no início da pandemia - Camila Svenson/UOL
Imã Abdullah no jardim da parte externa da mesquita, criado no início da pandemia
Imagem: Camila Svenson/UOL

Isabela Mena

Colaboração para o TAB

20/05/2021 04h00

Tirando a pouca idade -- 22 anos -- o jeitão do teólogo Abdullah se encaixa no imaginário do que se espera de um líder espiritual: é estudioso e profundo conhecedor dos ensinamentos de sua fé; tem linguagem gestual pausada, seu tom de voz é tranquilo, quase monocórdio; trata seus interlocutores com formalidade e deferência -- durante as entrevistas, se dirigiu à repórter sempre pelo pronome de tratamento "senhora".

Abdullah é o imã (ou imam, em árabe) -- como são chamados os líderes espirituais da religião islâmica -- mais jovem do Brasil, função que assumiu em 2017, aos 19 anos, na Mesquita Sumayyah Bint Khayyat. O fato de a mesquita ficar dentro da favela da Guaiçara, no Jardim Cultura Física, em Embu das Artes (SP) e ter sido criada pelo líder comunitário e cultural César Kaab, 47, um dos precursores do movimento hip hop nas quebradas de São Paulo e muçulmano inspirado em Malcolm X, dá contornos ainda mais interessantes à sua trajetória.

Baiano de Vitória da Conquista, ele tinha um mês de vida quando se mudou para a cidade de Santa Isabel, na região metropolitana. De família humilde e sem instrução -- seu pai é pedreiro e sua mãe, costureira -- Abdullah, cujo nome de registro é Antônio Marcos Souza (não há problema em chamá-lo dessa forma), conta que tanto sua personalidade introspectiva quanto sua paixão pela leitura vêm desde a infância. Na adolescência, chegou a ganhar um prêmio pela quantidade de livros que emprestava da biblioteca da escola. Foi lá, no penúltimo ano do ensino médio, que encontrou "Os conflitos do Oriente Médio", de François Massoulie, obra que o apresentou ao mundo árabe. "É um livro sobre história, não sobre religião ou Islam. Gostei muito e li o glossário para ver as referências. Fui para a internet, escrevi 'oração islâmica' e fiquei interessado. 'O que será isso?', diz Antônio.

No ano seguinte, se mudou com o pai e o irmão para uma cidade do interior de São Paulo, São José do Rio Pardo, para morar com a avó. Releu várias vezes o livro de Massoulie, que ganhou do amigo Marcos Aurélio, 23, também rato de biblioteca, parceiro de leituras na escola e na recém-descoberta do islam.

A fachada da mesquita Sumayyah Bint Khayyat - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
A fachada da mesquita Sumayyah Bint Khayyat
Imagem: Camila Svenson/UOL

Na mesma sintonia

Sem grana para comprar um celular e com raro acesso à internet, Antônio não teve contato com Marcos durante o período em que esteve fora de Santa Isabel. Quando voltou, em 2015, e foi visitá-lo, o encontrou ouvindo o Alcorão. Eles não sabiam, mas ambos conservavam o interesse pelo islamismo. Passaram a estudar juntos. Descobriram, no YouTube, o canal Cordoba Internacional, que ensina a língua árabe. Aqui, acontece um ponto de inflexão na vida de Antônio: o gosto pela aprendizagem e o rápido domínio de outros idiomas o tornaram fluente em árabe clássico, cultura fundamental de um imã. "Esse é um ponto que acho bonito da minha formação, em parte autodidata, que é conhecer não o árabe coloquial, mas o clássico. Esse é o árabe do Alcorão, que permite conhecer a religião a fundo", fala.

Hoje, ele ensina o árabe clássico para cerca de 10 alunos na Mesquita Sumayyah (com rearranjos online, por conta da pandemia), como uma de suas atribuições como líder espiritual. E estende as aulas de idiomas para o Telegram, em dois canais. Em um, para quase 100 pessoas, dá aulas de árabe clássico. Em outro, com 26 alunos, ensina hebraico, língua em que, assim como o russo, está se iniciando. "Embora ainda esteja aprendendo, fiz um curso online que me torna apto a ensinar o hebraico simples para iniciantes", diz ao TAB.

