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'A santa da TFP': bomba, fé e mistério marcam história de oratório em SP

No bairro de Santa Cecília, pessoas rezam e deixam flores em oratório para Nossa Senhora de Fátima - Mateus Araújo/UOL
No bairro de Santa Cecília, pessoas rezam e deixam flores em oratório para Nossa Senhora de Fátima Imagem: Mateus Araújo/UOL

Mateus Araújo

Do TAB, em São Paulo

26/09/2021 04h00

Marineide dos Anjos, 65, dobrou apressada a esquina das ruas Jaguaribe e Martim Francisco, na Santa Cecília, região central de São Paulo. Baixinha, saia comprida, uma bolsa a tiracolo e o cabelo grisalho amarrado com um coque, ela voltava do trabalho e ia em direção à estação Higienópolis-Mackenzie do metrô, a cerca de um quilômetro dali.

Na metade do primeiro quarteirão, a mulher diminuiu os passos, se benzeu e parou cochichando em frente ao casarão de número 665 — um sobrado azul-claro, com detalhes cinzas, portas e janelas de madeira, e, no canto esquerdo, numa parede de pedra, um oratório com a imagem de Nossa Senhora de Fátima. "Meu filho, desculpe, mas eu tô com pressa, porque vou pegar metrô cheio", dizia Marineide quando interpelada para falar com o TAB. "Parei rapidinho só pra rezar. Sempre rezo pra ela, quando passo aqui."

A escultura de aproximadamente 60 centímetros fica protegida por um vidro, cercada de jarrinhos com flores. Atrás da imagem foi colocado veludo vermelho, e sobre ela, uma luz que destaca o rosto, a coroa e o manto branco, em contraste com o tom escuro da parede. Acima da vitrine, há uma cruz da Ordem de Cristo.

Marineide foi rápida na reza. Assim que terminou, voltou a se benzer, ajustou a bolsa no ombro e saiu com ligeireza. "É todo dia, toda hora, tem sempre alguém aí", comentou o funcionário de uma papelaria vizinha ao oratório. "Essa santa é bem antiga por aqui."

'Vítima dos Terroristas'

Alonso Teixeira, 81, é quem cuida do oratório e da casa, "Tomo conta, como diz o pessoal do interior", explicava, saindo por um corredor estreito até a porta da frente. Da janela do primeiro andar ele tinha visto a movimentação diante da santa. Acenou à reportagem e desceu rapidamente para conversar. "Minha memória já não está muito bem", adiantava, rindo. "Mas moro aqui há uns quatro anos."

Diariamente, conta Teixeira, pessoas param na frente da imagem para rezar e deixar flores. Algumas delas são vizinhas; outras, transeuntes que por acaso passam naquela rua e encontram o oratório. "Antigamente, tinha espaço no chão para deixar vela. Naquela época, o bairro era calmo, passava pouca gente na calçada. Quando tiramos esse espaço, algumas pessoas acendiam a vela perto do vidro, e ele começou a rachar com o calor do fogo. Decidimos colocar uma placa pedindo que não acendessem vela", lembrava.

O oratório nem sempre foi dedicado a Nossa Senhora de Fátima, e está relacionado, ainda, a histórias desconhecidas do público. A casa onde fica a santa é a sede da organização católica conservadora TFP (Tradição, Família e Propriedade). Em junho de 1969, segundo integrantes do grupo, uma bomba foi jogada no prédio, e entre os objetos atingidos estava a escultura de Nossa Senhora da Conceição, que não foi destruída.

Não há registro da explosão nos jornais daquela época, somente um texto de opinião do presidente do grupo, Plínio Corrêa de Oliveira, publicado um mês depois na Folha de S.Paulo e citado numa revista da própria TFP. "O que valeu a honra daquela bomba?", escreveu. "A convicção, o denodo e a eficácia com que ela se afirmou em 1961-1963 contra a reforma agrária de Jango, com que ela se opôs em seguida ao divórcio, e clamou depois contra a infiltração comunista na Igreja. Pois nenhum outro fato há que possa explicar tal ódio contra nossa entidade."

Em resposta ao que chamou de "ataque", a TFP decidiu criar um oratório na fachada da casa para colocar a santa, a "Vítima dos Terroristas", em novembro daquele ano. No início, o pequeno santuário da organização conservadora, além de espaço para velas e flores, mantinha duas tochas em riste em cada lado da vitrine.

Em abril de 2004, membro da TFP em frente à imagem de Nossa Senhora de Fatima, no oratório da rua Martim Francisco - Joao Wainer/Folhapress - Joao Wainer/Folhapress
Em abril de 2004, membro da TFP reza em frente à imagem de Nossa Senhora de Fátima, no oratório da rua Martim Francisco
Imagem: Joao Wainer/Folhapress

Conservadores divididos

O sobrado 665 da rua Martim Francisco já não mantém mais a movimentação de décadas atrás, quando a TFP vivia o auge de sua atuação política em guerra declarada às correntes de esquerda da Igreja Católica e à reforma agrária. Desde 1995, após a morte de Oliveira, uma briga interna dividiu o grupo. De um lado ficaram os fundadores, mais conservadores, e do outro, uma ala mais jovem, os Arautos do Evangelho.

