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'Vivo de poesia no país em que quase ninguém lê', diz Miró, poeta do Recife

O poeta recifense Miró da Muribeca - Brenda Alcântara/UOL
O poeta recifense Miró da Muribeca
Imagem: Brenda Alcântara/UOL

Mateus Araújo

Do TAB, em São Paulo

06/08/2021 04h00

A entidade estava prestes a baixar, avisou o escritor Wellington de Melo, que organizava a transmissão, enquanto as pessoas já se ajeitavam cada uma em seu pequeno mosaico da videochamada. Na plateia com cerca de 20 pessoas, uma cantora famosa, um ator, um policial militar, uma professora, alguns poetas e gente que não chegou a se apresentar esperavam a chegada.

Passava um pouco das 19h, quando da tela do computador, onde o mundo tem se resumido nestes meses de pandemia, era possível ver um Recife distante, ainda proibido de se viver "aglomeradamente" seguro pelas ruas. Mostrava nos olhos brilhantes a alegria de um reencontro, apesar de virtual. "É minha primeira live, com 60 anos", começava o poeta Miró da Muribeca — a "entidade", como fora carinhosamente anunciado —, na abertura da primeira oficina online de sua vida, no último dia 27 de julho.

Na noite daquela terça-feira e da quinta seguinte, na sala de um espaço cultural na Zona Norte da capital pernambucana, acompanhado de três assistentes, ele contaria como nascem seus poemas — numa espécie de aula-espetáculo ao seu modo: avesso a qualquer formalidade pedagógica. "Quanta gente bonita. Falem qualquer coisa, e já estou feliz", sorria, enquanto recebia aplausos silenciosos dos espectadores.

Na oficina online, Miró conta parte de sua história e explica o processo de criação de poesia - Brenda Alcântara/UOL - Brenda Alcântara/UOL
Na oficina online, Miró conta parte de sua história e explica o processo de criação de poesia
Imagem: Brenda Alcântara/UOL
Ao 60 anos, é a primeira vez que Miró faz uma live - Brenda Alcântara/UOL - Brenda Alcântara/UOL
Ao 60 anos, é a primeira vez que Miró faz uma live
Imagem: Brenda Alcântara/UOL

De Cordeiro a Miró

João Flávio Cordeiro da Silva ganhou o apelido de Mirobaldo ainda nos anos 1980. Porque jogava bem, os amigos passaram a chamá-lo pelo nome de um dos atacantes do Santa Cruz da virada da década de 1960 para 1970. A variação reduzida veio quando ele escreveu o primeiro livro de poesia, impresso em 1985 de forma independente. Lançou-se, então, Miró da Muribeca — o complemento faz referência ao bairro onde ele morou com a mãe, na Região Metropolitana do Recife.

Criado pela mãe (ele não conheceu o pai), morou grande parte da vida na periferia da cidade. E embora pobre, esteve cercado também de amigos de classe média, como ele mesmo costuma frisar. "Eu frequentava uma rua e me tornei um escravo amoroso do pessoal de lá. Encerava a casa dela, lavava o carro dele, ia comprava o cigarro do filho do outro", contou Miró na primeira aula da oficina.

Foi por ali, lembra ele, que descobriu a paixão pela literatura. Um amigo, o artista plástico Maurício Silva, lhe apresentou a poesia. "Num sábado, quando eu lavava carro na rua, Maurício chegou e me disse: 'Miró, tu sabe o que é poesia?'. Eu disse: 'Não. Sei o que é Fernando Mendes", lembrou, se referindo ao cantor mineiro que naquela época fazia sucesso nas rádios brasileiras com a canção "Cadeira de Rodas".

Depois de sonhar em ser jogador de futebol e jornalista, Miró quis ser psicólogo, Djavan e Tim Maia. Foi servente na Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), mas no dia em que Silva mostrou a ele uma poesia, decidiu-se mesmo pelos versos. "Eu vivo de poesia neste país em que quase ninguém lê."

Miró da Muribeca, poeta cronista recifense - Brenda Alcântara/UOL - Brenda Alcântara/UOL
Miró da Muribeca, poeta cronista recifense
Imagem: Brenda Alcântara/UOL

Eu-lírico

Quem lê Miró encontra nos textos dele um dos mais fiéis retratos da capital de Pernambuco: poética e marginal. Passam por ele as paisagens, as pessoas, o caos, a desigualdade e a libido de um Recife também universal. O eu-lírico é ele mesmo, sem rimas regulares e rebuscamento tradicional. O vocabulário é o cotidiano, prosaico e popular, transformando-se rapidamente em frases que ganham as ruas em cartazes e camisetas — ou, agora, em posts nas redes sociais (apesar de não usar a internet, o poeta tem um perfil no Instagram, gerido por amigos). Como o "A vida é uma dádiva, a vida é uma dúvida, a vida é uma dívida", que escreveu, em 2012, no livro "dizCrição", e "Se no mundo não tivesse espelho?", atualmente numa das paredes da exposição "Língua Solta", do Museu da Língua Portuguesa.

