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Vizinha que socorreu vítimas de chacina: 'vivemos numa região abandonada'

Familiares e moradores da Palmeira esperam na frente do IML de Tribobó, bairro de São Gonçalo (RJ) - Lucas Landau/UOL
Familiares e moradores da Palmeira esperam na frente do IML de Tribobó, bairro de São Gonçalo (RJ)
Imagem: Lucas Landau/UOL

Daniele Dutra

Colaboração para o TAB, de São Gonçalo (RJ)

23/11/2021 12h23

Os moradores da região da Palmeira, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), começaram a manhã de segunda-feira (22) removendo corpos de um mangue. O tiroteio que durou todo o fim de semana atrapalhou uma jovem de 21 anos na hora de fazer os trabalhos da escola. L.S., maquiadora profissional, está concluindo o 3º ano do ensino médio e pretende fazer o Enem em 2022 para disputar uma vaga no curso de direito.

O sonho de ser advogada criminalista existe há muito tempo, mas ela reclama que não tem paz para estudar. O que aconteceu ao lado de sua casa, no fim de semana, repete-se há meses.

Moradora da comunidade há dois anos, L.S. foi uma das pessoas que decidiu entrar no mangue na noite de domingo para ajudar os vizinhos a retirar os corpos.

"Entrei no mangue para ajudar, até porque graças a Deus não foi com ninguém da minha família, mas poderia ter sido meu marido, meu primo, meu sobrinho ou até mesmo eu. Foram pessoas próximas, amigos, conhecidos e até pessoas inocentes que não tinham envolvimento com nada daquilo", disse L.S. à reportagem do TAB. Ela pediu para ter seu nome preservado e não quis ser fotografada.

Ela e outros moradores afirmam que a chacina de domingo (21) foi resultado de uma operação entre Polícia Militar e o Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), iniciado ainda no sábado, após a morte do sargento da Polícia Militar Leandro Rumbelsperger da Silva, durante um tiroteio no bairro Itaúna. A ocupação e os tiros só tiveram fim no domingo, por volta das 18h.

Assim que escureceu, L.S. e os vizinhos souberam que havia corpos no mangue. Os mais próximos foram conversando por WhatsApp e telefone. Quando se certificaram de que a polícia estava em uma comemoração no Piscina's Bar — estabelecimento privado com bebida, piscina e refeições —, um grupo de 15 pessoas foi até o mangue.

"Fomos para a rua e começamos a gritar 'é morador, é morador', para o caso de ainda ter algum policial na mata. Muitas mulheres gritavam 'cadê meu filho, cadê meu marido?', mas a gente não sabia quem estava lá, quem estava morto e se tinha alguém ferido que podia ser socorrido. Reviramos o mangue todo pelas beiradas, mas só depois os vizinhos mais antigos chegaram para ajudar e auxiliar as mulheres a entrar no mangue para tentar reconhecer os corpos", contou L.S.

A escuridão da mata, a falta de lanternas e o desespero das pessoas acabou impedindo a retirada. "Foram muitas dificuldades naquela noite. O mangue fica cheio durante a noite e seca pela manhã. O risco de se perder lá dentro era grande, já que havia pouca luminosidade, não dava para enxergar nada. Também tinha o perigo de algum animal ou uma cobra picar a gente. A melhor coisa a fazer naquele momento foi ir para casa e esperar amanhecer", disse à reportagem.

Às 23h e coberta de lama, L.S. voltou para casa. Só conseguiu dormir por volta das 4 da manhã. Estava nervosa e preocupada com o desespero dos vizinhos.

De pé às 7h, com o barulho do helicóptero que rondava a região, L.S. voltou ao mangue. "Todo mundo estava em estado de choque. Teve mãe que desmaiou, passou mal, não tinha forças para ficar de pé. Nunca vi uma coisa dessas, foi horrível. Os moradores levaram lençóis, fizeram o reconhecimento e ficaram lá esperando o rabecão chegar, vigiando os corpos para que os porcos que ficam por ali não se aproximassem. Os corpos estavam inchados, porque ficaram na água a noite toda", disse ela, que relatou também possíveis sinais de tortura. "A gente não pode garantir, mas vi sinais de faca no rosto, na perna e algumas pessoas sem os dedos", contou a jovem.