Os dissidentes eram a maioria dos sócios efetivos e queriam direito a voto nas decisões da entidade, algo até então restrito aos veteranos. Por isso, recorreram ao Tribunal de Justiça de São Paulo e, em 2003, conseguiram a realização de novas eleições. Eles conquistaram a diretoria do grupo, mas, mesmo com a vitória, a briga voltou a ser notícia em abril do ano seguinte, quando 15 membros dos Arautos do Evangelho tentaram entrar no casarão do oratório — ainda ocupado pelos antigos diretores — acompanhados da polícia.

"Após uma hora de negociação com um advogado representante da TFP, o grupo dos Arautos do Evangelho desistiu da ação", contava a reportagem da Folha. "O argumento da TFP para demover os dissidentes foi de que o imóvel da rua Martim Francisco não pertence mais à entidade. Estava sendo usado pela Associação Aliança de Fátima, grupo religioso ligado à TFP."

Em 2012, o caso foi levado ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), que manteve a TFP sob a direção do grupo dissidente, mas os veteranos recorreram mais uma vez da decisão, que aguarda novo julgamento. Até o desfecho do imbróglio, o nome Tradição, Família e Propriedade e os símbolos do grupo ficarão no limbo, sem poderem ser usados por nenhuma das partes.

Briga entre membros da TFP virou caso de polícia; em 2004, a justiça garantiu aos dissidentes a direção da entidade - Jorge Araujo/Folhapress - Jorge Araujo/Folhapress
Briga entre membros da TFP virou caso de polícia; em 2004, a justiça garantiu aos dissidentes a direção da entidade
Imagem: Jorge Araujo/Folhapress

Lembrança dos vizinhos

O oratório da TFP acompanha a memória de muita gente do bairro. "Sempre via homens por ali, rezando. Às vezes, à noite, via muitos homens, de capa, segurando uma tocha", lembra a jornalista Priscilla Torelli, 49, que mora na região desde os 12 anos.

Recentemente, em um post no perfil Vila Buarque, no Instagram, Torelli resgatou a história da casa da Martim Francisco. A postagem recebeu 170 mensagens, muitas se referindo ao "mistério" em torno da vitrine. "Tenho 39 anos, cresci no bairro, sabia da história pois pesquisei quando era adolescente, e tenho a lembrança de uma vigília de homens com capas rubras em frente ao oratório", escreveu um seguidor.

Priscilla Torelli conta que "virava e mexia, vinha gente pedindo para postar foto dessa casinha que acham fofinha", mas havia dificuldade para encontrar informações sobre o prédio. "Você não encontra os dois lados da história da casa, só textos produzidos pelo Plínio Corrêa ou nos sites da TFP. Contam sempre a história de um atentado do pessoal da esquerda, que a casa foi aos escombros, e sobrou a santa. Mas fui procurar mais, e não achamos nada."

Procurada pelo TAB, a diretoria da TFP não quis dar entrevista. "Como muitos pelo mundo afora, estamos nos reorganizando para o pós-pandemia, e não teríamos condições de lhe dar a atenção devida no momento", explicou a assessoria de imprensa, por e-mail. "Assim que tivermos nossas questões em ordem, com gosto o procuraremos para tratar do oratório da rua Martim Francisco e dos fatos que o originaram."

Os Arautos do Evangelho também não atenderam às ligações da reportagem. Por telefone, um funcionário do IPCO (Instituto Plínio Corrêa de Oliveira), criado pelos fundadores da TFP, confirmou que a casa ainda pertence ao grupo conservador — como consta no CNPJ — mas que está alugada, e os inquilinos são desconhecidos.

'Não sabia dessa história'

Soprava um vento frio, com neblina, enquanto seu Alonso Teixeira contava o daycare do oratório. "Era Nossa Senhora da Conceição, mas [no início dos anos 2000] passou a ser Nossa Senhora de Fátima, pelo que ela nos fala sobre a crise do mundo", explicava. Nossa Senhora de Fátima tornou-se símbolo da corrente católica contrária às mudanças litúrgicas implementadas pelo papa João Paulo 2º na década de 1990.

"Isso é o que sei, meu filho, sou apenas um peão", finalizava, sorrindo, o senhor. Perguntado sobre a TFP, desconversou — mas deu o número de telefone para que ligasse e conversasse com "quem sabe das informações intelectuais". Ninguém atendeu às chamadas.

Mais tarde, numa pesquisa, a reportagem encontrou o nome do "peão" na lista de pessoas envolvidas na ação judicial de dissolução da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade. Em outro documento, a edição de fevereiro de 1966 da revista "Catolicismo", uma publicação mensal mantida pela TFP, Alonso Teixeira era citado como um dos jovens integrantes do braço mineiro da entidade conservadora.

Uns 15 minutos depois de dona Marineide dos Anjos sair de frente do oratório, Carmem Barbosa, 62, se aproximou da santa. Benzeu-se, e começou a rezar. "Não sabia dessa história", responde, curiosa, ao saber dos relatos em torno do oratório. "Sou muito devota de Nossa Senhora de Fátima, já fui até Fátima (em Portugal). Aqui, sempre venho, peço e agradeço", contou, para logo depois também seguir seu caminho.

Errata: este conteúdo foi atualizado
A primeira versão deste texto afirmava que a cruz em cima da vitrine é da ordem de Malta. Na realidade, ela pertence à Ordem de Cristo. A informação foi corrigida.