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Como um padre protegeu mais de mil moradores de rua da covid por 96 dias

O padre Simone Bernardi, que coordenou uma quarentena arrojada no início da pandemia - Fernando Moraes/UOL
O padre Simone Bernardi, que coordenou uma quarentena arrojada no início da pandemia
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Angélica Santa Cruz

Colaboração para o TAB, em São Paulo

03/11/2021 04h00

Em fevereiro do ano passado, o sars-cov-2 já havia escapado da China, a Itália era o epicentro da pandemia e as ruas de São Paulo ainda se esbaldavam na alegria de ser um novo foco de Carnaval no Brasil. No Arsenal da Esperança, o maior centro de acolhimento de moradores da cidade, o padre Simone Bernardi começou a receber telefonemas insistentes de Turim, onde fica a sede da comunidade de missionários que administra o abrigo.

"Aqui, a gente especulava se a covid-19 teria forças para chegar. Eles lá na Itália, desesperados, insistiam que estávamos em perigo, precisávamos nos preparar. Aos poucos, vimos que tinham razão. Era questão de horas para confirmar o primeiro caso no Brasil. E isso aqui poderia virar uma bomba biológica se a gente não fizesse nada", lembra Bernardi.

Começou ali uma daquelas histórias melancólicas, tensas -- e paradoxalmente bonitas -- que costumam aparecer quando se começa a remexer nos escombros de uma guerra.

Bernardi no Arsenal da Esperança - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Bernardi no Arsenal da Esperança
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Isolamento total

Sem alarde, como quase tudo o que acontece no universo paralelo dos moradores de rua, o abrigo entrou para a literatura da epidemiologia como um caso de "escape communities", maneira como os especialistas costumam se referir às comunidades que conseguem se fechar e escapulir de grandes surtos.

Durante 96 dias -- de 23 de março a 29 de junho -- 1.026 brasileiros sem-teto driblaram a covid-19 entrincheirados no prédio do Arsenal da Esperança, uma construção histórica erguida em 1886, na Mooca, ao lado do Museu do Imigrante.

Uma das características das "escape communities" é que seus integrantes costumam recorrer a um combo que normalmente inclui paciência, disciplina e alto grau de confiança nas lideranças escolhidas. No Arsenal, um desses personagens capazes de apontar o caminho foi Bernardi -- um padre calvo, de sorriso aberto e ar jovial que costuma usar óculos de aro, calça jeans, moletom e tênis.

Aos 45 anos, Bernardi é missionário da Fraternidade da Esperança, uma das comunidades leigas que pipocaram na Itália na década de 1960 depois do Concílio Vaticano II e, aos poucos, foram reconhecidas pela Igreja Católica. Sem falar uma palavra de português, chegou ao Brasil em 2005 para morar e trabalhar no centro de acolhida.

Mergulhou fundo no universo dos nômades urbanos da maior cidade do país, aprendeu o significado de gírias que até hoje acha curiosas -- como "boca de rango" que pronuncia com um r esgarçado --, e conviveu de perto com um de seus modelos eclesiais, o jesuíta dom Luciano Mendes de Almeida, durante décadas um dos bispos mais influentes no tabuleiro da Igreja brasileira, até ser escanteado no arcebispado de Mariana, em Minas.

Bernardi no refeitório do Arsenal da Esperança - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Bernardi no refeitório do Arsenal da Esperança
Imagem: Fernando Moraes/UOL

O Arsenal recebe 1.200 desabrigados por dia -- em 25 anos de existência, acolheu 65 mil integrantes da população masculina de rua, historicamente a mais expressiva. Depois de várias noites mal dormidas, Bernardi e os outros cinco missionários que administram a casa concluíram que arriscar uma grandiosa quarentena seria a única maneira de não deixar essas pessoas desprotegidas.

No fim da tarde da segunda-feira 23 de março -- 27 dias depois do primeiro caso de covid-19 confirmado no Brasil --, funcionários dividiram os sem-teto que esperavam para entrar no Arsenal em grupos de 50 e avisaram: "Senhores, estamos diante de uma coisa que se chama pandemia. Não sabemos o que será, mas já sabemos que é muito perigoso".

