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'Pedro Negro' ignora apelos por mudanças e mantém blackface em Holambra

Pedros Negros em Holambra - Matheus Pichonelli
Pedros Negros em Holambra Imagem: Matheus Pichonelli

Matheus Pichonelli

Colaboração para o TAB, de Holambra (SP)

09/12/2021 04h00

No alto de um carro dos bombeiros, um grupo de pessoas com perucas, roupas coloridas e os rostos pintados de preto joga balas e outras guloseimas para os turistas da Praça do Moinho Povos Unidos em Holambra, município de 15,2 mil habitantes do interior paulista fundado por holandeses.

A sirene é ouvida por todo canto naquele domingo (5), véspera do dia de São Nicolau — uma das datas mais importantes da cultura holandesa. Os atores partem em seguida para outros pontos da cidade, como os restaurantes típicos da rua Dória Vasconcelos e a alameda dos guarda-chuvas da Maurício de Nassau.

A performance é uma referência à figura dos Pedros Negros, ou Zwarte Pieten, em holandês. São os ajudantes de São Nicolau, precursor do Papai Noel, e responsáveis por premiar ou punir crianças que se comportam, ou não, ao longo do ano. Os primeiros ganham presentes. Os últimos levam (ou levavam) sustos e golpes com uma pequena vara.

As versões contemporâneas de Pedro Negro praticamente aposentaram as varas, mas não abriram mão do "blackface", uma prática em desuso e cada vez mais contestada pelos movimentos negros. Isso porque, como definiu certa vez a escritora e filósofa Djamila Ribeiro, o "blackface" serve tanto como estereótipo racista quanto como forma de exclusão. No primeiro caso ridiculariza; no segundo, nega papéis a artistas negros.

Lenda x realidade

Em uma ilustração famosa do século 19, Pedro Negro é retratado como uma figura furiosa sobre um cavalo e que assusta as crianças brancas. A origem do personagem não é consenso: uns dizem que a pele escura se deve ao fato de o ajudante de São Nicolau ser, na verdade, um mouro; outros afirmam que vem da sujeira das chaminés, por onde entrariam nas casas, segundo a lenda.

No Brasil, onde seguem expostas as feridas de três séculos de escravidão, a alegoria ganhou outros significados e contextos ao longo do tempo. E, conforme Holambra se firmava como estância turística e mais pessoas — de diversas localidades, não só descendentes de holandeses — se mudavam para lá, a trabalho ou a passeio, os olhares sobre a tradição também mudaram. E criaram um embate entre defensores ferrenhos da tradição e os que pedem adaptações aos festejos.

Esse embate está hoje mais presente nas redes sociais do que nas ruas da cidade.

Portal de Holambra - Matheus Pichonelli - Matheus Pichonelli
Portal de Holambra
Imagem: Matheus Pichonelli

No entorno do Moinho, um dos cartões-postais de Holambra, enquanto os Pedros Negros desfilavam, apenas duas pessoas disseram à reportagem que não apreciavam a festa. Uma era uma estudante de 20 anos nascida na cidade e que dizia condenar a prática de blackface em qualquer circunstância -- posição que rendeu um debate acalorado com os pais, negros como ela, que achavam a tradição divertida.

Olhando para os lados, como quem não quer ser ouvido, o morador de uma cidade vizinha admitia ver na prática uma conotação negativa -- mas não racismo, justificava. "Isso aí [a tradição] não leva a lugar nenhum. Não vejo vantagem."

Perto dali, um homem negro que vende água de coco há anos no mesmo local dizia nunca ter se incomodado com a festa. "É a cultura holandesa. Eu e meus filhos sempre respeitamos."

Perguntado como os filhos brincavam no dia de São Nicolau, ele desconversou. Disse que sua família estava sempre ocupada demais trabalhando e não tinha tempo para festas.

Apesar do barulho das sirenes, a celebração deste ano, segundo os moradores, estava mais "miada" do que em edições anteriores. Desta vez, as lojas não se enfeitaram como antes (uma exceção era o balcão de uma tradicional confeitaria perto do lago, toda decorada com as figuras de piets). E o desfile sequer constava da programação dos festejos no site da prefeitura.

Pedros Negros em Holambra - Matheus Pichonelli - Matheus Pichonelli
Pedros Negros em Holambra
Imagem: Matheus Pichonelli

O vendedor de coco dizia que as crianças já não ligam para os festejos como antes. Preferem ficar no videogame ou no celular. Uma artesã que expunha seus trabalhos no Centro de Cultura e Eventos atribuía a distância à pandemia. E também à mídia, que, segundo ela, teria surfado na polêmica para apontar racismo onde não havia.

