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Mano Brown mergulhou nos livros pra 'não chapar'; saiu com um podcast

Mano Brown recebe o teólogo e arqueólogo Rodrigo Silva no podcast "Mano a Mano" - Jef Delgado/Divulgação
Mano Brown recebe o teólogo e arqueólogo Rodrigo Silva no podcast 'Mano a Mano' Imagem: Jef Delgado/Divulgação

Tiago Dias

Do TAB, em São Paulo

22/09/2021 04h01

É tarde de quinta-feira quando Mano Brown chega ao estúdio da Vila Madalena, zona oeste de São Paulo, com quase uma hora de antecedência. É um hábito que se tornou comum desde maio, quando gravou ali o primeiro episódio do podcast "Mano a Mano" com a cantora Karol Conká. Brown gosta de estudar bem o tema e o convidado antes de começar a gravar.

De óculos e cabelo aparado na máquina, Brown vestia tênis Nike, calça jeans tingida e uma camisa branca entreaberta que revelava uma corrente dourada. Tranquilo e sorridente, ele cantarola um funk norte-americano antigo. "You get me hot, hot", repete algumas vezes, e pede à produtora: "Escreve pra mim o que eu preciso falar no começo? Eu sempre esqueço."

Diante do microfone ele lê numa folha de sulfite o extenso currículo do convidado da vez: o teólogo, arqueólogo e pastor Rodrigo Silva, 51. E resume: "Um homem negro, posso falar assim?". A partir dali, durante três horas, os olhos deixam o papel e se fixam no homem à frente.

Naquele dia, o nome de Brown estava mais uma vez em alta rotação. Mais cedo, o terceiro episódio de "Mano a Mano" fez o bate-papo com o ex-presidente Lula ecoar nas redes sociais e entrar na lista dos podcasts mais ouvidos do Spotify — onde está desde o primeiro episódio. O podcast é uma produção original da plataforma.

Com o arqueólogo, um dos nomes que o próprio Brown fez questão de convidar, o papo é outro. Ou quase. Sem cola à vista, ele emenda perguntas, vez ou outra pontuadas por dados da jornalista Semayat Oliveira, sentada ao lado. Diz ter "curiosidade profunda" quanto à presença dos negros na pré-história, em especial na Bíblia. "No Brasil se contam coisas sobre o negro muito aleatórias, a partir da escravidão. E a escravidão é um evento muito moderno perto da história do negro no planeta", defende.

Ele dobra a manga da camisa na altura do antebraço, deixando à mostra a tatuagem colorida do continente africano. Junto com a cruz no braço direito, onde se lê "Provérbios 15-16-17", estes são os sinais de como aqueles assuntos ressoam no rapper de 51 anos — uma das maiores referências do rap e das ideias nacionais.

Mano Brown durante gravação do podcast "Mano a Mano" - Jef Delgado/Divulgação - Jef Delgado/Divulgação
Imagem: Jef Delgado/Divulgação

Nascido em berço candomblecista e criado em um círculo de frequentadores da Igreja Adventista, no coração do Capão Redondo, Brown diz não se considerar um cara religioso. No entanto, é o cara que escreveu que São Dimas foi o "primeiro vida loka da história", e que sempre buscou na religião paralelos e reflexões para a realidade dura e terrena.

Naquela tarde, Brown trazia na ponta da língua a árvore genealógica de personagens do Gênesis, um livro que ele considera "espetacular". "Eu acho muito importante botar cor nos personagens.". Rodrigo Silva o desafia a fazer uma música com aquela frase. "Descobrir a cor desse povo todo é como descobrir a cor do brasileiro", explica o teólogo. "Vai de Abraão a Capão Redondo."

O entrevistador ouve atentamente a resposta, enquanto alisa o bigode com os dedos. Vez ou outra, saca um drops de uma caixinha. "Essas ideias aqui vão ser combatidas", resume, como os presentes do objetivo da conversa.

Em cima da mesa, o exemplar do livro "Grandiosos etíopes do antigo império cuxita" (de Drusilla Dunjee Houston) é um dos muitos que lhe fez companhia durante a quarentena. Brown mostra então o anel no dedo do meio e a corrente grossa dourada que traz no pescoço, com uma placa com inscritos amáricos. Quer dizer "abençoado".

Ele conta que fez um teste de DNA recentemente, onde foi revelada sua ascendência cuxita, uma superpotência africana, cuja influência se estendeu até o atual Oriente Médio. Rodrigo pergunta o sobrenome de Brown: "Soares Pereira. Meu nome é bem brasileirinho". O teólogo nota que pode haver também ascendência judaico-cristã.

Talvez para acessar mais o universo do interlocutor, Brown introduz de surpresa: "Curte que som, professor?". Silva responde gostar de música sertaneja de raiz. "Inezita Barroso", diz. O rapper insiste: "Nem um James Brown?". O convidado confidencia desconhecer as raízes do rap. "Eu sei por alto que o rap tem um papel social muito bom nas periferias, mas, como todas as alas, tem uma ala perigosa, outra louvável."

Brown responde sem pestanejar: "Eu sou da ala perigosa, por isso que eu te chamei, professor."