Alguns já tinham informações sobre os vírus. Outros percebiam que a cidade estava mudando, com comércio e escritórios fechando. "Então fizemos a proposta, com o coração a mil", lembra o padre. As 1.200 pessoas da fila foram informadas de que a partir daquele momento quem entrasse no Arsenal ficaria completamente isolado, por tempo indeterminado - e os que decidissem sair nesse período não poderiam voltar. Só 174 não toparam passar pelos portões de ferro.

Alta voltagem

Em tempos normais, quem chega ao Arsenal faz um cadastro, recebe itens de higiene, uma cama limpa, jantar e café da manhã. Os que se engajam em atividades como cursos de profissionalização podem ficar o dia inteiro. O resto tem horários fixos para entrar e sair. Reembicar essa rotina para 24 horas de uma convivência por tempo indeterminado foi uma "pedreira", como define.

Nos primeiros dias, o medo pairava - não se sabia se alguém por ali já estava infectado. A fila para o almoço dava voltas e os acolhidos ficavam nervosos quando eram instados a manter distância. A coisa se organizou quando um deles, um senhor de cabelos brancos, sugeriu turnos de refeições por alojamentos -- o lugar tem espaços de diferentes tamanhos, alguns deles com beliches para até 150 pessoas.

O lugar era uma panela de pressão. De olho em seus celulares, os quarentenados recebiam fake news. Alguns entravam em pânico: "será mesmo que está tudo fechado lá fora? E ser for um complô para eliminar a gente?".

Bernardi na biblioteca do Arsenal da Esperança - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Bernardi na biblioteca do Arsenal da Esperança
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Para acalmar os ânimos, os missionários apostaram em bombardeios de informações. Montaram uma imensa tenda branca no pátio, onde o padre Simone dava palestras diárias explicando como o vírus age no corpo e apontando em mapas o percurso da doença no mundo. "Era uma mistura de Mandetta e Atila Iamarino", brinca. Depois, bolou vídeos em que rostos familiares por ali - como voluntários e ex-acolhidos - contavam que também estavam presos em casa, mas que era preciso se proteger.

A voltagem emocional dentro do Arsenal era alta. A maioria dos acolhidos era formada por homens jovens, entre 18 e 35 anos. Havia os que estavam há muito tempo nas ruas. Havia casos dramáticos como o de um rapaz que gastou tudo o que tinha para sair do Mato Grosso e fazer um teste no Palmeiras, mas topou com o clube fechado e não sabia para onde ir. Ou o dono de um bar que acumulou dívidas, faliu e acabou sem uma casa para morar. E havia um alto número de dependentes químicos, lidando com crises de abstinência brutais. Consolar a tristeza dessas pessoas, e entretê-las o dia inteiro, virou um desafio fenomenal.

Doações

Os padres foram se virando. Imploraram no Instagram para alguém doar uma mesa de pingue-pongue. Dois dias depois, chegou uma entrega da Amazon, com uma enorme caixa que fez a alegria da casa. Quatro salas foram reservadas para barulhentas competições de videogame, feitas com jogos doados.

O Arsenal da Esperança vive de uma parceria com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social e com recursos da sociedade civil, principalmente escolas e faculdades. No começo da pandemia, parte desses lugares fechou. "E foi como se todas as luzinhas à nossa volta se apagassem, uma após a outra. Tivemos um enorme problema de mantimentos", lembra o padre.

O refeitório precisava de 350 quilos de arroz e 150 quilos de feijão por dia. Mas desconhecidos começaram a telefonar oferecendo ajuda e fizeram campanhas de arrecadação entre vizinhos. Alguns apareceram usando proteção da cabeça aos pés, em carros tão lotados de doações que os pneus ficavam rebaixados.

No fim de maio, com a inquietação dos quarentenados no pico, houve um encontro na tenda para decidir se o isolamento seria mantido. O padre Simone mostrou no telão dados de hospitais públicos, ainda lotados. "Pessoal, vocês sabem que se alguém aqui passa mal, não vai ser internado no Einstein. E aí? Como vamos fazer?". Seguiu-se um debate confuso, que durou horas e deixou o religioso extenuado, até que a maioria decidiu continuar.

