Topo

Desde 2019, marceneiro procura dono de R$ 1 mil esquecidos em van no Recife

O marceneiro Ricardo Cante na van onde o dinheiro foi encontrado - Wagner Oliveira/UOL
O marceneiro Ricardo Cante na van onde o dinheiro foi encontrado Imagem: Wagner Oliveira/UOL

Wagner Oliveira

Colaboração para TAB, do Recife

29/10/2021 04h00

É numa oficina coberta por telhas de amianto, piso de cimento e tijolos aparentes que o marceneiro Ricardo Cante faz aquilo que aprendeu desde adolescente. O suor e a dedicação são companheiros diários nos dias de trabalho do recifense de 44 anos. De suas mãos saem móveis sob medida que ornamentam casas e empresas dos clientes de toda a Região Metropolitana do Recife. Em suas mãos também foram parar cédulas de dinheiro que poderiam ser usadas por uma família humilde para o pagamento das despesas do mês, compra de alimentos ou até de medicamentos.

Há mais de dois anos, Ricardo tenta desvendar esse mistério. Encontrou uma bolsa com quase R$ 1 mil dentro do seu carro e não tem ideia de quem seja o dono. Essa história começou em setembro de 2019, quando um grupo de pessoas voltava para o Recife após uma viagem ao interior de Pernambuco na van dirigida por Ricardo. Sem que ninguém tenha uma explicação até hoje, o dono do valor perdido jamais apareceu. Muita gente chegou a se identificar como dona do dinheiro, mas ninguém conseguiu provar o fato. Ricardo segue com o montante guardado.

O recifense Ricardo Cante e o dinheiro encontrado na van - Wagner Oliveira/UOL - Wagner Oliveira/UOL
O recifense Ricardo Cante e o dinheiro encontrado na van
Imagem: Wagner Oliveira/UOL

Enquanto isso não acontece, as nove cédulas de R$ 100, uma de R$ 50, duas de R$ 20, uma moeda de R$ 0,10 e duas moedas de R$ 0,05 estão na mesma carteira deixada no transporte. Ricardo nunca usou o valor encontrado em seu carro (R$ 990,20) para nada. "São as mesmas cédulas e moedas. Nem troquei por outras. Espero um dia entregar tudo ao verdadeiro dono", conta. Não havia documentos ou cartões de banco que ajudassem a identificar o proprietário do dinheiro. Junto ao valor, no entanto, estava um comprovante de saque de R$ 998,00, que correspondia ao salário mínimo daquele ano.

Como já trabalhava com transporte de pessoas havia um tempo e é bastante conhecido no bairro onde mora, na periferia da Zona Sul recifense, o marceneiro acreditou que seria fácil encontrar o dono da pequena bolsa preta deixada entre os últimos bancos da sua van. Ele conta que, um dia antes da viagem para o polo têxtil no Agreste do estado, havia transportado um grupo de pessoas para um evento da igreja da qual faz parte. "Na hora que uma passageira me mostrou a carteira, perguntei se era de alguém que estava no carro e ninguém se apresentou como dono. Achei que fosse de algum irmão da igreja, mas também não era", detalha.

A notícia do dinheiro encontrado se espalhou pelas ruas do bairro e uma verdadeira romaria foi iniciada até a porta da casa de Ricardo, onde também funciona sua oficina, para pegar o valor. O telefone do marceneiro também não parava de tocar e receber mensagens. "Apareceu muita gente dizendo ser dono do dinheiro, mas quando eu pedia para as pessoas provarem isso com documentos ou cartão do banco, todo mundo dizia que não tinha. O tempo foi passando e fui atrás de alguns conhecidos que pudessem me ajudar a encontrar a pessoa que perdeu aquele valor. Certamente é de alguém que precisa do dinheiro", pondera.

O marceneiro Ricardo Cante em sua oficina - Wagner Oliveira/UOL - Wagner Oliveira/UOL
O marceneiro Ricardo Cante em sua oficina
Imagem: Wagner Oliveira/UOL

Beneficiário misterioso

O tal comprovante da agência bancária que estava junto às cédulas não trazia nome do beneficiário, mas tratava-se de um pagamento do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), podendo ser de aposentadoria ou de uma pensão. O valor foi retirado no dia 28 de setembro de 2019 e o comprovante já informava que o próximo saque poderia ser realizado no dia 29 de outubro. "Procurei um amigo que trabalha numa agência do mesmo banco que estava no comprovante e ele não localizou nenhuma conta válida com os dados. Então o mistério foi aumentando ainda mais", aponta Ricardo.

Outra tentativa de fazer o dinheiro chegar até o dono foi realizar um depósito do valor com os dados encontrados no comprovante. Ele diz, no entanto, ter sido informado que aquele tipo de conta não permitia a opção de depósito por se tratar de uma conta apenas para pagamento do benefício.

