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Morte no Carrefour: após um ano, família de João Alberto tenta recomeçar

Milena, viúva, sentada na sala do apartamento comprado com a indenização pela morte de Beto - Carlos Macedo/UOL
Milena, viúva, sentada na sala do apartamento comprado com a indenização pela morte de Beto
Imagem: Carlos Macedo/UOL

Hygino Vasconcellos

Colaboração para o TAB, de Porto Alegre

19/11/2021 04h00

A moradia é quase idêntica àquela de onde João Alberto Silveira Freitas e Milena Alves partiram, na fatídica noite de 19 de novembro de 2020, em direção ao Carrefour. O prédio tem três andares, janelas amarronzadas e é coberto com telhas de barro. Atrás dos portões, um pequeno jardim separa a calçada da fachada do edifício, erguido em diagonal à rua. Quem conhece a região identifica o lugar como parte da "Vila do Iapi", conjunto habitacional com mais de 2,5 mil prédios e casas, construídos entre 1940 e 1950 para abrigar operários.

O novo endereço da viúva fica a duas quadras do anterior. Há um ano, o casal deixou o apartamento para ir ao hipermercado e comprar ingredientes para fazer um pudim. Beto, como era conhecido, nunca mais voltou. Acabou morto depois de ser espancado por dois seguranças. Milena viu tudo e foi impedida de conter as agressões ao marido, com quem estava há nove anos.

As lembranças do dia estão claras na cabeça de Milena. Foram elas que expulsaram a viúva do antigo apartamento, acompanhada da filha de 21 anos. "Não consigo ficar lá, não consigo entrar onde nós morávamos. Nunca mais fui à casa em que a gente vivia. Minha filha enxerga bastante ele, estava sempre presente ali. Deve ter sido pela forma brutal [com que foi morto]. Ele ficou por ali."

Rotina após a perda

Após perder o marido, Milena foi morar com os pais. Só mudou de endereço após receber uma parcela do R$ 1,1 milhão do Carrefour, em maio, referente à indenização. Com parte do dinheiro conseguiu comprar um apartamento de 51 m². O restante decidiu deixar guardado "em investimentos". O imóvel foi oferecido por um corretor e a proximidade da casa dos pais, já idosos, fez Milena fechar negócio.

A viúva reconhece que ela própria já não é a mesma por dentro. Não sai sozinha, parou de ver televisão e continua tomando remédios de tarja preta. "Nem meu sono é mais o mesmo depois que ele faleceu. Durmo tarde e acordo cedo." Também parou de escutar funk e pagode -- estilos preferidos de Beto -- para não cair no choro.

Em pouco mais de uma hora de conversa, ela manteve o olhar baixo e, por vezes, parecia estar com o pensamento longe. Ao longo da entrevista, fumou três cigarros.

Milena Borges Alves, viúva de João Alberto - Carlos Macedo/UOL - Carlos Macedo/UOL
Milena Borges Alves
Imagem: Carlos Macedo/UOL

Um vizinho incômodo

O novo apartamento também é próximo do Carrefour. A casa antiga e a nova ficam a cerca de 400 metros do hipermercado. As idas ao estabelecimento, antes corriqueiras, quase diárias, cessaram com a morte do marido no estacionamento da unidade. "Não tenho coragem", diz ela. Hoje ela anda mais de 15 minutos para comprar mantimentos, em outro mercado.

O pai de João Alberto, o pastor João Batista, 66, também não faz mais compras no Carrefour. Ele gostaria mesmo é de nunca mais pisar em qualquer unidade da rede. Não teve alternativa, porém, quando deixou de receber uma fatura do cartão de crédito ligado à marca. Foi o próprio Beto que insistiu que ele contratasse o serviço, já que nem sempre havia dinheiro para fazer as compras.

Para resolver a pendência, teve de ir à mesma loja em que o filho foi morto. Foram duas visitas, em fevereiro e outubro. Na primeira, respirou fundo e entrou. Tomou o cuidado de passar por uma entrada diferente daquela em que o filho foi morto. Não chegou a ir às gôndolas.

"Foi muito estranho. E nós costumávamos ir ali [no Carrefour] dia sim, dia não."

João Batista, pai do João Alberto, no apartamento comprado por ele com a indenização - Carlos Macedo/UOL - Carlos Macedo/UOL
João Batista, pai de João Alberto
Imagem: Carlos Macedo/UOL

Antes da morte do filho, o pastor residia a mais de 4 km de distância do Carrefour da zona norte de Porto Alegre. Agora, mora no bloco ao lado do apartamento de Milena, no terceiro andar. João Batista adquiriu o imóvel com parte da indenização recebida -- os valores por pessoa não foram revelados, mas o UOL apurou que a família recebeu, no total, mais de R$ 5,2 milhões.

Os dois apartamentos são praticamente iguais: dois quartos, sala, cozinha e banheiro. As moradias são simples e pouco espaçosas. "Eu gosto daqui, bate vento e a vista é agradável", diz a viúva no apartamento do ex-sogro.

"A nossa vida veio parar nessa condição financeira por causa do Beto. Já sou uma pessoa de terceira idade, o que eu viso é mais adiante. Quando chegar a minha hora de partir, vou deixar [o imóvel] para os próximos", diz João Batista.

Nas duas casas há poucos objetos que lembram Beto. As roupas dele, que estavam de posse de Milena, foram doadas para amigos. "Se tu tem que fazer uma coisa por uma pessoa, eu acredito que tem que ser enquanto vivo. Depois de morto ficar com uma camisa, uma lembrança... Aquilo ali só vai te remeter a uma lembrança terrível."