A quarentena aguentou mais um mês. Quando o governo estadual flexibilizou o isolamento, o Arsenal decidiu abrir as portas. No dia 29 de junho, às cinco da manhã, o padre Simone estava a postos no portão, tirando fotos com os primeiros que saíram.

Bernardi após a quarentena do Arsenal da Esperança - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Bernardi após a quarentena do Arsenal da Esperança
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Subversão

Integrante do Centro de Contingência do Coronavírus do Estado de São Paulo, o grupo de cientistas que auxiliou o governador nas medidas de combate à covid-19, o infectologista e epidemiologista Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza avalia o que se passou naquela cidadela: "Foi uma aposta arriscada, mas feita na hora certa, no momento em que a força da infecção ainda era baixa. E depois cumprida com responsabilidade para proteger aquele grupo. Mas é antes de tudo uma história muito bonita, porque é de uma sensibilidade social sem paralelo".

De fato, dos clássicos da literatura como o "Decamerão", de Giovani Boccaccio, em que um grupo de sete moças e três rapazes aproveitam um isolamento contra a peste negra em um castelo na Toscana para recitar uma centena de contos, à vida cor-de-rosa das celebridades que postaram nas redes sociais suas quarentenas contra a covid-19 em praias desertas, todos os antecedentes históricos são os de que apenas as elites conseguem se isolar por vontade própria. "Esse pessoal conseguiu subverter esse padrão. Protegeu a população mais vulnerável", diz Fortaleza.

Na tarde da quarta-feira, 27 de outubro, os resquícios da quarentena ainda rondavam o Arsenal da Esperança. A enorme tenda branca ainda estava lá, com cadeiras dispostas na frente de um imenso telão, onde um punhado de abrigados assistia a um filme. As salas criadas para as competições de videogames continuavam abertas. A biblioteca continuava emprestando 60 livros por dia, a maioria deles de literatura espírita ou de autoajuda.

E havia muito movimento nos corredores com fotografias históricas da Hospedaria dos Imigrantes que funcionou no mesmo prédio -- e que mostram imensas levas de imigrantes italianos, às vezes vestindo ternos, mas sem sapatos, que também foram abrigados ali. "Agora estamos vivendo outra pandemia, a da fome e da falta de perspectiva. Então estamos recebendo as pessoas durante o dia também", diz o padre.

Algumas histórias muito parecidas de isolamento são extensamente documentadas -- e foram recuperadas por epidemiologistas de todo o mundo quando a covid-19 se alastrou até se transformar na pior pandemia dos últimos 100 anos. Entre elas, o curioso caso de Gunnison, cidadezinha montanhosa do Colorado, nos Estados Unidos.

Em outubro de 1918, cercada pela gripe espanhola que já avançara do Alasca ao Texas, o município foi o único do oeste americano a adotar um esquema draconiano: ninguém entra; e quem quiser pode sair - mas não volta. Igrejas, escolas e lojas foram fechadas. Estradas nos limites com outros vilarejos ganharam barricadas. A quarentena durou quatro meses e graças a ela, os 1.300 habitantes do lugar driblaram as duas primeiras ondas da gripe que abarrotava hospitais e cemitérios nas proximidades.

A experiência de quarentena no maior abrigo de São Paulo apareceu em um documentário sobre o lugar, chamado "Vidas (in)visíveis: Um Arsenal de Esperança". Mas ainda é, a exemplo do público que recebe, coberta por um estranho manto de invisibilidade.

"Esse episódio pode até não entrar para um livro. Ainda assim sabemos que vivenciamos uma história e tanto. Parece um paradoxo, mas talvez nossos acolhidos tenham entrado menos em depressão do que pessoas que moram em condomínios de luxo e enfrentaram suas dores sozinhas. Para quem quer aprender, essa pandemia pode ensinar algumas coisas. Entre elas, a importância do sentido de comunidade". Honestamente, tanto faz se alguém lá fora soube disso, o importante é que conseguimos", conclui o padre Simone Bernardi.