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Há mais de 30 anos, costureira trabalha em Kombi sob a luz de velas

Maria Fátima da Silva, de 65 anos: uma vida costurando em uma Kombi - Isabella Cavalcante/ UOL
Maria Fátima da Silva, de 65 anos: uma vida costurando em uma Kombi Imagem: Isabella Cavalcante/ UOL

Isabella Cavalcante

Colaboração para o TAB, de Brasília

31/10/2021 04h01

Na quadra nobre da Asa Sul, em Brasília, há uma Kombi colorida estacionada no mesmo local há 33 anos. Para quem não é morador ou frequentador da área, é difícil desviar os olhos do veículo azul, de pneus murchos e placa antiga demais para rodar no asfalto.

Se passar mais perto, então, o ruído é ainda mais curioso. O motorzinho de uma máquina de costura disputa o espaço sonoro com o barulho dos carros nas ruas. Lá dentro operando a máquina está Maria Fátima da Silva, 65. A Kombi é seu "escritório" e é lá que costura para uma assídua clientela.

O local serve também de dormitório em alguns dias úteis, porque ela mora Santo Antônio do Descoberto, município de Goiás que descreve como "roça". Para ir até o trabalho, pega carona com vizinhos e filhos. De carro, demora cerca de uma hora para chegar. Mas é importante estar em Brasília para pegar mais trabalho e manter a clientela fiel. A rotina de trabalho não é certa: há semanas em que fica direto em Brasília, dormindo na Kombi; em outras, passa o tempo em casa. Quando está na capital federal, chega a trabalhar 12 horas por dia.

Ela possui apenas uma máquina de costura dentro do veículo — manual, porque Fátima não tem acesso à eletricidade. A máquina divide o espaço com um colchão improvisado, sacolas com serviços por fazer ou entregar e prateleiras com produtos. Ali ela também revende cosméticos e doces industrializados. Em casa, ela conta, há mais máquinas de costura.

Para carregar o celular e usar o banheiro, Fátima vai até um dos prédios próximos ao estacionamento e usa as dependências que os porteiros que trabalham por ali usam.

Todas as refeições são feitas no apartamento de uma moradora da quadra, que fala ter feito um pacto com Deus e adotado a costureira como parte da família. Elas se conheceram há muitos anos. Além de atender e conversar com clientes, ouve missas no YouTube e canções gospel, enquanto arremata seus pontos no tecido.

Na tarde em que conversou com a reportagem de TAB, remendou uma calça jeans, consertou um vestido, um macacão e até um uniforme de judô. Só tirou a máscara para posar para as fotos — a contragosto, pois preferia que apenas a Kombi fosse fotografada.

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Maria Fátima também vende produtos, mas não para de costurar
Imagem: Isabella Cavalcante/ UOL

Costureira por acaso

Fátima não herdou o ofício de família. Tampouco fez curso para dominar o universo das agulhas e linhas. Aprendeu a costurar costurando. Na época, a piauiense tinha se mudado para Brasília com os seis filhos — veio atrás do marido, que tinha vindo antes à procura de trabalho.

Certo dia, uma vizinha perguntou se ela não gostaria de ganhar dinheiro com conserto de roupas. Fátima aceitou o desafio de reparar um zíper, passou no teste e alugou a van que a vizinha estabelecera em uma parte nobre de Brasília para ser seu espaço de trabalho.

O veículo chamava atenção dos moradores, que logo se tornaram clientes fiéis. Poucos meses depois, ela decidiu que queria ter sua própria Kombi. Com o marido, reuniram o que podiam para comprar o veículo: um cavalo, uma carroça, o fogão da casa da família algum dinheiro, à época. No caminho de Samambaia, cidade satélite onde moravam, para o coração de Brasília, um início de incêndio quase queimou os sonhos de Fátima. A Kombi começou a pegar fogo, com os seis filhos dentro.

Desesperada, ela saiu do veículo, tirou as crianças e removeu às pressas as cortinas do interior. Ninguém ficou ferido. Na mesma noite, a costureira chamou um guincho que levou a Kombi ao espaço do estacionamento que ocupa até hoje.

O veículo sobreviveu e provou ser uma moradia digna para hospedar, além das costuras, uma história de vida marcada por resiliência. Por trás das portas e da máquina de costura com marcas do fogo, Fátima trabalha noite adentro à luz de velas e cumprimenta simpaticamente moradores da quadra. O bom humor contagiante e os olhos focados no tecido nem deixam aparecer uma dura história de vida, que começou em uma família humilde do Piauí.