Antônio tem ainda um canal no YouTube, chamado Conhecimento Benéfico. "É o primeiro canal em língua portuguesa sobre jurisprudência islâmica", diz. Tem também uma página no Facebook (fora do ar temporariamente) na qual ensina sobre o islã, e um perfil Instagram, que usa de forma mais comedida -- segue apenas 10 pessoas e é seguido por 500, um número baixo para a rede. Embora utilize a tecnologia como um típico jovem da geração Z (ele nasceu em 1998), a presença de Antônio nas redes sociais é como líder religioso. Um imã post-millennial com jeitão de teólogo tradicional.

Muçulmanos da mesquita Sumayyah durante o Ars, oração da tarde, às 15h10, período em que um objeto e sua sombra têm o mesmo tamanho - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
Muçulmanos da mesquita Sumayyah durante o Ars, oração da tarde, às 15h10, período em que um objeto e sua sombra têm o mesmo tamanho
Imagem: Camila Svenson/UOL

A escolha do nome

Voltemos a 2015, ano em que Antônio fez a chamada reversão ao islamismo (shahada, em árabe), o testemunho de fé que o tornou oficialmente muçulmano. A mudança de nome aconteceu na mesma época, em uma conversa com o amigo Marcos. Sua primeira escolha não foi Abdullah, mas Muhammad. "Pensei melhor e achei que iria me sentir estranho ouvindo as pessoas me chamando pelo nome do profeta", diz Antônio. "Escolhi então Abdullah, que significa servo de Deus, sem ainda saber que o nome completo do profeta é Muhammad Bin Abdullah. As pessoas brincavam dizendo que fugi de um nome para cair em outro que era o mesmo", conta. Marcos escolheu Fahid, que significa onça, puma.

Abdullah tem formação, no islamismo, em duas instituições de ensino: no Centro Cultural Islâmico Brasileiro, no bairro do Cambuci, em São Paulo, entre os anos de 2018 e 2019 e na Zad Academy, da Arábia Saudita, em que fez um curso EaD (Educação à Distância), de 2019 a 2020. Até chegar às formações com diploma, aprendeu a religião na prática (e estudando sozinho) pela passagem em algumas mesquitas. Na de Mogi das Cruzes, morou e teve contato com muçulmanos árabes, o que o ajudou na fluência do idioma; na do Brás, ganhou o primeiro lugar em uma prova de recitação do último capítulo do Alcorão; na do Pari, trabalhou no serviço de limpeza e tradução, já que o sheiki local não falava português. Esteve ainda em uma mesquita em Goiás, trabalhando em um abatedouro islâmico, até que chegou à Sumayyah, em Embu das Artes, na qual tornou-se imã, a convite de César.

O imã Abdullah, 22 - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
O imã Abdullah, 22
Imagem: Camila Svenson/UOL

César e Abdullah parecem ser figuras contrastantes. O imã é magro e seus 1,65 ficam longilíneos sob a túnica árabe, sua vestimenta habitual. A barba longa, uma obrigatoriedade da religião islâmica (a não ser que o homem seja desprovido de pelos), é castanha. César é um homem grande, de braços tatuados (fora o rosto, essa é a única parte do corpo masculino que um homem muçulmano pode deixar à mostra) e barba branca, duas características que denunciam parte da história de seus 47 anos. No dia da entrevista, vestia uma camiseta esportiva e com referência aos malês, criada por um "irmão", tratamento comum entre os muçulmanos. E andava de lá para cá organizando as demandas da mesquita, falando alto, brincando. Sua linguagem é a de quem conhece a rua, entrecortada por gírias. Seu olhar, amoroso.

