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De bananal a patrimônio mundial: como Burle Marx revolucionou sítio no Rio

Sítio Roberto Burle Marx, no Rio, recebeu título de patrimônio da humanidade pela Unesco - Ricardo Borges/UOL
Sítio Roberto Burle Marx, no Rio, recebeu título de patrimônio da humanidade pela Unesco Imagem: Ricardo Borges/UOL

Valmir Moratelli

Colaboração para o TAB, do Rio

27/08/2021 04h00

A imponente alameda Pau-Ferro, com árvores de mais de 40 metros, dá as boas-vindas. É ali, em uma região de ruas de terra batida em Barra de Guaratiba, bucólico bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, que se localiza o mais novo Patrimônio Mundial, na categoria paisagem cultural, título dado pela Unesco: o Sítio Roberto Burle Marx, idealizado pelo arquiteto e paisagista paulistano Roberto Burle Marx (1909-1994).

O espaço de 407 mil metros quadrados de área florestal abriga uma coleção com mais de 3.500 espécies de plantas tropicais e subtropicais de várias partes do mundo. Nos anos 1940, Burle Marx comprou o terreno para utilizar como "laboratório" de suas criações.

"Quando ele chegou, isso aqui era um grande bananal. Ele foi implementando as adaptações botânicas de acordo com seus projetos, algumas plantas trazidas de viagens ao exterior. Só que os vizinhos achavam que ele era um velho maluco, que a única coisa que dava lucro na região era banana. Ele provou o contrário", conta o jardineiro Sinval Filho, de 56 anos, há 36 funcionário do sítio.

Desse laboratório brotaram criações para o Aterro do Flamengo, maior parque urbano do mundo, inaugurado em 1965, a 50 km de distância dali, e para o majestoso Kuala Lumpur City Centre Park, ponto turístico na Malásia criado em 1993. Também do local saiu a inspiração para o paisagismo do calçadão de Copacabana, no Rio, do parque Burle Marx, em São Paulo, e da Cascade Garden, em Longwood Garden (Estados Unidos), entre outros, contabilizando mais de dois mil jardins públicos e privados pelo mundo.

É enquanto vai examinando as plantas à procura de possíveis pragas que Sinval diz como se orgulha de trabalhar em um "patrimônio". "Aprendi com Roberto que a natureza não é boa só pra dar alimento. As plantas fazem parte da nossa vida, deixam tudo mais bonito."

Sítio Roberto Burle Marx, em Barra de Guaratiba, no Rio, recebeu título de patrimônio da humanidade da Unesco - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Em Barra de Guaratiba, sítio reúne viveiros de plantas, jardins, uma casa musealizada e seis lagos
Imagem: Ricardo Borges/UOL

A figueira de Lenny Kravitz

Quem ouve à conversa de perto é seu colega de enxada, o também jardineiro Elias Moreira, de 68 anos. "Convivi com Roberto até sua morte. Lembro que ele chegava para trabalhar às 6h30, meia hora antes da gente. Ele me chamava de 'menino'. Já descia da casa dando ordens. Era exigente e pontual", lembra Elias, que trabalha no local há 46 anos.

Os jardineiros são guias na imensidão do terreno, verdadeiro labirinto de ruelas apertadas por onde crescem espécies raras de diversos tamanhos. Há dezenas de tipos de filodendros, cujas folhas passam de um metro de comprimento; delicadas marantáceas, pequenas flores brancas; inúmeras bromélias; e a impressionante tapeinóquilo, originária do México e que dá uma flor tão dura que parece de plástico.

No alto da ladeira de entrada, há uma figueira frondosa, cujas raízes parecem desenhar o gramado. O mosaico encantou o músico nova-iorquino Lenny Kravitz, que gravou um comercial do seu champanhe Dom Pérignon às sombras da figueira, em 2019.

Os corredores são protegidos por "sombrites", telas que servem para amortecer o impacto da chuva e filtrar raios do sol. Ao fundo quatro "árvores arco-íris", eucaliptos da Filipinas, chamam a atenção na aquarela viva dos jardins: seus caules são em tons vibrantes. "Todo mundo quer uma selfie perto delas", relata a bióloga Suzana Bezerra, de 37 anos, que há 16 trabalha como educadora no sítio.