João Batista, pai do João Alberto, mostra a Bíblia e uma foto do filho - Carlos Macedo/UOL - Carlos Macedo/UOL
João Batista, pai do João Alberto, mostra a Bíblia e uma foto do filho
Imagem: Carlos Macedo/UOL

O que ficou

As únicas recordações de Beto ficaram em fotografias e na própria memória da família.

Sentado no sofá, o pastor olhava cuidadosamente um álbum de retratos da época em que Beto era ainda criança. Horas antes e a 6 km de distância, a neta de João Batista também detinha a atenção em imagens do pai. Em uma delas, Beto aparece sem camisa; em outras duas estava no meio de outras pessoas em uma confraternização.

Filha mais velha de Beto, Thaís Alexia Amaral Freitas, 23 anos, não era próxima do pai. Parte do distanciamento se deve à própria criação dela, na qual Beto não estava presente. Na verdade, o relacionamento dos pais ficou apenas no namoro e, desde a infância, a menina acabou ficando mais apegada aos avós paternos. "Passava os finais de semana na chácara deles."

Há um ano, a morte de Beto a pegou de surpresa. Naquela noite, ela já estava deitada na cama quando recebeu uma mensagem de uma prima no WhatsApp. Sem esperar pela resposta, a parente telefonou e logo disparou: "já sabe o que aconteceu?". Ao notar o desconhecimento de Thaís, a prima desconversou. Queria que outra pessoa desse a notícia.

Thaís Freitas, filha do João Alberto, em sua casa - Carlos Macedo/UOL - Carlos Macedo/UOL
Thaís Freitas, filha de João Alberto
Imagem: Carlos Macedo/UOL

Foi por meio de sua mãe que Thaís descobriu que o pai havia falecido após ser espancado. Naquela hora, o vídeo das agressões já circulava na internet e acabou caindo na caixa de mensagens dela. Em um primeiro momento, não imaginou que aquele homem caído no chão era seu pai. Ainda incrédula, ligou para seu avô. Ao saber do incidente, João Batista havia corrido para o estacionamento do Carrefour e confirmou a trágica notícia. Naquela hora, uma série de sentimentos passou pela cabeça de Thaís.

"Raiva e culpa, até por não ser tão próxima assim dele, de não ter aproveitado um pouco mais do que podia ter aproveitado. E dor por estar vendo o vídeo do jeito que aconteceu", lembra Thaís. Com a indenização do Carrefour, ela comprou o apartamento, antes alugado por ela.

Na ocasião do crime, João Batista estava em um culto prestes a terminar quando o telefone passou a tocar insistentemente. Do outro lado da linha, uma mulher desconhecida disse: "acredito que tenham matado seu filho". A ligação deixou o pastor sem reação por segundos. "Foi como se tivesse puxado o tapete debaixo dos meus pés. Fiquei no ar, não sabia o que eu ia fazer."

O pastor largou tudo e, em 20 minutos, chegou ao hipermercado. No caminho, acreditava que poderia ter ocorrido um engano. "De repente nem é isso que estão noticiando", pensava ele. Mas encontrou o filho no chão, com paramédicos do Samu tentando reanimá-lo.

Thaís Freitas, filha do João Alberto, em sua casa - Carlos Macedo/UOL - Carlos Macedo/UOL
Thaís Freitas, filha do João Alberto, em sua casa
Imagem: Carlos Macedo/UOL

Naquele momento, Beto já estava sem vida, mas populares continuavam gravando o desenrolar da história por celulares. Os vídeos, compartilhados exaustivamente, mal foram vistos pelo pastor. "Eu olhei muito pouco, eu procuro me distanciar daquilo ali, me lembrando dos momentos bons que a gente viveu com ele."

Um desses momentos foi o último aniversário de João Alberto, comemorado em 11 de outubro, pouco mais de um mês antes da morte. Naquele dia, foram nada menos que três comemorações regadas a cerveja e churrasco.

"À medida que vai passando, parece que eu vou me lembrando mais das coisas que aconteciam com ele quando criança do que agora, depois de homem formado. Essas lembranças machucam muito", diz João Batista.

Foto de Beto na infância -  Carlos Macedo/UOL -  Carlos Macedo/UOL
Foto de Beto na infância
Imagem: Carlos Macedo/UOL

Neste ano, obviamente, não houve motivo para festejos. Na data, o pai de Beto foi rezar no cemitério, acompanhado de dois netos e do cunhado.

Os restos mortais dele estão em uma "gaveta", no qual o caixão não tem contato com a terra e fica "suspenso". O cemitério vertical acaba formando extensos paredões no terreno e o espaço entre uma fileira e outra é preenchido com túmulos no chão. Os corredores são estreitos, ficando até difícil chegar na gaveta de Beto. É visível que o local carece de manutenção.

João Batista demonstra desconforto por ter colocado o corpo do filho em uma gaveta. Por isso, planeja transferir os restos mortais para o Cemitério Parque Jardim da Paz, um dos mais caros da cidade. Espalhado por 20 hectares, o local chama a atenção pela área verde, com gramado e árvores cercando os túmulos. A beleza do local contrasta com a brutalidade da morte de Beto.

Será que a mudança de lugar trará mais conforto à família? "Estou de luto ainda, mas Deus tem me confortado", reconhece o pastor.