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'Quer boneco perfeito, vai pra Disney!', diz artista da Muleta Express

André Dias, 80, idealizador dos bonecos gigantes da loja Muleta Express na orla de Amaralina - Rafael Martins/UOL
André Dias, 80, idealizador dos bonecos gigantes da loja Muleta Express na orla de Amaralina Imagem: Rafael Martins/UOL

Victor Uchôa

Colaboração para o TAB, de Salvador

10/12/2021 04h00

O senhor André Dias, 80, é um homem de muitas cabeças. Em Salvador, ele não é nenhuma celebridade, mas o mesmo não se pode dizer sobre suas criações. Defronte à praia de Amaralina, cuja beleza já foi versada por Caetano Veloso e Moraes Moreira, as principais atrações, hoje em dia, nasceram graças a André: são os bonecos da Muleta Express.

"Essa foi a forma que encontrei de criar uma marca e retribuir as alegrias que tive na Bahia, esse lugar de pessoas fantásticas, onde fiz minha vida e criei meus seis filhos", conta o idealizador de uma coleção que inclui um papai noel negro montado numa zebra, um papai noel que exagerou no batom rouge e um que, em vez do trenó com tração das renas, pilotava uma cadeira de rodas puxada por um jegue — apenas alguns exemplos natalinos do que já saiu de sua cabeça.

Nascido no Recife e criado em São Paulo, André chegou a Salvador já casado, na década de 1970, depois de morar em países tão diversos quanto Israel, Austrália e Japão.

André Dias, 80, na Muleta Express - Rafael Martins - Rafael Martins
André Dias, 80, na Muleta Express
Imagem: Rafael Martins

400 personagens e contando

A Muleta Express, estabelecimento fundado por ele em 1995, é especializada em venda, aluguel e manutenção de equipamentos hospitalares, como camas articuladas e cadeiras de roda.

Entre atendimentos e serviços, o empresário (agora aposentado) logo deixou jorrar a veia artística. Assim que abriu a loja, resolveu dar vida à fachada com bonecos de fibra de vidro do tipo cabeçorra — cabeças gigantes típicas de festejos em algumas cidades do interior baiano. Desde então, mais de 400 personagens (nas contas dele) passaram por ali.

Piratas de todos os mares, cangaceiros, releituras do Mickey Mouse, palhaços com ou sem graça, pierrôs e animais das mais variadas espécies — com destaque para coelhos e gatos — já ocuparam a galeria. Às vezes, o boneco está numa cadeira de rodas, como no caso da mulher que soltava bolhas de sabão para os passantes. Sim, eles se movimentam.

Com formação técnica em mecânica de máquinas e motores, André criou uma engrenagem alimentada por um motor elétrico de 1 cavalo, que ativa diferentes articulações, mudando de acordo com o personagem. O papai noel de 2021, por exemplo, levanta e abaixa uma bengala natalina.

Castigado pelo salitre, o motor precisa ser substituído, em média, a cada 8 meses. Só aí são R$ 800 por troca. A isso, somam-se os custos com todos os materiais de produção artesanal. É quando seu André apela para resíduos recicláveis e insumos mais baratos, como estopa, que vira barba e cabelo das cabeçorras.

Mais um dos bonecos idealizados por André Dias - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Mais um dos bonecos idealizados por André Dias
Imagem: Rafael Martins/UOL

"Em 26 anos, nunca repeti um boneco. E sempre tive coragem para criar. Em qualquer lugar que eu chego ou durante minhas viagens, vejo uma inspiração. Minha criatividade só não pode ser cara, porque aí falta dinheiro", diz ele, variando entre o orgulho e a troça consigo mesmo.

As datas festivas são sempre lembradas. Como o Natal se aproxima, quem domina a fachada é o papal noel. Na época da páscoa, o espaço é todo do coelho (coelhinho não seria um termo fidedigno) e, no período junino, reinam os personagens nordestinos.

Durante a pandemia, muitos bonecos ostentaram uma seringa de quatro metros de comprimento em incessante movimento pendular de incentivo à vacinação contra a covid-19.

Sem dar bola para o preceito de que pai não escolhe o filho predileto, o criador das cabeçorras fala com notável empolgação do cachorro trajado à la Carmem Miranda, do coelho com um biquíni estampando a bandeira americana (que lhe renderam acusações de desrespeito aos Estados Unidos) e do homem barbado num vestido de noiva, com buquê e tudo.

"Fiz esse noivo 12 anos atrás, no mês de maio, e muita gente criticou. Não tinha tanta discussão como existe hoje sobre a questão LGBTQIA+, mas eu já me perguntava: por que um homem não pode estar com um vestido de noiva? Qual o problema?".

André Dias e uma de suas criações - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
André Dias e uma de suas criações
Imagem: Rafael Martins/UOL

Entre o 'macabro' e o 'autêntico'

Em qualquer conversa sobre os bonecos de Amaralina, as criações de seu André são um sucesso de público, mas nem sempre de crítica. Todo mundo vê e comenta — gostar é outra história.

