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Após 'ataque' na Bienal, Cripta Djan escala a arte e põe seu pixo em telas

Djan Ibson Silva, ou Cripta Djan, como ficou conhecido no rolê da pixação, com a obra "Pavilhão de Concreto e Sangue" - Gabi Di Bella/UOL
Djan Ibson Silva, ou Cripta Djan, como ficou conhecido no rolê da pixação, com a obra "Pavilhão de Concreto e Sangue"
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

Tiago Dias

Do TAB, em São Paulo

21/10/2021 04h01

A estreia de Djan Ivson (ou Cripta Djan, como é conhecido nas ruas) nas artes foi noticiada nas páginas policiais. Naquele outubro de 2008, a 28ª Bienal de Artes de São Paulo abria as portas com um andar inteiro vazio, numa metáfora da crise conceitual que assolava a arte tradicional. Apelidou-se aquela edição como a "Bienal do Vazio". Para um grupo de pixadores, era um claro convite para preencher as paredes e curvas projetadas por Oscar Niemeyer.

Nos points, um convite escrito na tipografia do pixo era um chamado à ação "Além do Bem e do Mal", inspirada na obra de Nietzche. Um logotipo com o símbolo anarquista rubricou o anúncio aos pixadores. "Tudo que é feito por amor estava acima do bem e do mal, era essa a ideologia. E a gente tinha muito amor por aquilo", explica Djan, que na época nem sabia o que era Bienal. Amigo de infância, o também pixador e hoje artista plástico Rafael Augustaitiz usou uma analogia mais próxima da realidade: era a Copa do Mundo das artes. Djan, que achava aquela ideia mais louca que as escaladas em prédios no centro da cidade, foi convencido. "Para um cara da periferia, aquilo era o mais próximo a se conquistar", diz.

Toda a ação foi registrada em vídeo pelo próprio Djan. Os seguranças logo reagiram. Uma pixadora, Caroline Pivetta, foi presa. Era época de eleição municipal e a garota se tornou um símbolo do que o Estado precisava perseguir.

O "ataque", como foi noticiado na Folha de S.Paulo, fazia parte de uma série de intervenções dos pixadores num intervalo de quatro meses. A primeira aconteceu no tradicional Centro Universitário Belas Artes, onde Rafael era bolsista e descobria o próprio pixo como manifestação artística. Djan achava que o amigo havia surtado. O trabalho de conclusão de curso foi entregue mantendo a essência daquela arte. "O pixo não negocia nada, ele se apropria, reivindica um espaço que é negado a ele", observa o amigo.

O momento está registrado no documentário "Pixo", de João Wainer e Roberto T. Oliveira. Um grupo de 30 pixadores invade o prédio e dispara jatos de tinta nas paredes e na exposição. "Porcaria sintética e fedida", disse o reitor à época. Irônico ou não, finalizou sua crítica dizendo que se alguém pegasse aquelas paredes e as vendesse, certamente "valeriam milhões".

Caligrafia da rua

Em frente ao ateliê de Djan, as casinhas de tijolos aparentes se amontoam num terreno elevado. "É como uma inspiração", diz ele, hoje aos 37, sentado na mureta de uma casa simples e antiga, nos fundos de uma sobreloja. Estamos em Osasco, na Grande São Paulo, e é ali que Djan guarda as obras que não estão nas fachadas dos prédios. "Hoje sou um pixador do campo das artes", define-se, desdobrando uma bandeira do Estado de São Paulo.

É a obra "Pavilhão de Concreto e Sangue", onde listas pretas, brancas e vermelhas servem de caderno de caligrafia para seu pixo. Não há assinatura, nem mesmo do seu coletivo, o Cripta. No lugar, um texto sobre o sangue derramado pelos bandeirantes. "A gente é acusado de ser artistas rasos", reflete. "Fiquei um tempo estudando essa transição."

Djan Ibson Silva, ou Cripta Djan, como ficou conhecido no rolê da pixação, no seu ateliê em Osasco (SP) - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Djan Ibson no seu ateliê em Osasco (SP)
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

A tensão de 2008 rapidamente mudou a cabeça do pixador. Ele já tinha escalado 30 andares, um recorde até hoje. "Quando a gente começou a fazer essas intervenções, senti uma nova energia, era o que estava faltando. Queria fazer revolução com o pixo", explica.

Do outro lado da disputa, a Bienal entendeu que a discussão merecia um convite oficial aos pixadores para a edição de 2010, com o tema "política da arte". Alçado a representante daqueles artistas marginais, Djan decidiu expor uma farta documentação que vinha coletando desde 1997.

Naquela edição, a obra de Nuno Ramos causou uma ruidosa polêmica ao utilizar dois urubus vivos. Djan enxergou nas aves necrófagas um grupo de pixadores de Belo Horizonte, recém-presos por formação de quadrilha. Era a deixa. Invadiu a obra e deixou registrado ali: "Libertem os Urubu". A reação dos seguranças foi ainda mais violenta. "Quase morri enforcado aquele dia", relembra. "A gente descobriu que quando a transgressão é de verdade, no campo das artes, eles chamam a polícia."

Aquela discussão ressoou fora do país. A partir daí, Djan e outros pixadores participam de uma exposição na Fundação Cartier, na França, e outra na Alemanha. "Foi um período de a gente se entender como artista", reflete. "A partir dali, não dava mais pra ignorar nóis."