Pastor, teólogo e arqueólogo Rodrigo Silva, convidado do "Mano a Mano" - Jef Delgado/Divulgação - Jef Delgado/Divulgação
Pastor, teólogo e arqueólogo Rodrigo Silva, convidado do "Mano a Mano"
Imagem: Jef Delgado/Divulgação

Brisa da pandemia

Três horas depois, quando a produtora dá o toque para encerrar, Brown lamenta no microfone que havia muito ainda a "dichavar" sobre o assunto. Alguém no estúdio faz graça: "E olha que o papo ficou só no Gênesis." Na hora da foto, o rapper dá a mão ao convidado, mas não resiste à piada: "Olha aí: James Brown e Inezita".

No começo da pandemia, Mano Brown decidiu mergulhar em livros e vídeos para "não chapar". "Eu via as pessoas com dificuldade mental mesmo e falei: vou estudar", disse na coletiva de lançamento de "Mano a Mano", único momento desse período em que aceitou o papel de entrevistado.

Com os filhos já morando sozinhos, passou meses trancado em sua casa na região do Jardim São Luís, na zona sul de São Paulo, dedicando-se à pesquisa em teologia, filosofia, ciência e assuntos relacionados à diáspora africana pelo mundo. O filho Kaire Jorge teve que pegar no pé para Brown usar os óculos para perto por causa do astigmatismo. "O certo é ele usar, é a idade, vista cansada."

A origem das civilizações e etnias dos personagens bíblicos foi um tema que sobressaiu, entre seus interesses. Não à toa, já vinha citando o nome de Nimrod, descrito na Bíblia como o "primeiro poderoso na Terra", nos papos gravados com Karol Conká, Lula e o pastor Henrique Vieira. Seria negro o guerreiro fundador da cidade de Babel?

"Dizem que Maria, mãe de Jesus, descendia de uma mulher negra. Jesus seria um afrodescendente e essas coisas não estão expostas", explicou durante a coletiva. "A diferença que isso faria, para essa massa de milhões, dizer que Jesus era mulato, e não loirinho dos olhos azuis."

Era esse o papo que a família e amigos próximos começaram a ouvir de Brown durante a pandemia. Muitos deram a dica: "Você precisa de um podcast".

Mano Brown durante a gravação do podcast "Mano a Mano" - Jef Delgado/Divulgação - Jef Delgado/Divulgação
Mano Brown durante a gravação do podcast "Mano a Mano"
Imagem: Jef Delgado/Divulgação

'Já falei demais'

Kaire Jorge tem 25 anos e é diretor-executivo do Boogie Naipe, produtora pilotada também pela mãe, a advogada Eliane Dias, na gerência das carreiras do Racionais MCs, Mano Brown e novos artistas. Sem lançar música inédita desde 2017, o pai pedia sugestões de projetos. "A gente fez alguns testes em vídeo. Mas ele não se adaptou muito", relembra Jorge. Durante a pandemia, com a agenda de show suspena, o filho tentou fazer uma live e um podcast. "Recebi alguns nãos. O Racionais é bem assim: se eles não tiverem num dia bom você vai levar um não", conta.

No caso de Brown, havia uma resistência em especial no caso do podcast. Falar, naquele momento, soava como algo repetitivo para o artista. Disse para o filho — e para o UOL em 2018 — algumas vezes: "Já falei demais". "Ele estava meio saturado desse papel de ser entrevistado", observa Jorge. A chave só virou com a chegada da segunda onda pandêmica, quando Brown percebeu que poderia desovar tudo que vinha aprendendo — e desdobrar o assunto em outras questões.

"A pandemia se tornou o momento chave para ele sair um pouco da música, dos conflitos raciais, ideologias políticas, que estão meio clichês neste momento. As questões raciais são as mesmas, então ele trouxe questões da pré-história, foi lá atrás buscar porque o povo preto foi apagado da história", explica o filho. O assunto costura os papos com personalidades que podem ir da música ao futebol.

Um dos pontos altos do podcast está na forma com que Brown abraça o contraditório. O rapper aponta a discordância, sem nunca invadir a percepção do outro. O filho acredita que isso seja reflexo do momento pós-impeachment no Brasil. "Os caras sempre ouviram [o contraditório], mas nunca pararam para ouvir um Fernando Holiday. Quando você busca entendê-lo é que fica interessante", diz. O vereador de São Paulo, conhecido por posicionamento da direita, é um dos entrevistados da temporada.

A fluidez na conversa fez Brown ser descoberto agora como um entrevistador — astuto e aberto para aprofundar questões de forma íntima e nada protocolar. Não à toa, algumas vezes o papo é acompanhado de um baseado, à exceção dos com Drauzio Varella, Lula e os pastores. "Depende do mood [clima] do dia, mas ele está [fumando] bem menos, estou até surpreso", revela Jorge.

De qualquer forma, a conversa cai numa tapeçaria de vivências que lembram muito suas letras. "Coisa de compositor", acredita Brown. Jorge conhece bem a fama desde pequeno, ao observar o pai costurar histórias do passado e do presente com direito a imitação e análises.

"Dentro de casa, claro, ele não foi o pai mais presente de todos. Depois que eu tive uma consciência mínima, já sabia como funcionava, qual era a proporção. Sempre reparei que ele tinha isso", diz. "Eu não sou esse cara habilidoso que consegue contar uma história fluida e descontrair todo mundo. Ninguém da banca é, ninguém do grupo é. É muito ele."