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Rio: Há 26 anos, sambista circula com Trem do Samba e eterniza velha guarda

Marquinho com integrantes da velha guarda da Império Serrano - Fabiana Batista/UOL
Marquinho com integrantes da velha guarda da Império Serrano Imagem: Fabiana Batista/UOL

Fabiana Batista

Colaboração para o TAB, do Rio

06/12/2021 11h21

No fim deste sábado (04), um vagão lotado chegou à estação Oswaldo Cruz, no subúrbio do Rio. Nada de novo — se não fossem os sons dos batuques, dos cavacos, dos tamborins e da cantoria da velha guarda da Portela, do Império Serrano, da Mangueira e do Salgueiro, que dão vida ao Trem do Samba.

A expectativa no evento fez com que o organizador Marquinhos de Oswaldo Cruz, 60, estacionasse às 16h (duas horas antes do combinado) na Central do Brasil. Mas antes, em Copacabana — onde mora com a esposa, Maria Machado — não escondia a ansiedade. O samba de 26 anos não acontecia há dois.

Sua história no samba, entretanto, é mais velha do que o evento do trem e, diferentemente do que parece, a entrada na cena não foi natural e rápida. O rapaz nascido em Madureira e criado em Oswaldo Cruz, dois redutos de escolas de samba, precisou comer muito arroz com feijão para chegar lá. Ou melhor: deixar de comê-los, já que abandonou tudo pelo samba.

Marquinho de Oswaldo Cruz - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Marquinho de Oswaldo Cruz
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Caixeiro na loja de materiais de construção dos pais no início da juventude, no subúrbio, Marquinhos mal sabia que os clientes eram reconhecidos compositores de partido alto. O responsável por apresentá-los foi o tio. "Este é Manaceia, compositor da Portela; Este, Ivan Milanez, do Império Serrano".

Marquinhos conta orgulhoso que, com o tempo e o convívio, a admiração pelos músicos cresceu e tornou-se mútua. O falecido Manacéia José de Andrade, por exemplo, convidou-o em fins de 1980 — já depois de ensiná-lo a tocar cavaquinho — a gravar uma fita para Zeca Pagodinho.

Para desespero da mãe, o filho abandonou a mulher, crianças pequenas e decidiu seguir Manacéia, Monarca, Ivan Milanez e outros sambistas do partido alto. A mãe e o pai até frequentavam o cenário, mas não concordavam que era profissão que dava dinheiro.

Sussurro das vozes ancestrais

Na van, minutos antes de chegar à Central do Brasil, o compositor, um pouco apreensivo, pede que a equipe reze com ele. "Não faço isso porque você está aqui, a religiosidade faz parte da minha vida", adverte à reportagem. O ato é resquício das missas e eventos religiosos que frequentou na adolescência. Quase tornou-se padre não fosse o samba.

Entre um semáforo e outro, Marquinhos relembra que se decidiu pela vida artística porque, para ele, o samba é mais do que cantar no palco. "É como um sussurro das vozes ancestrais. É uma arte que ganhou o mundo e leva com ela o subúrbio carioca". Mas não foi fácil.

Rindo, lembra-se que, apesar da paixão, não conseguiu convencer a mãe de que fazia a coisa certa. Na teimosia, em fins de 1988, quando ainda não era conhecido e nem tinha escrito música alguma, dormia no circular de Oswaldo Cruz ao Centro e era acordado por amigos depois de rodar pela cidade por horas.

Instrumentistas da Portela no Trem do Samba - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Instrumentistas da Portela no Trem do Samba
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Esses "passeios" de ônibus duraram. Em 1991, junto com o amigo Juarez Barroso criou o Acorda Oswaldo Cruz, "uma espécie de embrião do Trem do Samba". A dupla panfletava com o objetivo de não deixar o samba morrer junto com seus compositores. Além disso, Marquinho ocupou as ruas da Lapa quando o pop de Cazuza ainda tomava conta dos Arcos.

O esforço de tornar o samba conhecido pela massa não foi em vão. Assim que a van estacionou, naquele sábado, foi possível perceber que o sonho tornou-se algo maior. A Central do Brasil já estava ocupada pela imprensa e por gente que espera o ano todo pelo festejo.

Ao colocar o pé dentro da estação, Marquinhos foi em direção ao Império Serrano, a escola já esquentava os instrumentos com seus enredos. Antes ansioso, o organizador da festa encontrou ali um conforto.

