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O samba de Dexter: 'Sem vínculo com minha raiz, não chego a lugar nenhum'

O rapper Dexter, em São Bernardo do Campo, na região metropolitana de São Paulo - Marcus Steinmeyer/UOL
O rapper Dexter, em São Bernardo do Campo, na região metropolitana de São Paulo Imagem: Marcus Steinmeyer/UOL

Adriana Terra

Colaboração para o TAB, de São Paulo

13/08/2021 04h00

"Você sabe que tem uma música do Edi Rock em que ele fala assim: 'O negro sem orgulho é fraco, infeliz, como uma grande árvore que não tem raiz'", começa Dexter. "Se um dia eu perder o vínculo com minha história, com tudo isso que me fortalece, aí acabou, não chego a lugar nenhum. São essas coisas que me fazem caminhar", diz ele.

Aos 48 anos, o músico faz referência a um trecho de "Júri Racional", dos Racionais MC's, para explicar o trânsito natural entre o rap que faz e a cultura do samba que sempre esteve presente em sua vida - do cotidiano do Jardim Calux, em São Bernardo do Campo, às parcerias musicais, passando pelo ritmo feito com amigos nas beiras de campo. "Que é uma coisa que me traz liberdade, sabe?"

Era uma segunda-feira no bairro em que Marcos Fernandes de Omena (o Dexter) nasceu na região metropolitana de São Paulo, quando ele conversou com a reportagem, após mais um dia de gravação da série "Pico da Neblina" (HBO), em que estreou como ator. Por ali, em uma noite em que o frio de agosto deu trégua, em frente ao bar do amigo de infância Cesinha e de sua companheira Marli, reuniam-se vizinhos do músico: gente com quem ele cresceu, jovens para quem ele é referência.

Mas as referências são recíprocas, e isso é fundamental no trabalho do artista. Na nova música, "Lá de Onde eu Venho", ele homenageia as pessoas do lugar que o criou, lugar que - como o samba e o rap - é sua raiz. Desde quando ainda não havia asfalto no bairro de ruas estreitas colado na Rodovia Anchieta, mas os laços já eram fortes.

"Vivi aqui em ruas de terra. Tinha o Betão, uns malandros das antigas, na época em que a gente jogava futebol. Tudo isso é coligado, e é isso que a gente não pode desunir", diz ele que, embora não viva mais ali (hoje mora na zona leste de São Paulo), volta com frequência. Conta que quando está em bairros de classe alta como Morumbi e Alphaville, fica ainda mais antenado nos valores que carrega.

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Em primeiro samba, rapper resgata raízes do bairro onde nasceu, o Jardim Calux
Imagem: Marcus Steinmeyer/UOL

"Lá de Onde eu Venho" é o primeiro samba autoral de Dexter, embora ele já tenha regravado músicas de outros compositores do gênero e cantado com sambistas em diversas ocasiões. Três décadas atrás, aos 17, formou com o primo Romildo o grupo Pura Amizade, ao mesmo tempo em que começava o Snake Boys. O rap foi ganhando mais espaço, mas o samba seguiu nas brechas.

Em 2016, após gravar "Liberdade Sonhada", do Katinguelê, vieram os convites. "Todos esses manos aí: Salgadinho, Pinha [Presidente], Péricles, Marquinhos Sensação, Douglas Sampa começaram a me chamar. E começaram a dizer que eu cantava...", diz, abrindo um sorriso, entre o tímido e o orgulhoso. Conta, no entanto, que o retorno que o deixou mais feliz sobre a faixa nova veio de um artista do rap, amigo de décadas que também gosta muito de samba e inclusive toca repique de mão. "Ouvi, gostei, ficou bonito, hein?", disse Mano Brown.

Mãos honestas, amorosas

Puxando a memória da infância, Dexter lembra de ver Alcione "novinha cantando no 'Fantástico'", ouvir Benito de Paula, Elton John e Luiz Ayrão em casa com a mãe e as irmãs. Mais tarde conheceu Leci Brandão, Dona Ivone Lara, Tim Maia, Jorge Ben, Originais do Samba e Demônios da Garoa. Em 1992, começa a frequentar a Choppapo (casa de show em São Bernardo do Campo) e conhece Katinguelê, Exaltasamba.

Diz que é um cara mais dos sambas antigos. "Eu sou Zeca [Pagodinho], Almir [Guineto], Arlindo [Cruz], Beth [Carvalho], Leci [Brandão]. Sou Reinaldo, meu grande amigo [ele gravou com o sambista, que morreu em 2019, a faixa 'Bala Ricocheteada', de Alan Vinicius]. Mário Sérgio, Ubirany [ambos do Fundo de Quintal]..."

Um desses sambas que o emociona é "Mãos", de Almir Guineto, que faz sucesso sempre que canta - e não são poucas vezes. "Sou até repetitivo em roda de samba", conta, elencando as favoritas: "Meiguice Descarada" e "Conselho", também de Almir, "Lente de Contato", de Zeca Pagodinho, e "Agenda", de Beto Guilherme. A paixão por "Mãos" plantou uma semente, por volta de 2016: sem pressa, prometeu que se aparecesse uma música que a tocasse tanto quanto ela, gravaria.

Apareceu. Em um papo de estúdio, o produtor Peu Cavalcante lhe mostrou uma composição sua e de Billy SP no violão. Dexter sentiu identificação imediata. No clipe da faixa, uma animação, ele reverencia seus mestres do samba, que aparecem ao lado de moradores no Calux, além do jogador Gabriel Jesus e de sua mãe, Marina de Omena, que faleceu neste ano.