Infância roubada

Dona Fátima conta que veio de uma família muito pobre do interior do Piauí. Com muitos filhos e poucos recursos, a mãe decidiu que seria uma boa ideia mandar a filha para viver com uma prima recém-casada, no Ceará. Chegando lá, aos 10 anos de idade, a agora costureira diz que teve uma vida "quase de escrava". Ela narra que acordava às 5 horas da manhã para preparar o café e, durante o dia, fazia todos os tipos de trabalho, como pisar arroz, pegar milho na roça, cozinhar e levar bacias de comida para os trabalhadores da família. Aos 15 anos, foi resgatada por um irmão. Viajaram dois dias e meio a pé de volta ao estado natal.

"A minha vida foi muito dura, não sei se foi boa ou foi ruim. Foi os dois", ela reflete. Casou aos 17 anos e teve o primeiro filho nessa idade.

Anos depois, a piauiense faria outra jornada para longe de casa, dessa vez rumo a Brasília. Encontrou o marido na nova cidade sem trabalho. "Estava mais pobre do que eu", fala. A família se instalou em uma invasão, foi movida para moradias do governo e se estabeleceu financeiramente.

A perda da visão

Poucos anos atrás, a costureira teve um grande susto no que descreve como um "acidente de trabalho". Ela conta que, nesse dia, costurou sem parar e dormiu apenas uma hora na van. Ao voltar para casa, adormeceu sentada na cama, sentiu o corpo cair e o rosto colidiu com uma máquina de costura que estava no chão.

O objeto acertou em cheio um dos olhos da costureira, que teve o lado direito da visão seriamente comprometido. Fátima fala que a dor era insuportável e a preocupação piorou ao perceber que tinha perdido a visão de um dos olhos.

Uma das clientes indicou um médico, que concluiu que ela tinha um vazamento de retina. Mas o remédio custava R$ 5 mil por aplicação e os profissionais de saúde consultados por ela não conseguiam prever quantas doses seriam necessárias. Um dos médicos fez uma carta para que ela levasse a um consultório especializado em Brasília. Assim, a consulta teve o preço diminuído para R$ 50 e a aplicação do tratamento custou R$ 500. Dona Fátima recebeu cinco doses e uma parte pequena da visão voltou.

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Maria Fátima da Silva, de 65 anos, e sua kombi
Imagem: Isabella Cavalcante/UOL

O problema trouxe grandes desafios no trabalho: à noite ela faz as costuras apenas com a luz do celular ou com a iluminação de uma única vela, que fica apoiada em um copo virado de cabeça para baixo ou na máquina de costura, forçando ainda mais a vista.

Encontro com Deus

A religião é algo que Dona Fátima encontrou pelos caminhos da vida e na fase adulta. Segundo ela, a dependência de cigarro já durava mais de 50 anos e iria matá-la, então "Deus tirou de mim". Depois, a benção veio em forma de força para largar a bebida e, mais recentemente, na recuperação de parte da visão.

Falar de fé deixa a costureira visivelmente emocionada e, por vezes, com os olhos marejados. Atualmente, ela paga dízimo, frequenta a igreja e todos os dias liga o YouTube em casa e na Kombi para assistir a missas desde as primeiras horas da manhã até adormecer. Músicas gospel também preenchem o pequeno espaço de trabalho dela na parte da tarde.

Ela conta que uma pergunta frequente dos clientes é se ela não tem receio de ficar sozinha ali, especialmente à noite. "Medo a gente sempre tem, hoje você não se sente segura em lugar nenhum, mas Deus e seu anjo da guarda cuidam de tu. Peço proteção e é isso, Ele cuida de mim", afirma.

Para Dona Fátima, a maior dádiva é ter conquistado independência e liberdade, principalmente pela profissão. "Comecei a trabalhar com 10 anos e nunca mais parei. Enquanto puder me mexer, não vou parar", diz a dona da Kombi colorida.

Recentemente, ela adquiriu uma casa "na roça", onde possui seus próprios animais, em especial uma galinha, como na infância, e diz ter encontrado mais felicidade no local que remete às origens do Piauí. Aos domingos, a casa simples vira o ponto de encontro dos seis filhos, 28 netos e 8 bisnetos, que preenchem a vida de Dona Fátima, ao lado da religião e da costura. Seu marido já faleceu.

Na Kombi, é possível ver uma foto de parte da família reunida no porta-retrato pendurado em uma das janelas. Boa de papo, o ruído da máquina fica imperceptível. Mais gente passa por ali, o sol se põe. Dona Fátima segue mexendo seus dedos ágeis entre tecidos, barras e reparos sem parar.