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Driblando ameaças na internet, Erika Hilton movimenta as ruas em São Paulo

A vereadora Erika Hilton do PSOL participa do ato 29M contra o governo do presidente Jair Bolsonaro - Camila Svenson/UOL
A vereadora Erika Hilton do PSOL participa do ato 29M contra o governo do presidente Jair Bolsonaro
Imagem: Camila Svenson/UOL

Letícia Naísa

Do TAB, em São Paulo

09/08/2021 04h00

Foi no meio da rua, no centro de São Paulo, que os olhares de Erika e Gabriel se cruzaram pela primeira vez. Na hora, o clima não permitia um flerte tão aberto. Ambos estavam na marcha do Orgulho Trans por razões políticas. Quando conta a história, a memória de Erika Hilton (PSOL) falha um pouco para precisar a data — ela não sabe se o encontro foi há três ou quatro anos, mas sabe que sentiu o impacto daquele olhar.

Depois da manifestação, ela procurou Gabriel Lodi no Instagram e mandou uma mensagem bem direta. "Fui franca, logo dizendo o que eu queria, não fiz rodeios, não", conta, com a mesma franqueza, na videochamada com o TAB. O "instatinder", segundo a vereadora, funciona mesmo.

Segurando a vontade de fumar um cigarro, Gabriel confirma a história à reportagem durante uma manifestação na avenida Paulista. Ajeitando a máscara no rosto, conversa conosco enquanto Erika tira fotos com fãs, admiradores e eleitores. "É sempre assim quando a gente sai, já estou acostumado", comenta. Gabriel, hoje, é fã número 1 da vereadora.

O ator e dublador é o primeiro relacionamento estável de Erika, segundo ela mesma. A sorte de um amor tranquilo foi uma experiência roubada dela ainda muito jovem. Aos 14 anos, como muitas mulheres transexuais e travestis, Erika foi expulsa de casa. Nas ruas, sobreviveu como prostituta. "Vivi toda a mazela que um corpo travesti negro periférico pode viver."

Demorou muito tempo para que ela, hoje aos 28 anos, pudesse sentir as consequências. A prostituição e a exploração sexual infantil lhe tiraram a possibilidade de ter vivido uma adolescência comum. "Parece até um pouco romântico no caso de uma travesti, porque essa realidade é muito distante. Mas eu me permito sonhar. Eu poderia ter descoberto minha sexualidade e o sexo de outra maneira e ter vivenciado experiências sexuais de uma forma mais humana, mais respeitosa", avalia.

A vereadora Erika Hilton (PSOL) junto do namorado Gabriel Lodi, durante o ato 29M contra o governo do presidente Jair Bolsonaro - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
A vereadora Erika Hilton (PSOL) junto do namorado Gabriel Lodi, durante o ato 29M contra o governo do presidente Jair Bolsonaro
Imagem: Camila Svenson/UOL

A vereadora Erika Hilton é a mulher que mais recebeu votos (50.508) nas eleições de 2020 em São Paulo — e é a primeira mulher trans a ter um cargo na Câmara Municipal. Até quem discorda de seus posicionamentos está a favor da presença dela no cargo. "É muito positivo, porque significa que, de fato, estamos conseguindo superar algumas barreiras", diz Fernando Holiday (Partido Novo), em entrevista ao TAB. Holiday foi o primeiro parlamentar assumidamente gay dentro da Câmara.

"Nos bastidores, sempre se falou que eu não fui o primeiro LGBT, que havia outros antes de mim, mas que eles não se sentiam confortáveis de se assumir, então acho que a vinda da Erika é muito significativa nesse sentido", reflete o vereador. "Significa que estamos crescendo, independentemente das nossas ideologias."