Um paraíso escondido nos confins do Rio, o espaço está sendo redescoberto: desde o anúncio da Unesco, no fim de julho, o número de pedidos de visitas guiadas ao local saltou de 30 para mais de 400 por dia.

'Pitangolango mangotango'

Antes das invenções de Burle Marx, os jardins brasileiros eram cópias europeias. A Quinta da Boa Vista e a Praça Paris, no centro do Rio, são exemplos dessas cópias bem-feitas.

"Burle Marx inventou o jardim tropical moderno ao pesquisar o clima, tipos de solo e a quantidade de água ideal para cada espécie", explica Suzana. "O diferencial foi trazer visão estética à biodiversidade, combinando a paleta de cores da natureza para compor uma obra de arte orgânica."

Ao se mudar para o sítio, Burle Marx fez intervenções no antigo bananal para ser transformado no laboratório de seus paisagismos. Hoje, os visitantes podem conhecer o casarão mobiliado exatamente como ele deixou - seu quarto preserva os óculos sobre a cabeceira e o par de sapatos sujos de barro. A mesa suja de tinta, os azulejos que desenhou, os lustres que fez a partir de plantas como sapucaia, urucum, cabaça e frutos secos, tudo leva a assinatura do artista.

Burle Marx adorava coleções. São centenas de conchas do mar, louças de cristal, telas e tapeçarias, além de carrancas de barcos do rio São Francisco na fachada do casarão, uma sala só para abrigar arte pré-colombiana e outra para arte sacra (e ele era agnóstico).

Também há um ateliê, onde ele costumava trabalhar em pinturas, e uma cozinha externa feita de pedras para festas memoráveis para mais de 850 convidados, entre eles embaixadores, arquitetos e artistas. As panelas de pedra-sabão se mantêm sobre o fogão. Os visitantes podem levar cópias de receitas que o paisagista criava, como o sugestivo drink "pitangolango mangotango", feito de pitanga e vinho.

A singela capela Santo Antônio da Bica, do século 18, faz parte do conjunto arquitetônico. "Ele pegou isso aqui em ruínas e, nos anos 1950, chamou dois amigos arquitetos para restaurar. Eram 'apenas' Carlos Leão e Lucio Costa", conta Suzana. Na década seguinte, Lucio Costa ficaria conhecido pelo projeto do plano piloto da capital federal, Brasília.

Sinval Filho, jardineiro que trabalha no sítio Burle Marx, no Rio - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Sinval Filho, jardineiro que trabalha no sítio Burle Marx, no Rio
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Um acervo vivo

Em 1985, Burle Marx doou o sítio ao governo federal, no intuito de assegurar a continuidade das pesquisas e a disseminação do conhecimento com a sociedade. Os jardins, o conjunto arquitetônico e os seis lagos que integram o espaço estão sob cuidados de 95 funcionários ligados ao Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

Eles gostam de contar que Burle Marx colocava a mão na terra, não tinha frescura. "Ele se deslumbrava com a evolução das plantas. Dizia que planta é igual criança, tem que ter paciência para ver crescer", lembra Elias.

E o trabalho é puxado. "Não tem irrigação mecânica, todo o sistema é manual. A gente pega a mangueira e sai molhando planta por planta, diariamente", explica. Nesse cuidado artesanal, "cirúrgico" como eles preferem dizer, é preciso usar a quantidade certa de água para cada área, inclusive onde há sombras, a fim de evitar proliferação de pragas.

"Dia desses apareceu um concursado aqui, formado em Direito. Não durou muito, pediu pra ser transferido quando soube que tinha que sujar as mãos com terra. Não é fácil convencer os novatos", diz Sinval. "Eles não sabem que é o melhor trabalho do mundo! A gente bate papo com as plantas o dia todo", diverte-se.

Entretanto, o sítio vem sofrendo impactos severos nas mudanças climáticas nos últimos anos. Com o calor excessivo e a alteração nas estações de chuva, que fizeram secar o reservatório de 250 mil litros, os funcionários contam que, no ano passado, pela primeira vez tiveram falta d'água e precisaram pedir ajuda ao Exército. "A coleção botânico-paisagística do sítio é um acervo vivo, um banco genético, que necessita de condições climáticas e ambientais para sua preservação", diz a diretora Claudia Storino.

Agora, a um mês da primavera, já se esperava ver brotos de flores começando a surgir, diz Elias. Não surgiram. "É a natureza avisando que tem algo muito errado em curso."