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Histórica, greve de 'servos de Deus' confronta igreja do pastor Valdemiro

Trabalhadores da Igreja Mundial fazem protesto diante do templo central no Brás, centro de São Paulo, durante greve - Rodrigo Bertolotto/UOL
Trabalhadores da Igreja Mundial fazem protesto diante do templo central no Brás, centro de São Paulo, durante greve Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Rodrigo Bertolotto

Do TAB, em São Paulo

19/11/2021 10h03

Os grevistas prometeram em ata que não iam usar carro de som na porta do templo para não atrapalhar os cultos. Por seu lado, o patrão disse, durante um sermão, que os trabalhadores em greve têm "a alma no fogo do inferno". A histórica paralisação dentro da Igreja Mundial do Poder de Deus, denominação liderada por Valdemiro Santiago, teve uma negociação bem peculiar.

"Eles ficam falando de teologia da prosperidade, mas não são capazes de pagar em dia seus funcionários. A gente passa vergonha com impostos atrasados e sem vale-refeição para comer", reclama a atendente Vera Lúcia Nazário, que foi obreira voluntária por três anos antes de virar atendente com carteira assinada. Há oito anos ela trabalha na central de carnês e boletos para quem paga dízimos e doações. Ela estava no grupo de grevistas mobilizados na entrada da sede central no Brás, centro de São Paulo.

Segundo sindicalistas, incluindo os do Seibref (Sindicato dos Empregados em Instituições Beneficentes, Religiosas e Filantrópicas de São Paulo), esta é a primeira vez que houve uma paralisação de funcionários diretamente da estrutura de uma igreja no Estado de São Paulo — não há notícia sobre paralisação similar no país. Além da área administrativa, parte do pessoal da TV Mundial também estava parado.

Pelo menos 40% dos mais de mil trabalhadores da instituição aderiram ao movimento desde o último dia 9 até hoje (19), data em que a Igreja Mundial se comprometeu a pagar todos os salários e benefícios atrasados. Em assembleia ao meio-dia, a greve foi encerrada por votação após a igreja efetuar os pagamentos. Agora, os trabalhadores voltam ao trabalho, mas permanecem em "estado de greve", esperando que a empresa cumpra até janeiro com as cotas que faltam do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) junto à Caixa Econômica Federal.

Durante um culto transmitido ao vivo no fim de semana, Valdemiro ameaçou demitir e terceirizar os serviços dentro da igreja. Horas depois, a Igreja Mundial tirou o vídeo do ar de todas as plataformas.

Obreiras ou operárias?

"É muito difícil convencer a entrar em greve, porque muitos confundem o trabalho com o amor a uma causa, e acabam aceitando os erros e excessos dos chefes. Mas o direito do trabalhador foi tão desrespeitado aqui que eles perceberam que há uma grande diferença entre o que os religiosos falam e o que eles fazem", afirma Luis Gustavo De Falco, presidente da Seibref.

Um exemplo é Vera Lúcia, fiel e trabalhadora divorciada, com dois filhos. Vinda de família evangélica há três gerações, ela foi primeiramente seguidora da Igreja Mundial, depois voluntária em ações evangelizadoras (incluindo uma central de orações, que atende ligações telefônicas para confortar os adeptos), até ser contratada para trabalhar na arrecadação de ofertas para a denominação.

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Vera Lúcia Nazário é fiel, obreira e funcionária da Igreja Mundial, mas está em greve após atraso de salários e benefícios
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

"Eles fazem uma confusão na cabeça da gente. Falam que, por ser uma obra de Deus, não pode fazer greve. Mas mudei de opinião depois de ver tanta injustiça com os colegas. Os líderes religiosos não vivem o que pregam", desabafa Vera Lúcia. Segundo ela, a pressão interna é grande. "Tenho duas colegas que têm parentes bispos e temem alguma retaliação sobre eles na estrutura da igreja. Elas apoiam a greve, mas continuam batendo ponto", conta.

Edineide Jesus foi obreira por dois anos e depois trabalhou mais oito anos como atendente dos carnês e boletos, até ser demitida em outubro por cobrar o salário de setembro atrasado para uma chefe. "Eles acham que, por ser evangélico, a gente não deve reclamar." Agora ela frequenta a Assembleia de Deus e busca seus direitos na Justiça. Está processando os superiores por assédio moral.

Adriana Firmino, três anos de obreira e sete como funcionária, tem história parecida. "Os chefes aqui são peritos em humilhar. Eles mexem com o psicológico das pessoas. Quando é para cobrar e punir, aqui é uma empresa. Quando o trabalhador tem razão, é uma igreja, e se queixar é coisa do diabo."

'Vamos terceirizar'

Nos cultos do último fim de semana, Santiago pediu donativos aos fiéis para cobrir os gastos com o 13º salário dos funcionários. "Queria que vocês ajudassem a obra, porque não sou o dono da Casa da Moeda", discursou diante da plateia lotada e dos telespectadores. Chamou os grevistas de "revoltados", "porque é a primeira vez que o Brasil tem um presidente que gosta da obra de Deus". O religioso seguidamente visita Jair Bolsonaro.