Uma jovem vendedora de sorvetes na praça dizia que a festa mais tímida deste ano era porque os "Piets" estavam constrangidos após serem criticados e até ameaçados — um rumor que ninguém, nem a prefeitura, confirma. Como outros moradores da cidade, ela e o irmão afirmavam que esse constrangimento só aconteceu porque "alguém" escreveu sobre o assunto na internet. Mas ninguém na cidade soube dizer quem era esse "alguém".

Fato é que as adaptações à festa observadas na Holanda nos últimos anos pressionam também por mudanças na colônia. Não sem resistência dos moradores.

Holambra - Matheus Pichonelli - Matheus Pichonelli
Holambra
Imagem: Matheus Pichonelli

Fuligem

Na Holanda, os rostos pintados de preto estão sendo substituídos por leves pinceladas nas bochechas, que representariam a fuligem das chaminés.

Em 2020, o então primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, declarou esperar que "daqui a alguns anos não exista mais Zwart Piet" no país. Defensor da tradição até pouco tempo, Rutte mudou de opinião ao conhecer muitas pessoas, incluindo crianças, que se sentiam discriminadas porque os Piets faziam blackface.

Na contramão do exemplo europeu, a cidade paulista sancionou em 2019 uma lei que transformou a festa de São Nicolau em patrimônio cultural e imaterial do município. A lei determinava a preservação "das características iniciais desta tradição".

Autora do projeto, a ex-vereadora Naiara Hendrikx afirmou ao portal G1 em 2019 que "aqui no Brasil, nós temos o Saci-Pererê, que é uma criança negra que fuma cachimbo, e ninguém fala nada". "Quando se trata de cultura, é uma coisa tão mágica e tão enraizada que quem chega de fora e fica dando 'pitaco' para pôr defeito não consegue entender a essência. Não teria graça o São Nicolau sem os Pedros Negros."

Procurada pelo TAB, Hendrikx disse que neste ano os debates envolvendo os Pedros Negros se intensificaram, o que causou preocupação aos organizadores, que chegaram a recuar num primeiro momento. Segundo ela, essa reação levou a maioria da população a apoiar a continuidade da tradição com todas as suas características. "Não existe justificativa para mudanças na caracterização, uma vez que os personagens são folclóricos, cheios de magia e despertam sentimentos muito positivos. As mudanças provocariam perda de identidade e graça."

Para ela, as polêmicas não passaram de narrativas infundadas e só fortaleceram as festividades.

Pedros Negros em Holambra - Matheus Pichonelli - Matheus Pichonelli
Pedros Negros em Holambra
Imagem: Matheus Pichonelli

Se, nas ruas, não é possível notar sinais de hostilidades contra os atores, em um grupo de moradores no Facebook o compartilhamento de uma notícia do jornal Holambrense sobre o tema gerou debates acalorados.

"Conseguiram criar problema onde não tem", escreveu uma moradora. "E se os 'Piets' fossem brancos?! Será que estaríamos sendo taxados de racistas e preconceituosos devido ao São Nicolau ter apenas ajudantes brancos?!", perguntou.

"Se eles fossem branco, rosa, roxo, amarelo não teria problema algum. Sabe por quê? Nenhuma dessas etnias sofreram 300 anos de escravidão", respondeu um morador, que dali em diante passou a ser rechaçado pelos membros do grupo.

A reportagem tentou, por meio da prefeitura de Holambra, conversar com um dos atores. Foi informada que o grupo Losango, responsável pelo desfile, não costuma atender a imprensa.

Holambra - Matheus Pichonelli - Matheus Pichonelli
Holambra
Imagem: Matheus Pichonelli

'Conotação racial'

Ainda segundo a prefeitura, os desfiles são organizados de forma independente e contam com atores voluntários. A reportagem quis saber por que não usar atores negros para representar o personagem.

A prefeitura respondeu que os "Piets" são pessoas da cidade, brancas e negras, que conhecem e têm relação afetiva com a tradição. "A cor que caracteriza a personagem diz respeito à fuligem das chaminés pelas quais, segundo o folclore, os ajudantes de São Nicolau entram nas casas para avaliar o comportamento das crianças. Direcionar a participação a voluntários negros daria à celebração a conotação racial atualmente questionada por um grupo de pessoas e que, na prática, não existe", diz a nota.

A prefeitura disse também que "respeita a pluralidade de pensamento e a liberdade de manifestação, reconhece a relevância de debates em torno do tema e acredita no diálogo construtivo", completando que "A celebração de São Nicolau se pauta pelo caráter lúdico das personagens, sem qualquer conotação política ou racial."

Na nota, a prefeitura ainda disse não compactuar com "qualquer prática racista ou de intolerância" e ressaltou que a "coexistência pautada pelo respeito deve compreender a singularidade de tradições e costumes de diferentes povos e origens".