O músico dimensiona a importância de colocá-la na canção: "Ela representa a maioria das mulheres que criam seus filhos sozinhas. O país é construído por elas", diz. "A mãe dele varreu rua com a minha", conta com carinho o amigo Paulo, enquanto ouve a entrevista ao longe, prestando atenção. Durante as duas horas de conversa, várias pessoas ao redor escutavam as falas de Dexter da mesma forma.

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'Esse samba tenta resgatar o que de fato nós somos, ou ao menos deveríamos ser'
Imagem: Marcus Steinmeyer/UOL

Do Calux, o clipe de "Lá de Onde eu Venho" vai para a quadra da escola de samba Vai-Vai na Bela Vista, região central de São Paulo, conectando dois territórios fisicamente distantes, mas com pontos em comum quando se pensa em comunidade. A escolha foi motivada pela relação afetiva de Dexter com a escola, que frequenta há décadas, onde coleciona amigos e já se apresentou em festas. Diz que a ideia era homenagear a agremiação e a partir dela representar toda a cultura das escolas de samba, referência para o povo negro.

Foi na quadra de uma agremiação - Unidos do Peruche, em 2009 - que Dexter lançou também seu primeiro álbum solo, "Exilado Sim, Preso Não", junto ao primeiro DVD da série "Dexter & Convidados".

Um leão por dia

"Lá de Onde eu Venho" homenageia muitos sambistas que já morreram, lembrando da permanência de obras que seguem relevantes. É atento a isso que Dexter trabalha. "Quero que daqui a 100 anos as pessoas reconheçam minha discografia como algo útil. Lançar esse samba foi tentar mostrar pras pessoas, ou resgatar, o que de fato nós somos, ou ao menos deveríamos ser. Meu rap também fala disso, né? Tem rappers que já não cantam mais essas coisas. Mas sou um cara preso a isso aí."

Ser um cara preso a isso aí - agente e fruto de uma cultura que "colocou autoestima e espírito guerrilheiro no coração de todo mundo da periferia", como descreve o rap dos anos 1990 - faz com que Dexter tenha tanto um respeito por sua origem e pela música quanto uma visão cautelosa sobre conquistas individuais. Cita Bezerra da Silva: "E se não fosse o samba quem sabe hoje em dia eu seria do bicho..."

"E se não fosse o rap?", se pergunta.

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'Tudo isso é coligado, e é isso que a gente não pode desunir', diz Dexter
Imagem: Marcus Steinmeyer/UOL

Dexter diz ficar feliz quando vê "amigos que sobreviveram", pois muitos deles ele não vê mais. "Então é falar sobre os reais valores das coisas", diz. Cita como exemplo "Como Vai Seu Mundo", composta quando esteve na prisão. "Pisar na terra descalço, porque na cadeia você só tem concreto e ferro. Sou um cara que vive falando dessas coisas, não consigo mudar, porque acho que muita coisa não mudou ainda", explica.

"'A favela venceu' é uma frase perigosa... Não consigo compartilhar ainda desse pensamento", pondera. "Entendo quando as pessoas falam isso, mas não posso achar que porque consegui chegar a determinado lugar, todo mundo venceu. E se a gente fica citando essas coisas por aí sem uma explicação prévia a gente confunde as pessoas. A favela não venceu: nós ainda estamos vivos, mas não vencemos. Tem muita coisa errada ainda."

Entre as coisas erradas, ele lembra da morte da vereadora Marielle Franco e da prisão de ativistas acusados de queimar a estátua de Borba Gato - revogada nesta terça-feira (10).

Dexter passou 13 anos cumprindo pena por assalto a mão armada, entre 1998 e 2011. "Errei, sim, mas eu poderia ter saído antes [da prisão]. Foram 157 saídas com retorno, sem uma falta. Poderia existir uma outra maneira. E não existiu", diz. Conta que sofreu represália quando construiu uma biblioteca na cadeia. "Por que prenderam o Galo, mataram a Marielle? Por que me tiraram de um lugar onde eu tinha construído uma biblioteca e duas salas de aula? O sistema quer nos intimidar porque nos quer inerte."

O músico então interrompe o fluxo de pensamento e prevê que, ao ler isso, muitos vão acusá-lo de "mimimi". Explica, revelando como opera o estigma. "Saí da prisão há dez anos, não tenho uma falta, e hoje a minha pena está extinta. Certo? Mas pra alguns eu ainda sou bandido. Sabe qual a frase que mais leio nessas entrevistas em que coloco o dedo na ferida? 'Só no Brasil bandido faz sucesso'. Paguei minha pena, sofri. Mas você nunca paga sua pena para essas pessoas, nunca zera."

Assim como o apreço pela liberdade, tema constante em suas músicas e em seu modo de se relacionar com o mundo, Dexter não abandona o compromisso com a realidade que viveu. Fica triste ao ver que, entre os que o acusam de "mimimi", há gente da periferia. Diz, no entanto, que canta para estabelecer esse diálogo, um elo que não pode se quebrar.

"Se eu cantar a desesperança apenas, não vou conseguir fazer com que os meus continuem ligados à esperança. A gente é isso aí também, é isso aí ó: esse cara falando que eu não deveria estar aqui. Mas a gente é vitória todo dia. É matar um leão por dia nesse lugar, ou nesses lugares dos quais estamos falando: periferia, favela, viela, cortiço. A 'Lá de Onde eu Venho' é isso: 'Lá de onde eu venho a gente é pé no chão...' Mesmo com esses desacertos entre nós mesmos, a gente é foda."

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Periferia: 'A gente é vitória todo dia. É matar um leão por dia nesse lugar'
Imagem: Marcus Steinmeyer/UOL