A colega, conta Holiday, chegou à Câmara Municipal como "estrela" e pautando o debate público com naturalidade. O vereador opina, no entanto, que, assim como ele quando foi eleito, Erika tem "um elemento de agressividade" em seu discurso, na forma como ela coloca suas ideias e expõe suas opiniões. "É consequência de ser alguém que sempre queria falar, mas nunca era ouvida e agora finalmente é ouvida", explica. Em seu segundo mandato, Holiday se considera mais maduro, aprendeu a dialogar — e acha que o mesmo pode acontecer com Erika.

A vereadora Erika Hilton do PSOL conversa e grava vídeo com apoiadores no protesto 29M contra o governo do presidente Jair Bolsonaro - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
A vereadora Erika Hilton do PSOL conversa e grava vídeo com apoiadores no protesto 29M contra o governo do presidente Jair Bolsonaro
Imagem: Camila Svenson/UOL

Nas últimas eleições, o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) cresceu na Câmara e elegeu seis vereadores. Holiday considera positivo, mas teme uma "radicalização" e classifica algumas propostas da bancada como ilusórias. Ele destaca que, como Erika, defende pautas de combate à violência — diz até que votou a favor de um dos projetos da vereadora, mas que as convergências param por aí. "Ela provavelmente irá propor como resolução para esses e tantos outros problemas maiores investimentos do Estado, que implicam maiores gastos, e meu posicionamento é liberal", explica.

A rotina na Câmara, dizem ambos, mudou muito. Entre o trabalho como vereadora, como presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, e como militante e ativista, Erika passa quase 10 horas por dia na frente do computador, de segunda a sexta-feira. As sessões duram mais tempo, e os momentos cotidianos do cafezinho e da fofoca não existem mais. As relações e a construção dos relacionamentos políticos, diz Holiday, ficaram mais difíceis.

Um passo à frente

Nos protestos de rua contra o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de 29 de maio, Erika foi recebida como celebridade. Fazia meses que a parlamentar não saía de casa para nada, muito menos para protestar. A vereadora sumiu das ruas não só em respeito ao distanciamento social: desde que assumiu o cargo na Câmara, tem sofrido ameaças de morte pela internet.

Covereadora de São Paulo Carolina Iara (esquerda), vereadora Erika Hilton (centro) e covereadora Samara Sosthenes (direita).  - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Covereadora de São Paulo Carolina Iara (esquerda), vereadora Erika Hilton (centro) e covereadora Samara Sosthenes (direita).
Imagem: Reprodução/Instagram

"É realmente aterrorizante", define Erika. Em 2018, ela foi eleita para a Assembleia Legislativa como membro da Bancada Ativista do PSOL, em um mandato coletivo repartido entre 9 pessoas. Mensagens de ódio pipocam de tempos em tempos em suas redes sociais.

Em janeiro de 2021, Erika resolveu protocolar uma ação contra 50 suspeitos de ameaças racistas e transfóbicas contra ela na internet, e registrou boletim de ocorrência quando um homem que portava uma bandeira e máscaras com símbolos religiosos entrou no gabinete e insistiu para falar com ela. Agitado e com uma mochila nas costas, gritava pedindo para encontrar a vereadora. Dias antes, em 13 de janeiro, um funcionário da Câmara que buscava informações pessoais de Erika ameaçou "arrancar a cabeça" de integrantes de sua equipe, segundo informado na coluna de Mônica Bergamo, na Folha, na época. Erika acionou a GCM passou a andar com segurança. Seu endereço e sua agenda são secretos.

"A gente tem que mudar nossa rotina, sofre com a privação de liberdade, porque corre risco", afirma. Não se sabe quem são essas pessoas e do que elas são capazes. A denúncia, diz, foi para mostrar que, apesar do medo, não pretende paralisar.

Um passo atrás

Na rua, Erika caminha em marcha lenta, quase parando. A todo momento, alguém pede para tirar uma foto e trocar algumas palavras. A pose favorita dos admiradores é o lado da vereadora com o punho erguido, em protesto. A certa altura da rua da Consolação, perto do cinema Petra Belas Artes, tanto a equipe que a acompanhava quanto nossa reportagem perdeu a vereadora de vista. Erika havia parado para conversar e tirar foto com eleitores e fãs, o bonde andou, e ninguém conseguia encontrá-la. O celular tocava e ela não atendia. O reencontro aconteceu por acaso, quase na altura do número 2.000 da Rua da Consolação.

