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Sem enxergar, médico trabalha em dois hospitais e um consultório

O médico cego Ricardo Ayello Guerra, que trabalha no Hospital do Servidor Público Estadual, em São Paulo - Fernando Moraes/UOL
O médico cego Ricardo Ayello Guerra, que trabalha no Hospital do Servidor Público Estadual, em São Paulo Imagem: Fernando Moraes/UOL

Sibele Oliveira

Colaboração para o TAB, de São Paulo

27/08/2021 04h00

É uma sexta-feira calma no quarto andar do Hospital do Servidor Público Estadual, na Vila Clementino, na zona sul de São Paulo. Ali, onde ficam os ambulatórios, sem pacientes disputando espaço ou correria para tirar o atraso dos atendimentos, tudo o que se pode ouvir é o silêncio. Nesse fim de tarde, algumas salas já estão vazias e, dentro de instantes, a 443 também ficará. Foi nela que Ricardo Ayello Guerra, 50, atendeu os 20 pacientes do dia. Uma rotina que o endocrinologista repete a semana inteira sem sobressaltos, apesar do detalhe que o diferencia dos colegas: ele não enxerga.

A vida no escuro não atrapalha Ricardo no desempenho do seu ofício. Ele está há 26 anos no Hospital do Servidor Público Estadual, além dar expediente no Hospital do Servidor Público Municipal, ambos em São Paulo, e em uma clínica em Atibaia. Na unidade da Vila Clementino, onde conversou com o TAB, o endocrinologista é responsável pelo ambulatório de câncer de tireoide. Trabalha com médicos residentes, com quem discute os casos clínicos.

Já tarefas como manusear o computador e imprimir receitas ficam a cargo dos que estão começando a carreira. No consultório, a rotina de Ricardo é diferente. Ele usa dispositivos como um medidor de pressão arterial que fala e conta com a ajuda de José Roberto, encarregado de avisar quem será o próximo paciente e ler os exames.

Ricardo analisa os resultados, escuta o laptop (com o programa NVDA instalado) verbalizar as informações registradas no prontuário e tecla as novas. Só então chama o paciente. Por não enxergar, não faz a inspeção. As outras etapas do exame clínico - palpação, percussão e ausculta - ele tira de letra. Nem melhor nem pior do que os colegas. "O pessoal acha que cego é tipo um ciborgue, com super audição. Isso é uma lenda. Escuto igual a todo mundo", conta.

Com décadas de estrada na medicina, ele não precisa ver expressões faciais ou corporais para descobrir o estado de ânimo de quem atende. Sutilezas como o tom da voz são suficientes para que ele faça essa leitura emocional, diz.

Não ver luz quando acorda não o impede de achar graça na vida. Nessa sexta-feira, enquanto se prepara para ir embora, ele brinca com todo mundo. "Além de ótimo médico, muito competente, o doutor Ricardo é um ser humano excelente. E muito bem-humorado", afirma a enfermeira Rute Correia da Silva, admiradora do companheiro de trabalho. "Eu o conheço há uns dois anos. Durante esse tempo, ele nunca teve um dia ruim. Está sempre bem", acrescenta.

Obstáculos visuais

Isso não significa que Ricardo teve uma vida fácil. Ele sempre teve baixa visão, consequência da retinose pigmentar, doença com a qual nasceu. Quando criança, vivia isolado num canto da escola, incomodado com o ambiente escuro do estabelecimento. Ainda assim, era importunado pelos colegas de classe, que jogavam bolinhas de papel na cabeça dele.

Ricardo sabia deixar os aborrecimentos fora de casa e se permitia ser um menino alegre no lar, na companhia dos pais e dos irmãos. Quando mudou de colégio, no ensino médio, as coisas melhoraram, pois o clima era acolhedor. Como saía pouco de casa à noite, devido à cegueira noturna, preenchia o tempo estudando. Até que estar entre livros e cadernos se tornou um hobby. Foi nessa época que decidiu fazer faculdade de medicina.

Paulistano, mas morando no Rio, optou pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Começou o curso depois de explicar sua condição aos professores. Como ainda tinha cerca de 30% da visão, ia bem nas provas, mas não em todas as matérias. Nas aulas de anatomia, não via o alfinete espetado em estruturas muito pequenas de órgãos humanos como o rim. O problema foi resolvido quando o professor o deixou tatear as peças na hora da avaliação.

Não teve a mesma facilidade na disciplina de histologia. Sem conseguir enxergar os tecidos no microscópio, tirou zero. O docente até sugeriu projetar as imagens na parede. Só que, mesmo grandes, elas continuavam escuras. Ricardo acabou ficando de recuperação. Por sorte, entrou outro professor que permitiu que ele identificasse os tecidos em fotos de livros.

"Algumas coisas eu dei sorte. Outras, não. Fiz bons amigos. Quando a gente dava plantão de madrugada, com o hospital todo escuro para ver um paciente, sempre ia uma boa alma junto comigo para me ajudar a achar o caminho", lembra.

Com o diploma na mão, fez residência e, quando terminou a especialização, o chefe da endocrinologia o convidou a trabalhar como funcionário. Durante quatro anos Ricardo ficou renovando o contrato até abrir um concurso público - e ele prestou e passou.