Relógio, na sala de oração dos homens, pelo qual acompanha-se, de acordo com o fuso de  São Paulo, as seis orações diárias da religião islâmica: Fajr (alvorada), às 5h; Zuhr (meio dia), horário em que o sol está à pino; Asr (tarde), horário em que um objeto e sua sombra estão do mesmo tamanho;  Maghib (pôr-do-sol), horário em que o sol acabou de se pôr mas ainda está claro e Isha (noite),  uma hora depois do pôr-do sol - Camila Svenson/ UOL - Camila Svenson/ UOL
Relógio, na sala de oração dos homens, pelo qual acompanha-se, de acordo com o fuso de São Paulo, as seis orações diárias da religião islâmica: Fajr (alvorada), às 5h; Zuhr (meio dia), horário em que o sol está à pino; Asr (tarde), horário em que um objeto e sua sombra estão do mesmo tamanho; Maghib (pôr-do-sol), horário em que o sol acabou de se pôr mas ainda está claro e Isha (noite), uma hora depois do pôr-do sol
Imagem: Camila Svenson/ UOL

De Malcolm X a Steven Seagal

A trajetória de César já foi contada algumas vezes. Em 1987, já morador de Embu das Artes, ele conheceu o hip hop e passou a fazer parte do movimento da cultura de rua de São Paulo, organizando grupos de rima, grafite e poesia, tanto no centro como na quebrada. Teve mais de uma banda, clipe veiculado na MTV e abriu, com seu grupo, o show do rapper americano Ja Rule. Montou uma biblioteca chamada Zumaluma, iniciais de Zumbi do Palmares, Malcolm X, Luther King e Mandela, que se tornou um importante centro de produção e divulgação cultural para moradores de favela. Seu apelido, na época, era "vulto", por estar em vários lugares ao mesmo tempo. Corriam os anos 90. Malcolm X já era para ele uma referência importante de vida, e o islamismo acontecia paralelamente a tudo isso, mas aos poucos.

Muita água correu em sua história até 2006, ano em que fez a shahada e se tornou muçulmano, e também até 2012, ano em que abriu uma pequena mussala na favela do Guaiçara. Em uma mussala, não há pessoas para fazer o sermão de sexta-feira (khutbah) nem obrigações em relação às orações. Trata-se de uma sala de oração com regras diferentes das de uma mesquita. "Nessa época, parei de beber, de fumar e deixei de ser vulto. Comecei a postar novas ideias nas redes sociais, sobre o islamismo, e atrair o interesse de quem já me seguia por ser do rap e por ser líder comunitário", conta César. "Em certo momento, havia 12 pessoas rezando em um espaço em que cabiam oito. Era muito bonito ver as pessoas chegando".

César Kaab na sala de oração segurando o masbarrah, objeto usado para fazer súplicas a Deus - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
César Kaab na sala de oração segurando o masbarrah, objeto usado para fazer súplicas a Deus
Imagem: Camila Svenson/UOL

Na mussala está o embrião da mesquita Sumayyah, criada por ele em 2013, e que funciona desde 2016 em uma sede maior. Abdullah chegou no ano seguinte, como estudante, em busca de formação. "Ele é muito estudioso e focado, está sempre procurando conhecimento. Um dia, propus a ele que começasse a fazer o sermão de sexta-feira e daí a se tornar imã foi algo natural", conta César. "O Abdullah é uma pessoa de bom coração e muito justa, que segue os parâmetros religiosos sem tirar uma vírgula. Ele tem um grande amor pela religião, mas sem fanatismo, porque aqui tomamos muito cuidado com o fanatismo que leva à insanidade. Tem que ser suave, Deus é leve", diz César.

Depois de algum tempo ouvindo e observando Abdullah e César, fica clara a complementaridade das duas lideranças -- espiritual e comunitária -- na condução da mesquita, mas os contrastes entre os dois parecem se borrar. Ao contar que pratica aikido, em parte, porque sempre admirou o ator nort-americano Steven Seagal, o imã mais jovem do Brasil é também o cara que troca ideia com um brother sobre filmes de arte marcial. Mesmo que, no seu vocabulário formal, a gíria seja trocada por "irmão".