Santiago foi agricultor e pedreiro em Palma (MG) até entrar para a Igreja Universal do Reino de Deus e se transformar em um dos bispos mais populares e arrecadadores. Em 1998, rompeu com Edir Macedo e fundou sua própria denominação, que reúne mais de 300 mil adeptos no Brasil atualmente.

Após o sucesso, comprou fazendas, mansões, helicóptero, avião e iate. Chegou a ter mais de 1.600 horas mensais de programação na TV aberta, passando por canais como Bandeirantes, Canal 21, RedeTV! e CNT. Com a pandemia e a baixa na arrecadação dos dízimos desde 2020, com templos fechados, ele não cumpriu seu acordo com a TV Ideal (ex-MTV) e diminuiu as horas de transmissão. Agora os cultos são exibidos pela Rede Brasil.

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O pastor Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial, participa de live com o presidente Jair Bolsonaro
Imagem: Marcos Correia/PR

Em uma transmissão ao vivo, ameaçou demitir e terceirizar a produção da TV Mundial. "Tenho dó porque muita gente gosta da obra, trabalha aqui porque gosta, faz de coração. Mas não vai ter jeito. Vou ter que acabar demitindo esses também e contratando uma empresa para fazer o serviço da igreja", discursou Valdemiro.

Vera Lúcia, que trabalha diretamente com as doações, diz não acreditar que falte dinheiro para cumprir as obrigações trabalhistas do grupo. "Eu vejo rios de dinheiro entrando. Tem até um cofre cercado de seguranças atrás do altar para as doações maiores", relata.

Temor de agressão

"Tenho medo de uma agressão física, porque tem muito bitolado nos cultos. E os pastores ficam jogando eles contra a gente. Até por isso não fizemos mobilização no fim de semana, quando a igreja está lotada", afirma Alexandre Oleto, coordenador de programação da TV Mundial e também membro da diretoria do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão do Estado de São Paulo.

Ele conta que já processou a Igreja por assédio moral por um bispo tê-lo chamado de "resto de outras emissoras", durante uma transmissão ao vivo. Com o vídeo como prova documental, ele ganhou R$ 30 mil de indenização e foi reintegrado ao quadro de funcionários.

Segundo ele e outros trabalhadores ouvidos pela reportagem do TAB, os atrasos nos pagamentos são constantes nos últimos dez anos. "Eles demoram até dez dias. Minha ex-mulher sempre me liga dizendo que a pensão alimentícia dos filhos não caiu e que vai na delegacia me denunciar. Olha o perrengue que passo por trabalhar aqui", relata Oleto.

Ele ainda afirma que é comum Valdemiro mandar três bispos subalternos para o switcher (sala que centraliza a edição da transmissão) para ofender e humilhar os trabalhadores, quando não gosta de algo.

Bonachão e milagreiro

Com camisas estampadas e chapéu de vaqueiro, o pastor Valdemiro Santiago destoa do estilo típico dos pastores evangélicos e seus figurinos. A fala rouca, o linguajar popular e o gestual bonachão cativaram fiéis de outras denominações.

Leigo em teologia (e orgulhoso disso), Valdemiro baseia seu êxito na apresentação de "milagres" nos cultos. Ele passa de um testemunho a outro, troca por um hino ou uma pregação para manter a audiência atenta, tanto no templo quanto na tela. Faz pausas dramáticas e caretas para as câmeras — são oito no total dentro do templo, sendo que três têm que focalizar sempre o apóstolo para não perder nenhum gesto ou fala dele.

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Valdemiro Santiago em vídeo sobre "cura" do coronavírus
Imagem: YouTube

Atrás do púlpito do altar, há telas de retorno onde ele vê como está a transmissão. Se não gosta de algum corte, chama o editor da TV de "cortador do demônio" — tudo isso ao vivo para todo o Brasil e com transmissão para África e Europa.

Nas campanhas de arrecadação da igreja, já vendeu tijolo, pá de pedreiro, perfume, meia ungida, "fronha dos sonhos" e até "toalhinha dos milagres", marcada pelo suor do pastor. Quando anunciou um feijão que curava covid-19, Valdemiro foi alvo de notícia-crime por "possível prática de estelionato" — e logo retirou os anúncios do ar. Durante a quarentena de templos fechados, chegou a fazer merchandising de colchão no meio das orações, classificando o produto como "dádiva de Deus".

Outro lado

A Igreja Mundial foi procurada durante dois dias pela reportagem para comentar a greve, os problemas com direitos trabalhistas e denúncias de maus-tratos aos funcionários, mas comunicou que não ia se pronunciar sobre os assuntos. Nos sermões, Valdemiro responde que as denúncias são "ofensas" a ele e sua família — sua mulher e suas filhas fazem parte do comando da igreja. Raquel Santiago, filha de Valdemiro que chefia a organização, soltou hoje à tarde um comunicado em áudio para os funcionários, agradecendo os que não aderiram à greve e afirmando que a empresa cumpriu os prazos para os pagamentos atrasados, protocolados na Justiça após o início da paralisação.