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A jovem psicóloga que acompanha vida e morte no hospital Tide Setubal

A psicóloga Georgea Michelucci Caamaño, que trabalha no Hospital Tide Setubal, na zona leste de São Paulo - Breno Damascena/UOL
A psicóloga Georgea Michelucci Caamaño, que trabalha no Hospital Tide Setubal, na zona leste de São Paulo
Imagem: Breno Damascena/UOL

Breno Damascena

Colaboração para o TAB, de São Paulo

04/06/2021 04h01

Pela fresta da porta dá para contar oito leitos ocupados por pacientes em estado grave. Entre eles, uma menina de 17 anos, inconsciente, há dias entubada, sobrevive graças aos aparelhos de suporte. Quilômetros longe dali e sem poder visitar a adolescente, os pais enviam uma mensagem esperançosa à filha.

A notificação subiu no celular de uma funcionária do hospital. Em uma gravação otimista e emocionada, a família pedia que o áudio de quatro minutos fosse colocado no ouvido da jovem, mesmo desacordada. Georgea Michelucci Caamaño ficou encarregada da missão. Ela é psicóloga hospitalar do Hospital Tide Setubal, referência no atendimento à covid-19 na zona leste de São Paulo.

De olhos sorridentes, voz mansa e dicção notável, Georgea lida com as dúvidas e aflições dos familiares e pacientes de UTI. Especializada em psicologia hospitalar, a jovem de 25 anos tem encarado de forma intensa o sofrimento humano e a incerteza. Nos atendimentos, ela se torna um bote salva-vidas no mar de angústia que os enfermos vivem.

"Na UTI, parece que toda a subjetividade se perde. Ofereço escuta e atuo para ajudar a organizar os conteúdos internos. Isso faz com que os pacientes tenham uma melhora psíquica e aceitem melhor os tratamentos", explica Georgea, em bom "psicologês", de dentro da sala da psicologia, um cômodo pequeno instalado harmoniosamente ao lado da capela dos funcionários.

Há pouco mais de um mês, a sala de clima gélido abrigava três funcionárias. Hoje, só Georgea desempenha essa função, enquanto o hospital trabalha para contratar substitutas. Todos os dias, ela cumpre uma rotina nas primeiras horas da manhã, quando chega à instituição e recebe um documento com seis páginas, cada uma delas referente a uma sala de UTI, contendo nomes e informações médicas dos pacientes.

A psicóloga Georgea Michelucci Caamaño, que trabalha no Hospital Tide Setubal, na zona leste de São Paulo - Breno Damascena/UOL - Breno Damascena/UOL
Imagem: Breno Damascena/UOL

Sentada na mesa que suporta o único computador da sala, a psicóloga usa uma caneta marca-texto para grifar o nome dos pacientes com que ela vai conversar durante o dia. Em alguns nomes, marca um "F" na frente, para lembrá-la que aquele diálogo é com a família, não com o internado. Ao passar os olhos pelos nomes, lamenta, em voz alta, a morte de uma paciente de 43 anos e se entristece ao ver que outro, de 23, teve de ser intubado.

Na lista, boa parte dos internados tem entre 30 e 40 anos — alguns têm 20, ou menos. A diretora de enfermagem do hospital, Aleksandra Diniz Montanher, tem observado diariamente a queda na idade dos que recorrem à UTI. Há cada vez mais jovens precisando de tratamento intensivo.

O Tide Setubal é o maior hospital da região e passou por reforma recentemente, pelo Projeto "Lean nas Emergências", tocado pelo Hospital Sírio-Libanês via SUS. Os sete leitos de UTI de antigamente viraram 75, exclusivos para pacientes de covid-19, mas o hospital continua atendendo como maternidade, unidade de pediatria e obstetrícia.

Outras especialidades não existem mais no Tide Setubal, como saúde mental e clínica cirúrgica. Hoje são 800 profissionais de enfermagem e 180 médicos atendendo vítimas da doença que chegam pela porta da frente ou transferidas de outros hospitais, muitas vezes em estado bastante grave.

No dia em que a reportagem do TAB esteve no Tide Setubal, 70 leitos de UTI estavam ocupados e quatro já estavam reservados. Mesmo assim, à porta e na calçada, uma dúzia de pessoas aguardava atendimento. Um homem com tosse seca e olhar ansioso conversava com o segurança enquanto esperava sua vez.

Ainda ali, do lado de fora, as atenções se voltam de repente para o forte barulho de freio e o cheiro de pneu queimado. Do carro parado desce um homem ofegante, sem máscara, com a camisa que vestia enrolada na mão esquerda, empapada de sangue. Ele passa direto pela fila e entra no pronto-socorro.