13.mai.2021 - A vereadora Erika Hilton (PSOL-SP) durante ato contra o racismo organizado pela Coalizão Negra por Direitos - Roberto Casimiro/Fotoarena/Estadão Conteúdo - Roberto Casimiro/Fotoarena/Estadão Conteúdo
13.mai.2021 - A vereadora Erika Hilton (PSOL-SP) durante ato contra o racismo organizado pela Coalizão Negra por Direitos
Imagem: Roberto Casimiro/Fotoarena/Estadão Conteúdo

O meio do povo é seu lugar favorito, e a Paulista tinha uma verdadeira multidão, "parecia um Carnaval", brincava a vereadora. "Parar o trânsito é uma coisa que me faz muita falta", tinha dito Erika, dias antes, durante a conversa por vídeo.

Vaidosa, a vereadora vestia um shorts branco e uma camiseta personalizada com a frase "Que comece o traviarcado", em referência à uma frase da série "La Casa de Papel". Antes de sair de casa, marcara o olhar com um delineador preciso e arrumara o cabelo para deixá-lo bem volumoso. Ela conta ser consumidora de conteúdo relacionado a beleza, cabelos e maquiagem. Sua rotina de skincare é sagrada: Erika passa quase uma hora todos os dias cuidando da pele — Gabriel já até sabe.

Desde muito nova, achava-se uma diva. "Sempre me senti Paola Bracho", brinca, em referência à vilã da novela mexicana "A Usurpadora", a que gostava de assistir com uma prima e a avó. Com os sapatos da mãe, desfilava pela casa de Franco da Rocha, na região metropolitana de São Paulo, onde cresceu.

Na infância, Érika vivia rodeada de mulheres. Foi criada por tias, pela avó e pela mãe, vivia brincando com as primas e com suas duas irmãs mais novas. Nunca ouviu, dentro de casa, que era um menino ou que devia agir como um menino. "Digo que não tive uma transição, porque não tive aquele momento de reconhecimento, de achar que tinha algo estranho comigo", reflete. Desde que se entende por gente, Erika se entende como mulher.

Já a identidade travesti — ou transgênero, ou, como ela nomeia, transvestigênere — veio com a experiência das ruas e com a negação de quem estava em volta sobre quem ela é. A questão familiar, diz, foi a que mais lhe doeu. As doces lembranças da infância contrastam com os traumas do final da adolescência.

Pela sobrevivência, engoliu o choro do sofrimento e aceitou a realidade. "Aquilo parecia comum, parecia que era assim para nós, corpos trans e travestis tinham que viver daquela forma", conta. "Então eu só vivi."

A reconciliação veio no dia que sua mãe lhe tirou das ruas. Religiosa, foi a mesma mãe que expulsou Erika de casa, mas também quem também a resgatou. A mãe, diz Erika, caiu em si e a procurou. A reconciliação não foi difícil. "Toda nossa relação de afeto, cuidado e amor já existia, minha mãe é tudo pra mim e foi uma mãe excelente, tive uma infância linda", garante.

Tanto afeto a faz se perguntar se um dia quer ser mãe. Às vezes acha que sim, às vezes acha que não. "É uma responsabilidade muito grande, né?". A ideia, no entanto, a encanta. "Não é um desejo, mas é uma coisa que passa pela minha cabeça", confessa.

Estando em um momento tão bom no relacionamento, o assunto vez ou outra vem à tona. No ano passado, combinaram um prazo de 10 anos para tomar a decisão. É tempo para que o sonho atual de Erika se realize: que todo o mundo tenha tomado vacina e que ela possa voltar às ruas.