Nas redes sociais, há internautas que dizem ter medo, outros que classificam como "bizarro" ou "macabro". Alguns relatam já terem levado sustos ao passar pelas esculturas.

Há, entretanto, quem adore e até quem defenda que os bonecos sejam levados ao Louvre. "Eu amo esses bonecos. É tão creepy (assustador) e tão autêntico ao mesmo tempo", definiu uma internauta.

E o criador, o que acha das críticas? "Não tô nem aí. Aqui não é salão de beleza. Quem quiser ver um boneco perfeito, vai pra Disney. Eu faço para as pessoas darem risada e me sinto feliz com isso. Já teve gente que defendeu que os bonecos sejam reconhecidos como patrimônio da Bahia. E tem gente que diz que eles são tão tronchos que saíram de Chernobyl", conta André, gargalhando ao apontar para um Mickey de feições disformes.

A Muleta Express, na orla de Amaralina, Salvador - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
A Muleta Express, na orla de Amaralina, Salvador
Imagem: Rafael Martins/UOL

A advogada Paula Leite, que chegou à loja bem quando a equipe do TAB estava no local, parabenizou André. "Eu passo sempre de carro aqui e acho esses bonecos incríveis, alegram meu dia. E a gente vai acompanhando as mudanças ao longo do ano, é muito interessante ver como os personagens estão conectados com o momento."

Com opiniões de lado a lado, as criações ganharam uma espécie de acervo virtual, o perfil de Instagram Boneco da Muleta Express. Percorrer a timeline é como entrar na cabeça de seu André, transitando entre obras que de lá saíram, como o presépio produzido em 2014 que reunia 18 personagens e custou, segundo ele, R$ 40 mil.

Tentamos contato com os donos do perfil na rede social, sem sucesso.

Dias na orla de Amaralina - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Dias na orla de Amaralina
Imagem: Rafael Martins/UOL

Arte por muitas mãos

Debate estético à parte, certo é que as cabeçorras ganham forma (e por que não dizer, vida) graças a um trabalho em equipe. Seu André cria os personagens e elabora as articulações. Mas, na hora da produção, conta com o apoio de funcionários da loja, como João Pereira, que tem 65 anos e trabalha ali há 21.

"Ele cria e a gente executa. A graça é ver funcionar e ver como as pessoas gostam, param até pra tirar foto com os bonecos", diz João, que, oficialmente, é técnico de manutenção em cadeiras de roda e camas.

Mesmo caso de Anderson Santos, que está na Muleta Express há 12 anos e participa de todo o processo de produção, dos moldes até a instalação na fachada. "Quando está sem boneco aí, porque tirou pra trocar ou dar manutenção, o pessoal reclama. Já virou tradição".

Com 12 anos de casa, a vendedora Luciene Freitas já sabe: se alguém pedir um ponto de referência, é só falar dos bonecos. "Com essa informação, não tem erro, todo mundo vem direto".

Ela conta que, no período de maior reclusão da pandemia, seu André interrompeu as idas à loja, mas não deixou a produção de cabeçorras parar. À distância, monitorava tudo. "Era uma agonia desse homem no telefone. Pede pra botar a roupa no boneco, tira a roupa, muda isso, faz aquilo, ele não sossega".

À frente da loja desde que o pai se afastou da rotina administrativa, Larauê Dias evita dar pitaco na área artística, mas não escapa de integrar a equipe do "ateliê". "Ela é quem toma conta do dinheiro, né. Se ela não liberar, não tem boneco", diz seu André aos risos.

Ele, inclusive, já negocia com a filha a verba que terá disponível para a cabeçorra carnavalesca, que, garante, subirá à fachada com ou sem desfile de trios elétricos em 2022 (devido à pandemia, ainda não há uma definição sobre a realização do carnaval de rua da capital baiana).

Seu André não revela o personagem, mas na loja o burburinho é de que pretende homenagear o afoxé Filhos de Gandhy.

André Dias e Pinóquio, seu personagem favorito - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
André Dias e Pinóquio, seu personagem favorito
Imagem: Rafael Martins/UOL

O Pinóquio de cada um

Entre todas as peças artísticas expostas em meio a muletas, cadeiras de roda e colchões especiais, só uma não saiu da cabeça de seu André. Em compensação, como dizem por aí, ocupou um bom espaço na mente do artista-inventor.

Trata-se de um Pinóquio de ventríloquo, que ele comprou após assistir a uma apresentação no Chile.

André Dias se entrega: é apaixonado pelo Pinóquio. Por algum motivo em especial? Ele baixa a cabeça, pensa um pouco e, antes de responder, arregala os olhos: "No fundo, o Pinóquio sou eu, é você, é todo mundo. Todos somos uns puta de uns mentirosos, vivemos de personagens. Aqui eu sou o criador desses bonecos, você é o repórter, daqui a pouco eu sou outra coisa, você também", diz.

Vacila um instante e completa: "Podemos fazer mil coisas, criar e viver mil papéis diferentes, isso pouco importa. O que importa é ficar feliz com o que a gente faz e fazer as pessoas felizes".