No entanto, o esforço de ocupar os cinco vagões disponibilizados anos antes deram lugar à tentativa de dissipar foliões. O acordo firmado em 2021 com a Supervia, empresa que opera os trens e autoriza o evento, era de liberar apenas um dessa vez. Dentro do trem, a prioridade foi da velha guarda. Já em Oswaldo Cruz, os palcos seriam de músicos como Dudu Nobre, Nina Rosa e Marina Iris.

O Trem do Samba em movimento com Didi Vaz, Sidinho Gurgel, Marquinho e Tiago Prata - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
O Trem do Samba em movimento com Didi Vaz, Sidinho Gurgel, Marquinho e Tiago Prata
Imagem: Fabiana Batista/UOL

De Paulo a Marquinhos, sempre Portela

No intervalo até a saída do trem, o compositor recepcionou a imprensa e os amigos com entusiasmo. Aos que ainda não sabiam de onde surgiu o Trem do Samba a resposta era sempre a mesma. Pontualmente às 18h04, o evento remonta a história de Paulo da Portela, primeiro presidente da Portela, que, há 100 anos, tocava no trem para fugir da repressão policial. Na época, o samba era ilegal e "coisa de vagabundo".

Mas, engana-se quem ache que a ideia veio do acontecimento. Marquinho soube disso anos depois. As coincidências não param por aí. Além de portelenses, segundo sambistas que conheceram o velho Paulo e conviveram com o menino Marcos, o terreno que o moleque morou em Oswaldo Cruz, foi palco do último show do velho sambista, na década de 1940.

Próximo ao horário de saída do trem, Marquinhos aproveitou para se pronunciar. E, como forma de reza, fez menção aos que morreram e permanecem vivos nas batucadas das rodas e escolas de samba. Já às 17h50, puxou a esposa, gritou aos instrumentistas e seguiu em direção ao vagão.

Marquinhos, como todo ano, se juntou à Portela na "ala" de frente do vagão. Questionado, não lembra como a escola tornou-se do coração. "Me lembro como me tornei Fluminense e escolhi minha opção política. Mas já nasci portelense."

Já pronto para sair, o trem apitou, os passageiros se ajeitaram e, amontoados, se preparavam para dançar e cantar no trajeto. Trem em movimento, as rodas de samba espalhadas pelo vagão vão à loucura. Quando um grupo silencia ouve-se outro logo atrás.
A cena faz lembrar uma história de infância de Marquinhos. Ainda em Madureira, o menino Marcos assistia, no período de festa, os vagões se colorirem com os foliões que saíam do subúrbio em direção ao carnaval do centro.

Marqunho com o mestre-sala Gerônimo da Portela e a porta-bandeira Telminha Sorriso - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Marqunho com o mestre-sala Gerônimo da Portela e a porta-bandeira Telminha Sorriso
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Expresso sentido Oswaldo Cruz

Não dá para sair do lugar. A voz de Marquinhos é acompanhada por um pandero, dois tantãs, um banjo e um cavaquinho. O gogó é potente e o sorriso não sai do rosto. É como uma catarse, um sentimento coletivo que invade o coração dos que estão no vagão. Não tem um que não cante, bata palma ou tente se mexer um pouco na lotação. Até fotógrafos, no horário de trabalho, entram na brincadeira.

O combinado, já sem precisar de aviso prévio, é que os instrumentos toquem os enredos específicos das escolas ao passar por suas estações de trem. Assim foi. Em Mangueira e Madureira (Portela), por exemplo, os hinos Exaltação e samba enredo de 1970 foram puxados por suas escolas.

O repertório do grupo ao redor de Marquinhos, com músicos da Portela e apaixonados pelo Trem do Samba, é composto, além de outras composições, pela música "Geografia Popular". Escrita por Marquinhos, Edinho Oliveira e Arlindo Cruz, a letra conta a história do samba da zona norte à zona sul carioca.

Quase meia hora depois, às 18h30, os instrumentos, o cantor e o público dão coro ao grande hino da festa. Os versos "O trem parou, rapaziada, chegou a hora de tomar uma gelada" são repetidamente cantados enquanto as pessoas saem do vagão. O destino, a estação de Oswaldo Cruz, já aguardava. Barracas de comida, bebidas, muito churrasco e três palcos.

Marquinho de Oswaldo Cruz - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Marquinho de Oswaldo Cruz
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Feliz, aquele rapazinho de 20 e poucos anos não se perdeu no compositor de 60. Muito pelo contrário: é quem conduz sua vida. Marquinhos conseguiu, por mais um ano, dar vida aos que se foram e, mais do que isso, oxigenar, como ele mesmo diz, a memória coletiva do carioca suburbano. "Retomar a festa, neste momento tão difícil, é como reviver emoções há tempos guardadas em uma gaveta".