"Eu já não sabia mais o que fazer para entregar esse dinheiro e decidi continuar esperando alguém me procurar e comprovar ser o dono. Como a história já era bastante conhecida, eu pensei que quem tivesse perdido um valor tão alto estaria dando um jeito de descobrir onde ele foi parar. Mas, até agora, nada".

Ricardo revelou ao TAB já ter ouvido de algumas pessoas que deveria ficar com o dinheiro, mas o marceneiro descarta essa possibilidade. "Muita gente diz que eu já deveria ter gasto, que foi Deus quem mandou pra mim, que o dono não vai mais aparecer, falam várias coisas. Mas eu sei que existe um dono e essa pessoa pode precisar muito desse valor. Caso eu não consiga devolver de jeito nenhum, penso em dividir a quantia em três partes iguais e ajudar três famílias que estejam passando por dificuldades", comenta.

O marceneiro Ricardo Cante na van onde o dinheiro foi encontrado - Wagner Oliveira/UOL - Wagner Oliveira/UOL
O marceneiro Ricardo Cante na van onde o dinheiro foi encontrado
Imagem: Wagner Oliveira/UOL

Virações na pandemia

Desde os 13 anos, Ricardo aprendeu o ofício que virou sua profissão. Foi com esse trabalho que ele constituiu família, comprou casa, um automóvel e uma moto. No entanto, a chegada da pandemia afastou seus clientes e fez a renda despencar. O dinheiro ficou curto em casa para dar conta de todas as despesas. Mesmo assim, o marceneiro não pensou em gastar o valor encontrado dentro da van em setembro de 2019.

"Os serviços pararam de chegar aqui na oficina. Também tenho uma pequena produtora que ficou sem funcionar porque os eventos foram paralisados por causa da covid-19. Foi aí que eu pensei no que poderia fazer para ganhar dinheiro e tive duas ideias", revela.

Um compressor utilizado na oficina para fabricar móveis foi adaptado para sanitizar ambientes nos primeiros meses da pandemia. "Fiz essa adaptação e comecei a fazer sanitização em várias igrejas daqui do bairro. Todo mundo estava muito assustado com a chegada do vírus e, com isso, não faltavam ambientes para eu fazer o serviço de limpeza. Assim, ganhei um dinheirinho extra."

Outra maneira de ter renda na pandemia foi alugar a van para fazer mudanças. Como Ricardo e a esposa, Ester Marino, também já alugavam reboques, decidiram acoplar as carrocinhas ao veículo e ofertar o serviço completo. "Sem ter dinheiro para pagar aluguel, muita gente teve que mudar para casa dos pais ou para espaços menores e mais baratos e precisavam transportar seus móveis. Como tinha carro e reboque em casa, passei a oferecer esse serviço também", conta.

Ricardo Cante e a esposa, Ester Marino, na oficina de marcenaria - Wagner Oliveira/UOL - Wagner Oliveira/UOL
Ricardo Cante e a esposa, Ester Marino, na oficina de marcenaria
Imagem: Wagner Oliveira/UOL

Se colocar no lugar do outro

As cenas que foram repetidas inúmeras vezes nas televisões de todo país mostrando as filas intermináveis nas agências bancárias para o saque do auxílio emergencial traduziam a situação de miséria da maioria da população. Quem já vivia com pouco ou quase nada viu tudo piorar com a chegada da pandemia. As correntes de solidariedade se multiplicaram numa tentativa de amenizar a fome e o desespero de muitos brasileiros. O casal Ricardo e Ester conta que ambos ficavam com um aperto no peito quando viam a aglomeração nas filas para o recebimento do benefício.

"A gente só pensava no risco que aquelas pessoas corriam em contraírem a doença, pois era muita gente junta por muito tempo. A recomendação era de que ninguém saísse de casa, mas as famílias precisavam de dinheiro para sobreviver. Ricardo e eu comentamos sempre que o valor perdido que está com a gente poderia ser de alguém que estivesse ali naquela situação. Isso era angustiante", relembra Ester, esposa de Ricardo.

Ricardo Cante em sua van - Wagner Oliveira/UOL - Wagner Oliveira/UOL
Ricardo Cante em sua van
Imagem: Wagner Oliveira/UOL

O marceneiro não soube precisar até quando vai esperar pelo verdadeiro dono dos R$ 990,20 que estão com ele há dois anos. Mas uma coisa ele garante: se não for para as mãos do proprietário, o valor será usado para ajudar a quem esteja precisando. "Não usei esse dinheiro até agora e nem pretendo fazer isso. Só queria mesmo era que esse mistério fosse esclarecido", finaliza.