Por volta das 12h, Bombeiros, policiais do 7º batalhão da Polícia Militar, policiais civis, a perícia e o rabecão já estavam no local para remover os corpos e encaminhá-los ao IML (Instituto Médico Legal).

Ao menos oito corpos foram retirados do local. Moradores acreditam que possa haver mais vítimas, já que ouviram tiros em diferentes pontos do mangue.

"A região aqui é abandonada, não tem água encanada, saneamento básico, aqui é completamente esquecido", disse L.S.

Familiares aguardam notícias no IML de Tribobó, em São Gonçalo (RJ) - Lucas Landau/UOL - Lucas Landau/UOL
Familiares aguardam notícias no IML de Tribobó, em São Gonçalo (RJ)
Imagem: Lucas Landau/UOL

Corpos barbarizados

Após a chacina, a reportagem do TAB foi até o IML de Tribobó, bairro de São Gonçalo.

T.S. descobriu a perda do sobrinho quando estava de plantão no hospital. Como a enfermeira não podia sair, ficou acompanhando as informações que chegavam pelo telefone e, assim que teve a oportunidade, foi até o local onde fica o mangue para ver os corpos. No meio da tarde de segunda-feira (22), decidiu ir até ao IML com o irmão da vítima para reconhecer o corpo.

"Cena de terror, sabe? Foi assim que estava a situação no mangue. Meu sobrinho foi o único que ficou inteiro, o resto estava barbarizado", disse a tia de David Wilson, 23, que afirma que ele nunca teve nenhum tipo de envolvimento com a criminalidade da região.

Pai de duas crianças, ele foi demitido há pouco de um restaurante onde trabalhava como garçom. A esposa de David passou mal e precisou ser internada com princípio de derrame. A mãe do rapaz não teve condições de lidar com a situação e estava em choque. A dura tarefa de reconhecer o corpo ficou para quem parecia mais forte emocionalmente.

Ouvido pelo UOL, o porta-voz da PM, o tenente-coronel Ivan Blaz, confirmou que houve confrontos durante três dias, a partir da ocupação de quinta-feira (18). A operação foi informada ao Ministério Público e tinha como objetivo combater a criminalidade.

IML de Tribobó, em São Gonçalo - Lucas Landau/UOL - Lucas Landau/UOL
Imagem: Lucas Landau/UOL

A caminho do IML para reconhecer o corpo do irmão e do cunhado, a dona de casa Milena Menezes, 35 e o marido Paulo da Silva, 36, pedreiro, sofreram um acidente de moto após o pneu furar na estrada, mas a dor de perder Rafael Alves, 26, era maior.

"Meu irmão estava próximo ao mangue, bebendo com os amigos, e foi arrastado pelos policiais. Foi uma cena terrível, não estava aguentando ver meu irmão naquele estado", disse Milena.

Foi Paulo quem precisou chegar mais perto para ver o corpo do cunhado. "Todos os corpos tinham tiros e esfaqueamento. Foi horrível", contou o pedreiro ao TAB.

No IML, cada família ficava em um canto, do lado de fora, enquanto aguardava ser chamada para reconhecer os corpos. Muitos não queriam falar sobre o ocorrido, tinham medo de ser identificados. Outros agiam com rispidez quando a imprensa se aproximava.

"A gente não quer falar nada. Dá licença, respeita a dor dos outros", disse um grupo de três mulheres que chorava, na entrada do local. Do outro lado, uma moça chorava na calçada e era consolada por uma amiga. À direita, uma família que aparentava estar em choque ficou o tempo todo em silêncio, aguardando na calçada, junto de uma jovem grávida de 8 meses que esperava a vez de reconhecer o corpo do marido, que não teve a chance de ver o filho nascer.