O médico Ricardo Ayello Guerra, em São Paulo - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Consequência da retinose pigmentar, doença com a qual nasceu, o médico perdeu a visão por volta dos 42 anos
Imagem: Fernando Moraes/UOL

O apagar das luzes

Até os 35 anos, Ricardo trabalhou sem problemas, mesmo enxergando mal. Então foi pego de surpresa pela perda da visão. A primeira coisa que fez foi procurar os superiores, confessar que estava ficando cego e que não sabia se seria capaz de continuar os atendimentos. Sentiu um alívio com a resposta que ouviu: "Você tem experiência, estuda bastante e os residentes gostam de estar com você. Já está acostumado com esse esquema deles atenderem e você discutir. Então não tem necessidade de parar."

A perda visual foi avançando até Ricardo ficar cego, por volta dos 42. Começou a frequentar a Fundação Dorina Nowill e, para aprender a andar de bengala branca (de cego), saía da casa da mãe, onde morava na época, e caminhava alguns quarteirões.

Um dia, durante o treino, foi interrompido por um paciente que queria marcar uma consulta. "Será que ele não está vendo que estou de bengala, que eu não enxergo? Está tão exposto", pensou.

Ricardo passou meses sem coragem de andar de bengala nos hospitais. Tropeçava, escorregava, se demorava em trajetos curtos. Por vergonha e para evitar experiências negativas, como a que teve anos atrás, quando faltou energia elétrica no hospital e foi um custo ele encontrar a porta no escuro. Observando a cena, uma paciente nova gritou: "Esse médico não enxerga? Não vou passar com um médico cego. Eu me recuso." E foi embora, deixando o endocrinologista desconcertado.

"É desagradável ser julgado não por uma questão técnica, mas por uma limitação que existe e que gera uma certa insegurança", diz. Quando passou a andar de bengala, Ricardo notou alguns colegas se afastarem. Segundo ele, o preconceito também é nítido em processos seletivos. "Na concorrência, o cego já sai um passo atrás. Então tem que compensar com muita qualificação técnica."

Ricardo não tem olhos leitosos ou esbranquiçados, sua cegueira não é percebida de imediato. Ele achava que era só não tocar no assunto que ninguém iria notar - até José Alberto lhe contar que a tática não funcionava. Depois da terceira ou quarta consulta, os pacientes perguntavam ao auxiliar o que o endocrinologista tinha na visão. "Cara, eu achava que eles nunca percebiam!", exclamou.

Mas são raras as vezes que alguém pergunta diretamente a ele. Como seus consultórios nunca esvaziam, Ricardo supõe que a limitação não tem um peso tão grande.

Quando venceu a resistência em andar de bengala, ele voltou a se locomover rapidamente e se sentiu melhor. Superou também a relutância em aceitar ajuda de quem a oferecia. Um deles foi um homem que, do nada, bateu em seu peito e o parou na rua. "Tem um cara drogado, jogado no chão. Você vai pisar nele e vai dar encrenca", disse.

"Você ajuda a gente?", pediu Ricardo, ao lado de uma amiga que também tinha deficiência visual. Os três seguiram andando. Depois de um tempo, o benfeitor falou: "Você sabe que está sendo ajudado por um drogado, né? Sou usuário de crack."

O médico Ricardo Ayello Guerra, em São Paulo - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Hoje, o endocrinologista trabalha em dois hospitais em São Paulo e em uma clínica em Atibaia
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Além da medicina

Ricardo sempre teve consultórios na capital paulista. Até que, em 2002, separou-se da primeira esposa e se casou com uma médica residente, por quem estava apaixonado. Foi dela a ideia de morar em Atibaia.

Apesar de o segundo casamento também não ter dado certo, o endocrinologista permaneceu atendendo no interior para ficar perto dos filhos. De volta a São Paulo, conheceu uma moça com baixa visão. Depois de oficializar o compromisso, há dois anos, o casal precisou aprender a se virar em casa. "Ser cego não é fácil. É um desafio a cada curva."

Se tem uma coisa que Ricardo gosta é de desafios. Precisou vencer vários para cozinhar. Depois, tomou gosto: gosta tanto de viver entre os ingredientes que faz parte de um grupo no WhatsApp de cegos que trocam receitas.

Muitas vezes, cozinha ao som de um samba, embora seus estilos musicais favoritos sejam rock e jazz. Outra paixão é a literatura — ele tinha deixado os livros de lado, até descobrir os audiolivros. Além de clássicos como "Os Miseráveis", de Victor Hugo, costuma ouvir títulos técnicos e artigos científicos.

Convidado para falar sobre a carreira de médico a um grupo de jovens cegos, ouviu um deles dizer que é possível fazer qualquer coisa sem enxergar, até ser piloto de avião. "Você está errado. A gente tem que encarar a realidade. Um pé de manga não vai dar maracujá. A gente tem que respeitar as limitações", ponderou.

"A gente tem que dar exemplo. Não pode, porque passou uma dificuldade grande na vida, sentar, chorar e arrumar uma aposentadoria por invalidez. Acho que o exemplo melhor é tentar continuar. Dentro do que for possível."