Djan Ibson Silva, ou Cripta Djan, como ficou conhecido no rolê da pixação - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Imagem: Gabi Di Bella/UOL
Djan Ibson Silva, ou Cripta Djan, como ficou conhecido no rolê da pixação, com a obra "Pavilhão de Concreto e Sangue" - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Djan com a obra "Pavilhão de Concreto e Sangue"
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

Workshop de pixo

Junto com as obras, fotos suas em momentos de ruptura estão penduradas no ateliê. Em uma delas, Djan arremessa tinta em um homem. A cena é testemunhada com olhares incrédulos. Aconteceu na 7ª Bienal de Berlim, em 2012, quando foram convidados para algo "fora dos limites, liberdade completa". "Fomos testar", diz Djan.

A curadoria limitou a participação dos brasileiros a um "workshop", que deveria acontecer em espaço controlado por tapumes, ao lado da Igreja de Santa Elisabeth. "Não fazia sentido reproduzir os pixos no tapume. Seria uma reprodução estética, vazia", relembra. Não demorou para um brasileiro da comitiva espirrar tinta nas paredes da igreja construída na década de 1830.

O artista Artur Zmijewski, um dos curadores da edição, tentou impedir e jogou água em Djan. Acostumado às ruas, ele revidou com tinta amarela. "Em todas as bienais que a gente participou a polícia foi chamada", diz.

No ateliê, a foto da "pixação" no curador da Bienal de Berlim, Artur Zmijewski, em 2012 - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
No ateliê, a foto da "pixação" no curador da Bienal de Berlim, Artur Zmijewski, em 2012
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

Esse atrito também está em outras telas — é o combustível do filme "Urubus", de Claudio Borrelli, que será apresentado no Brasil pela primeira vez dentro da Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo. A história acompanha um grupo de jovens pixadores de São Paulo que despertam para a arte.

O diretor conheceu Djan na época da Bienal. "Foi quando eu comecei a me interessar por pixo. Ele me voltou com uma folha de papel, já tinha uma história ali, uma narrativa boa, uma emoção que eu queria. Comprei aquela folha de papel, que era o que ele tinha", diz Borrelli.

O roteiro é de Djan, que já prepara um novo argumento. Dessa vez, numa São Paulo distópica, onde muros restrigem o acesso de determinadas classes sociais. Nada diferente do que sempre enxergou como pixador.

Djan Ibson Silva, ou Cripta Djan, como ficou conhecido no rolê da pixação - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

Memórias cifradas

Entre telas, bandeiras e pincéis, Djan guarda fotos analógicas e recortes de jornal em pastas pretas numa estante. São registros de intervenções, enquadros da polícia e grandes feitos na cidade. Uma documentação minuciosa da evolução do pixo na capital. "O pixo era um movimento muito efêmero, estava passando em branco", diz, apontando para uma foto em que aparece à frente de uma "obra". "Era 1997 e eu já tinha inventado a selfie", sorri.

Ele vira a página. Há também fotos dos parceiros que morreram em quedas ou se foram por outros percalços, como o fundador do Cripta. Cleber, vulgo CBR, morreu no começo de outubro. "Um parceiraço", lamenta.

Criado apenas pela mãe e pelas tias, Djan conta que foi uma criança briguenta na infância em Itapevi. A violência era presente na escola e, rapidamente, aprendeu a revidar. Estudou até a sétima série, mas deu tempo de pegar a febre daquelas letras retas que circulavam nos cadernos dos colegas — uma estética que o atraía mais do que o colorido dos grafites.

Começou a pixar aos 12. Colou nos points de pixo na Ladeira da Memória, no centro da cidade, e passou a espalhar "Cripta" nos lugares mais altos. Com o tempo, as letras foram ficando menos espaçadas e mais cifradas.

No ateliê, no entanto, elas não estão nas paredes, mas em cubos brancos, como na tela que expõe o mapa do Brasil preenchido por registros quase rupestres. A obra se chama "Conexão em rede" e reúne o traço desenvolvido por pixadores de vários estados, entre letras mais emboladas e outras mais retas.

"É a Belas Artes da periferia", observa. "Ainda hoje, é a única oportunidade que eles têm de fato de serem artistas. É muito fácil, é com uma lata de tinta, é democrático. O dinheiro não ajuda no rolê do pixo, o que vale é o ser, o ter não importa."

O ato o fez se afastar da criminalidade, Djan reflete hoje. "Esse circuito de reconhecimento, visibilidade e memória, é isso que move o movimento. Essa coisa do reconhecimento existencial", diz. "É mais legal do que ser traficante."

Hoje, com dois marchands (João Correa no Brasil e Maximiliano Ruiz na Espanha), suas obras são a principal renda que financia não só os rolês de pixo, como a família de cinco filhos. "Pavilhão" foi vendida por R$ 20 mil. "A galera está começando a ver um campo novo para atuar, tem desafio e uma luta de classe dentro do campo das artes", observa.

O quadrado branco, para ele, é só mais um campo. Uma outra subversão. "Hoje esta é a minha escalada."

Djan Ibson Silva, ou Cripta Djan, como ficou conhecido no rolê da pixação - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Imagem: Gabi Di Bella/UOL