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Gisberta, a transgênero brasileira que pode virar nome de rua em Portugal

Gisberta Salce - Coletivo Panteras Rosas/ Reprodução
Gisberta Salce Imagem: Coletivo Panteras Rosas/ Reprodução

Adriana Negreiros

Colaboração para o TAB, do Porto (Portugal)

21/05/2021 04h00

"Ai, meu Deus." Rute Bianca parou tudo o que estava fazendo para se concentrar no noticiário da TV.

O corpo de "um homem com mamas", dizia o locutor, havia sido retirado do fundo do poço de um esqueleto de construção próximo ao centro do Porto, cidade da região norte de Portugal. Não se sabia nada sobre a vítima, a não ser aquilo que parecia embaralhar a mente do repórter, em fevereiro de 2006 — se tinha genitália masculina, por que aqueles peitos? Como exibia um rosto tão delicado, tão perturbadoramente feminino?

"Ai, ai, meu Deus." Quanto mais a notícia corria, mais Rute Bianca lamuriava-se. "Não me digam que é minha Gisberta."

Rute andava preocupada com a amiga, da qual não tinha notícias havia mais de um mês. Gis, como era conhecida a paulista de 45 anos, tornara-se popular na noite do Porto por suas performances como dubladora das cantoras Daniela Mercury e Ivete Sangalo.

Fora justamente o gosto pelos palcos que aproximara as duas — Rute também era artista, uma estrela dos números de strip-tease. Uniram-se, para além da arte, no sofrimento. Ambas mulheres transgênero, protegiam-se dos olhares enviesados, insultos, agressões e abordagens policiais que, não raro, terminavam com ordens algo pervertidas para que ficassem nuas, mostrassem se tinham pênis ou "cona", termo vulgar para vagina, em Portugal.

Claro, Gisberta enfrentava problemas, mas o que eram aqueles achaques comparado ao que se submetiam os conhecidos no Brasil? Era o que dizia para as amigas: por pior que fosse o preconceito na Europa, pelo menos ali pareciam reduzidas as chances de ser vítima de um crime de ódio. Deixara o país apavorada com os casos, cada vez mais frequentes, de assassinatos de homens e mulheres trans. No Porto, em meio aos jardins floridos, palacetes e raios de sol — apesar do frio —, sentia-se segura. De mais a mais, ainda podia assistir na televisão às novelas do Brasil.

'Meu Deus, é minha Gisberta'

No dia seguinte à notícia, Rute Bianca, hoje aos 61 anos, compareceu ao Instituto Médico Legal do Porto e pediu para ver o corpo do "homem com mamas" sobre o qual só se falava em toda esquina. Manifestou a suspeita de que se tratasse da melhor amiga, Gisberta — ou Gisberto Salce Júnior, como informavam os documentos. Na sala de identificação, pôs-se diante de um enorme saco branco, cujo zíper foi delicadamente aberto pelo funcionário da repartição, deixando à mostra uma cabeça com cabelos loiros, os olhos ainda abertos, azuis, "como a olhar para o infinito", nas palavras de Rute Bianca.

"Ai, ai, meu Deus. É minha Gisberta."

Quis observar o cadáver por inteiro, pôr os olhos sobre aquelas pernas e braços de aparência tão frágil, fininhos, "sem um único traço masculino", como Rute gostava de repetir. O funcionário a alertou de que a visão seria aterradora. Ela insistiu. O saco foi aberto até os pés de Gis, descortinando pescoço, mãos, barriga e coxas com feridas recentes, cortes abertos, hematomas, queimaduras de cigarro. "Ai, ai, a minha Gisberta está toda partidinha, machucada a pau, estropiada", chorou a amiga.

Gisberta Salce - Coletivo Panteras Rosas/ Reprodução - Coletivo Panteras Rosas/ Reprodução
Gisberta Salce
Imagem: Coletivo Panteras Rosas/ Reprodução

No fundo do poço

O assassinato de Gisberta em 22 de fevereiro de 2006 chocou uma cidade pacata. Àquela altura, ainda não havia passado pelo processo de revitalização responsável por transformá-la em um dos principais destinos turísticos da Europa. O estupor aumentava à medida que detalhes sobre o crime vinham à tona. Durante uma semana, 14 adolescentes com idades entre 12 e 16 anos, em revezamento, torturaram-na no edifício inacabado onde instalara uma tenda para viver clandestinamente.