"Sempre vi Miró e sua poesia como uma parte da cidade — uma parte pulsante, às vezes desesperada, outras vezes irônica. Hoje entendo que a sua obra vai além disso: fala não só das urgências, paisagens e figuras de uma só cidade, mas sim dos centros urbanos como um todo, das pessoas que os habitam, da solidão de cada um", conta o jornalista Diogo Guedes, editor da Cepe (Companhia Editora de Pernambuco), que desde 2016 publica o poeta.

"Acho que o título de um dos livros dele, 'O Penúltimo Olhar Sobre as Coisas', é uma espécie de síntese da sua poética, capaz de enxergar através do que já parece gasto, comum, e também sempre em busca de adiar essa despedida inevitável, esse olhar derradeiro para o mundo", continua Guedes.

É a Cepe que lançará no próximo ano a biografia de Miró, escrita por Wellington de Melo. "O desafio é fazer uma biografia que não seja simplesmente um relato dos fatos, mas uma recuperação dessa memória mesmo — e a memória dele é muito vasta, envolve também outras memórias que se agregam. Então saí recuperando essas essas memórias que às vezes são contraditórias, inclusive, porque às vezes ele lembra de uma coisa de uma forma e outras pessoas lembram de outra maneira. Encontrar alguma coerência para isso e ao mesmo tempo dar uma forma poética é talvez o maior desafio", explica Melo.

Capa do livro "Miró até agora" (2013), coletânea de poema lançada pela Cepe - Brenda Alcântara/UOL - Brenda Alcântara/UOL
Capa do livro "Miró até agora" (2013), coletânea de poema lançada pela Cepe
Imagem: Brenda Alcântara/UOL

O poeta leonino

Os dois encontros da oficina online de Miró foram como uma grande roda de conversa. No primeiro dia, o poeta leonino falou de si. No segundo, abriu o microfone para que os alunos declamassem poesias próprias e lhe fizessem perguntas. Não demorava para ele emendar também com recital: as mãos gesticulando, a voz pausadamente a frisar os trechos de maior efeito. Miró agradava a todos. "Eu te amo, te amo, te amo", falava o escritor Marcelino Freire, no segundo encontro da oficina, depois de ser cumprimentado por Miró.

Mais adiante, uma professora perguntava ao poeta: "Você sabe o quanto você é todo poesia? O seu jeito de falar, o seu jeito estar, os seus gestos, o jeito que você nos recebe, nos olha. Tem uma poesia em você para além das suas palavras. Como você se descobriu poesia?" Ele respondeu: "Descobri no Teatro de Santa Isabel, quando eu falei uma poesia para um público que eu jamais pensei em falar. Sem microfone, tomei o público todinho na minha mão. Foi emocionante. Onde eu chego, se tiver um público para ouvir, eles vão segurar para ouvir."

Mas fazia tempo que ninguém ouvia Miró. A rua, sua matéria-prima para crônicas poéticas, ficou vazia com a pandemia, e o isolamento intensificou a solidão dele. "Ficar trancado sem sair é uma coisa que nunca fiz. É chato porque na verdade eu gosto de ver as pessoas, numa sala de aula ou dentro de ônibus", reclamava, ao telefone, em uma rápida conversa um dia depois da oficina.

Desde agosto de 2020, o poeta está internado em uma clínica no Recife, onde se trata do alcoolismo. Em novembro, chegou a ir para um hospital por complicações da infecção de covid-19. Nesses meses, saiu pouquíssimo. As raras vezes foram para vender os livros, comenta. "Fico com o pessoal, que são meus amigos. Mas não tem mais eventos, lançamento, faz tempo que não vejo as pessoas, por isso foi emocionante fazer a oficina."

Enquanto aguarda o dia em que poderá voltar às ruas e recitais, ele fica no silêncio poético. "Nunca mais escrevi nada que eu gostasse", conta. "É muito difícil, não tenho contato humano. Gosto de ver o povo na rua, das perguntas, das brincadeiras. Sair agora, sem poder fazer isso, seria ruim. Se não tem o que fazer, terminaria bebendo, por isso não tem muito sentido ir pra rua. Decidi que se eu não parasse, ia morrer. Estou bem, sabendo falar, me guiar, vendo o que vai acontecer."

Miró da Muribeca lançou seu primeiro livro em 1985 - Brenda Alcântara/UOL - Brenda Alcântara/UOL
Miró da Muribeca lançou seu primeiro livro em 1985
Imagem: Brenda Alcântara/UOL

Quintal de Deus

Miró, que começou tímido a primeira aula, pela falta que sentia de ver seu povo, terminou sorridente o segundo encontro. O poeta das ruas enveredou pela internet. Como foi a experiência pra ele? "Deixei de ser paleolítico", brincava, se despedindo dos alunos. Nesta sexta-feira (6), quando completa 61 anos, ele lança um novo livro, "O Céu É no Sexto Andar", com textos anteriores à pandemia, e para isso fará uma live no Instagram.

O encontro, apesar de virtual, parecia ter dado novo ânimo ao poeta. "O que é mesmo estar vivo? Quando amanhece o dia, eu digo: Tá, Deus, eu ganhei mais uma manhã. O que vou fazer nessa manhã? Amanhã você não sabe se vai ter outro amanhã. Tô sem a bebida, tomando um cafezinho, porque não quero ir embora agora do quintal de Deus."