Diante dos números do colapso, na cidade onde mais morrem infectados pela covid-19 no Brasil, o hospital por vezes é tomado de uma aparente calmaria. É efêmera, contudo. No segundo andar, a sala da psicologia permanece sempre aberta para receber quem sentir que precisa de consolo. Antes mesmo de deixar seus pertences na sala, Georgea já é chamada por uma funcionária do hospital.

É um diálogo sobre um boletim de agravo, um comunicado à família que acontece quando o paciente sofre uma piora. A psicóloga conta que faz, em média, 250 atendimentos por mês — de informes sobre doentes que serão entubados a acompanhamento de familiares que precisam fazer o reconhecimento do corpo, passando por pais que querem conversar depois de ouvir uma atualização do médico sobre a saúde do seu filho.

A psicóloga Georgea Michelucci Caamaño, que trabalha no Hospital Tide Setubal, na zona leste de São Paulo - Breno Damascena/UOL - Breno Damascena/UOL
Imagem: Breno Damascena/UOL

Georgea parece conhecer todos os pacientes pelo nome e pelas dores que sofrem. Em uma das várias visitas à UTI, ela é interceptada pela mãe de um paciente. No corredor do hospital, sentam-se a uma cadeira de distância para que a mulher desabafe.

"Sempre me dediquei a estudar psicologia hospitalar e atender pacientes nas UTIs, mas, nas salas de aula, ninguém me ensinou sobre uma pandemia. Então quando começou, foi um baque", lembra Georgea. "A morte vive escancarada aqui. Na UTI, o paciente entra em contato com a finitude e com a percepção do quão vulnerável, nós, seres humanos, somos."

A finitude é apenas umas das percepções, ela prossegue. Longas internações afetam a autoimagem, ao ponto de a pessoa não se reconhecer mais no próprio corpo. "Outros pacientes deixam muito claro o medo de morrer e não voltar para casa ou mesmo de não dar um último abraço em quem amam. Cada um deles tem uma história e precisa de uma atenção especial", diz Georgea.

A dor dos outros

Ter que lidar com o calvário de tantos tornou Georgea mais dinâmica e flexível. É ela quem intermedeia, com o suporte da ONG ImageMagica, as videoconferências entre pacientes e familiares que estão longe e não podem entrar na UTI. "O tom da minha fala e o que eu vou dizer deve ser adequado ao que o paciente ou familiar está sentindo", justifica. A fala é cortada pelo som estridente vindo do telefone fixo, ao lado do computador. Do outro lado da linha, mais uma solicitação para um paciente que precisa de atenção.

"É inevitável não sentir tantas perdas", admite Georgea. "Sou testemunha do sofrimento de muita gente, é uma pressão diária. Mas este é o meu trabalho, tento lidar com isso da melhor forma possível. Em meio a tantas dores, quero estar lá para acolher." Ela afirma que busca se blindar do que vê e ouve durante os atendimentos, mas assume que já chorou em casa e assistindo ao noticiário, ao ver a crise que o país está atravessando.

Georgea se lembra do caso de um homem e seu filho, ambos internados por covid-19 na UTI do Tide Setubal. A psicóloga teve a oportunidade de conversar com os dois, mas pai e filho morreram. Algum tempo depois, o outro filho deste homem, um adolescente de 15 anos, foi ao hospital lhe entregar um tsuru (origami de uma ave sagrada no Japão) para agradecer pelo acolhimento.

Ela própria faz terapia e diz contar com suporte familiar e do hospital, mas a psicóloga afirma que os pacientes também lhe dão ânimo extra. "São pessoas que querem muito viver. Quando vejo uma recuperação difícil, tenho mais vontade de continuar."

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Imagem: Breno Damascena/UOL

Divã como sala de espera

Antes de entrar nas UTIs, Georgea veste óculos, roupa de proteção, duas máscaras e uma touca para cobrir o cabelo. Após chegar do almoço, feito em poucos minutos, ela começa a ser abordada pelos familiares dos pacientes. Antes disso, a psicóloga já tinha conversado com os médicos e com as equipes para compreender o quadro clínico dos pacientes e, então, se preparar para o momento do boletim. O atendimento aconteceria ali nas cadeiras das salas de espera.

Georgea se senta junto a uma mulher e seu filho, uma criança de cerca de sete anos. Enquanto a mãe só tira os olhos da psicóloga para abaixar a cabeça e pensar, o menino come uma laranja e observa a ida e vinda incessante dos médicos, alheio à conversa. "Cada dia é uma criação, é deparar com novas histórias. E conseguir lidar com isso é algo recompensador. Tenho certeza de que amo o que faço", diz Georgea.

A notícia recebida pela mãe parecia boa — o semblante de alívio e um sorriso tímido por trás da máscara deram as pistas. A psicóloga se levanta e deixa os dois para trás, para que o menino termine de comer a laranja. Ela parte para encontrar outras pessoas, que aguardam uma palavra, um conforto, um rumo.