No primeiro dia, atiraram-lhe pedras à cabeça. Ela caiu e, quando tentou se levantar, foi derrubada com uma rasteira. Os garotos arrancaram suas calças. Espancaram-na com pedaços de pau da obra abandonada, enfiaram-lhe estacas pelas reentrâncias. No segundo dia, um dos garotos, de quem cuidara na infância (a mãe dele trabalhava como prostituta e Gis fazia as vezes de babá da criança), alertou os amigos de que deveriam tomar cuidado ao tocar na mulher, pois ouvira falar que era soropositiva. A cabeça dela estava suja de sangue, já ressequido, por causa das agressões da véspera. Recebeu ordens para manter-se de pé. Não conseguiu e, como castigo, levou mais chutes e pontapés.

No terceiro dia, sábado, os garotos encontraram Gis dormindo, deitada de lado, protegendo-se do frio do inverno europeu com um cobertor. Acordaram-na com chutes no abdômen, puxaram a coberta; embora fraca, ela começou a chorar compulsivamente. Pediu ajuda, implorou para que mandassem vir uma ambulância. Em vez disso, os jovens derrubaram a tenda que lhe servia de abrigo.

No domingo, quando retornaram, viram-na gemendo. Recomeçaram as agressões. Deixaram-na seminua, apesar da temperatura baixa. Na terça-feira, perceberam que Gisberta parecia estar na mesma posição da véspera, como se não houvesse se mexido desde então. Continuava sem calças, tinha as pernas encolhidas, exalava odor fétido, não respondia às agressões. Concluíram que estava morta. Decidiram voltar no dia seguinte, quarta-feira, dia 22, para atirá-la no fundo do poço do prédio em obras. Ocorre que estava viva, agonizante. Morreu não da queda de cerca de 15 metros, mas de afogamento em águas rasas, como concluiria a autópsia.

No mesmo dia, um dos meninos, em suposta crise de consciência, confessou o crime a uma das professoras da escola pública onde estudava. A polícia foi acionada, e o corpo, retirado do fundo do buraco.

Dos 14 envolvidos na barbárie, 13 foram condenados a internação de no máximo um ano e um mês em centros educativos. O mais velho, de 16 anos, recebeu pena de oito meses de prisão. Nenhum deles foi julgado assassino. Afinal, argumentou o juiz, a vítima morreu afogada. Como se a culpa pela morte não fosse dos jovens, mas da água.

Gisberta Salce - Coletivo Panteras Rosas/ Reprodução - Coletivo Panteras Rosas/ Reprodução
Gisberta Salce
Imagem: Coletivo Panteras Rosas/ Reprodução

Gisberta Salce: com ou sem Júnior?

Conhecida em vida nos inferninhos para o público LGBTQI+ do Porto, Gisberta tornou-se nacionalmente famosa após morrer. Em resposta ao brutal assassinato da brasileira, ativistas locais promoveram a I Marcha do Orgulho do Porto, que a partir dali passaria a fazer parte do calendário de eventos da cidade. Coletivos, associações e grupos de estudo foram criados por todo o país. O músico português Pedro Abrunhosa compôs uma canção, "Balada de Gisberta", que seria gravada por Maria Bethânia no álbum "Amor Festa Devoção".

O nome Gisberta tornou-se uma marca; a bela estampa da artista, cujas fotos foram recolhidas com familiares e amigos e reproduzidas pelo coletivo Panteras Rosas, tornou-se símbolo de resistência. "Era importante dar-lhe um rosto", explica o ativista Sergio Vitorino, um dos fundadores do Panteras.

Mais do que um rosto, ativistas do movimento LGBTQI+ têm defendido, nos últimos 15 anos, que Gis ganhe uma rua. As duas primeiras tentativas fracassaram. A terceira, lançada em março deste ano, reúne uma atriz portuguesa, Sara Barros Leitão, e os organizadores da Marcha do Orgulho do Porto. É uma campanha mais robusta do que as anteriores, porque envolve ampla participação popular. Um abaixo-assinado a ser entregue em julho à Comissão de Toponímia da cidade reúne, até o momento, cerca de seis mil assinaturas.

Ao que indicam declarações recentes da deputada Isabel Ponce de Leão, diretora da comissão responsável por dar nomes às ruas, a proposta será rejeitada. "A pessoa, em si, nada fez pelo Porto", disse, a respeito da brasileira, em frase reproduzida pelos jornais portugueses. O cientista político Allan Barbosa, integrante do coletivo Queer Tropical, tem resposta para a provocação de Leão. "Foi, e ainda é, a memória de Gisberta que faz com que dezenas de ativistas lutem por uma cidade mais igualitária e segura", afirma. "É um estado de cegueira, uma resistência ideológica. A cidade não quer lidar com o fato de que o crime aconteceu aqui", avalia Sergio Vitorino.

Fechados na convicção de que Gis merece a homenagem, o ativismo divide-se quanto à forma como o nome deve ser escrito. No abaixo-assinado e nas intervenções artísticas simulando placas que se espalham pelo Porto, ela é chamada de Gisberta Salce Júnior. Há, no entanto, quem defenda a exclusão do agnome. Para a historiadora da arte, curadora e poeta brasileira Hilda de Paulo, criadora do projeto Arquivo Gis (@arquivogis) e moradora do Porto, a manutenção do "Júnior" reforça discursos de ódio — e desrespeita a memória da própria Gisberta, que em cartas assinara como "Gisberta Salce".

"Júnior está costurado ao patriarcal. Logo, ao modo capitalista de nome familiar, da transferência de poder entre homens, do pai para o filho. Há aí uma perspectiva colonial", critica De Paulo, para quem falta aos portugueses uma compreensão sobre "a complexidade do Júnior no Brasil".

"Ainda estamos abertos a essa discussão", afirma o português Filipe Gaspar, um dos organizadores da Marcha do Porto e integrante da associação Saber Compreender, de apoio aos sem-abrigo da cidade. "Quem era próximo a ela informa que se apresentava como Gisberta Salce Júnior. Consideramos importante sua própria autodeterminação, mas reconhecemos que há uma questão ideológica a ser discutida", explica Gaspar.

Gisberta Salce - Coletivo Panteras Rosas/ Reprodução - Coletivo Panteras Rosas/ Reprodução
Gisberta Salce
Imagem: Coletivo Panteras Rosas/ Reprodução

Amor pelos cães

Gisberta era transgênero, imigrante, sem-teto, soropositiva, dependente de drogas e, nos últimos tempos, trabalhadora do sexo. Embora dura e exaustiva, Gis teve, durante boa parte dos vinte anos em que viveu em Portugal, uma rotina relativamente organizada.

Pagava as contas com os cachês dos shows e com o ordenado de vendedora de lojas de roupas do Porto. Morava em uma casinha minúscula no centro da cidade, na companhia de um casal de cães da raça yorkshire, Carolina e Leonardo. Para os animais, dispensava quase todo afeto de que dispunha — não queria saber de namorados, bastavam-lhe os bichinhos. Eram, costumava dizer, os verdadeiros amores de sua vida.

Então Leonardo caiu doente. Morreu dias depois de apresentar os primeiros sintomas do mal-estar. Sobrou-lhe Carolina, mas não por muito tempo — certo dia, a cadelinha escapou pela porta, correu na direção da rua e foi atingida por um veículo. Não resistiu ao atropelamento. Com a partida dos cachorros, Gis caiu em depressão. Passou a consumir drogas. Quando a angústia se intensificou, experimentou crack. Tornou-se dependente, desfez-se dos poucos bens para sustentar a dependência. Entrou na prostituição.

Gisberta Salce - Coletivo Panteras Rosas/ Reprodução - Coletivo Panteras Rosas/ Reprodução
Gisberta Salce
Imagem: Coletivo Panteras Rosas/ Reprodução

Contraiu o vírus HIV. Ficou fisicamente debilitada. Já não era mais chamada para shows e recusava-se a cuidar da saúde. Doenças oportunistas destruíam-lhe as forças: pneumonia, tuberculose, candidíase. Nos últimos dias de vida, quando se abrigara em segredo no esqueleto de uma obra abandonada, lidava com febres altas, anemia, falta de ar. Não tinha energia para lutar contra os inimigos, fugir, correr em busca de socorro.

Como na música de Abrunhosa, cantada por Bethânia:

Trouxe pouco
Levo menos
A distância até ao fundo é tão pequena
No fundo, é tão pequena
A queda