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'Coisa de travesti': a primeira conselheira transgênero da OAB de São Paulo

A advogada Márcia Rocha, 56 - Fernando Moares/UOL
A advogada Márcia Rocha, 56
Imagem: Fernando Moares/UOL

Mateus Araújo

Do TAB, em São Paulo

12/12/2021 04h00

Laerte Coutinho se aproximou de um pequeno grupo de pessoas completamente montadas com salto alto, vestido, maquiagem e brincos na porta do Teatro Eva Herz, no Conjunto Nacional, em São Paulo, e confessou: "morro de vontade de fazer isso também". O ano era 2009 e todas estavam ali para assistir a uma peça sobre um homem casado que, nas madrugadas, se vestia de mulher e vivia aventuras sexuais em salas de bate-papo virtual.

"Naquele dia, eu não estava montada, como se diz. Estava com minhas roupas de menino. Mas quando vi aquelas mulheres enormes e lindas, eu disse: 'É isso que eu quero'", lembra a cartunista. "Se sentir acolhida e sentir que aquilo é um território firme, é muito importante para pessoas que estão num processo de mudança, de descoberta."

Entre aquelas pessoas estava Márcia Rocha, que, apesar de montada, ainda não havia assumido publicamente a transexualidade. "Quando Laerte disse aquilo, passei para ela o contato de uma profissional que fazia sessão de crossdressing para pessoas como a gente", diz a advogada.

Não demorou muito para que as duas voltassem a se encontrar. Desta vez, ambas montadas. "Ela foi para a sessão. Quando acabou, olhou para mim e disse: 'quero ir embora assim.' Fomos embora juntas. Fui a primeira pessoa a ver Laerte andando na rua montada", conta Márcia ao TAB.

Em 2010, a cartunista iniciou de fato sua transição de gênero. Depois, a advogada também assumiu a dela. Nesse processo singular de liberdade das duas, viraram amigas. "Márcia sempre foi uma pessoa que me chamou muita atenção, pela segurança e firmeza dela e também pela quantidade grande de informação e conteúdo que tinha. No nosso grupo, ela assinava postagens como 'Márcia Demais, travesti com muito orgulho'", elogia Laerte.

Marcia Rocha é a primeira travesti a compor o conselho da OAB de São Paulo - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Advogada Marcia Rocha, a primeira travesti a compor o conselho da OAB de São Paulo
Imagem: Fernando Moraes/UOL

'O mundo era outro'

Quase 12 anos se passaram e Márcia Rocha, 56, será a primeira travesti conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo. Ela compôs a chapa recém-eleita para conduzir a maior seccional da entidade, em um mandato que vai de 2022 a 2024 — gestão que também tem outro quadro inédito: uma mulher na presidência, a advogada e professora Patricia Vanzolini.

Há 10 anos membro da Comissão de Diversidade e Combate à Homofobia da entidade, lutando por acessibilidade no setor e dando palestras no Brasil sobre o tema, agora Márcia pretende intensificar seu trabalho em defesa dos direitos de transexuais.

"Quando recebi o convite para compor a chapa, aceitei de imediato. Achei fantástico, justamente porque era uma chapa que tinha uma mulher na cabeça, lésbicas, gays, pessoas com deficiência, negros. Tinha muita diversidade", explica.

Márcia estudou Direito na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo, e se formou em 1989. Naquela época, ainda mantinha a identidade masculina, por pressão social. "Era o fim do regime militar. O mundo era outro", lembra. Quando conseguia, no entanto, montava-se.

Em casa, somente o pai dela sabia da sua identidade de gênero. "A primeira vez que tomei hormônio foi aos 13 anos. Mas meu pai me convenceu a parar. Ainda assim, me montava escondida. Ia para baladas, de vez em quando, e parava antes num motel para me vestir", conta. "O apoio do meu pai foi não me botar para fora de casa. Ele dizia: 'Não conte a ninguém, isso vai te trazer problemas'. Mas ele nunca disse: 'Não seja'. Isso era para me proteger. Se não fosse assim, provavelmente eu não teria feito faculdade, sequer estaria viva."

O primeiro trabalho de Márcia na área jurídica foi em um estágio na Procuradoria de Assistência Judiciária do Estado, cujas ações são realizadas atualmente pela Defensoria Pública. Depois de formada, passou a atuar como advogada em imobiliárias.

Em 2011, quando Márcia Rocha assumiu sua transexualidade aos 46 anos, havia se casado duas vezes — e já tinha uma filha, hoje com 27 anos. "Minhas esposas sempre souberam [de sua identidade de gênero]. Quando decidi transicionar de fato, tomar hormônios, me assumir publicamente, eu estava no segundo casamento. Tive apoio da minha esposa, mas quando transicionei, ela teve medo, nos separamos."

Hoje Márcia é casada com a também advogada Ana Carolina Borges.

Marcia usa o anel de formatura que foi de seu avô, único advogado na família além dela  - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Marcia usa o anel de formatura que foi de seu avô, único advogado na família além dela
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Data venia

Márcia Rocha abriu portas para transexuais e travestis na OAB, antes mesmo de ser conselheira em São Paulo. Em 2017, foi a primeira em todo o Brasil a receber a carteira de advogada com o nome social.

Pela Comissão de Diversidade e Combate à Homofobia, passou a dar palestras em faculdade de Direito e aulas em pós-graduações, além de trabalhar mais diretamente com direitos humanos. "As maiores conquistas que nós tivemos foram nos últimos 10 anos. E eu acompanhei todas essas discussões e as questões legais."

Algumas vitórias vieram com percalços. "Neste tempo todo, eu tive algumas situações curiosas, mais por ignorância do que por preconceito", lembra. "Quando o processo de uso do meu nome social estava quase para ser finalizado, fui procurada por desembargadores que tinham dúvida de como seria dali pra frente. Cheguei a ouvir de uma pessoa que alguém pode usar o nome social para cometer crimes."

O preconceito, diz a advogada, se enfrenta com educação, área na qual milita. O encontro de Márcia e Laerte na porta do teatro em 2009 fez surgir não apenas uma amizade. Junto com a atriz e ativista Maite Schneider, elas fundaram dois anos depois o Transempregos, projeto que dá formação profissional e articula parcerias para empregabilidade de travestis e transexuais no Brasil.

Em quase uma década, a iniciativa já chegou à marca de 1400 empresas que recorrem ao grupo para contratação de pessoas trans. Por dia, o site abre de 20 a 30 vagas — em 2020, 707 pessoas foram beneficiadas pela iniciativa.

Márcia Rocha na casa onde mora, em Barueri, Grande São Paulo - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Márcia Rocha na casa onde mora, em Barueri, Grande São Paulo
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Empresária

Além do Direito, Márcia Rocha passou a investir nos seus próprios negócios. Nos anos 1990, abriu uma rede de estacionamentos em São Paulo, que administrava com o irmão. "Fechamos no início da pandemia", conta. Em paralelo, começou a trabalhar com uma tia na venda de loteamentos e construção de condomínios residenciais, setor no qual continua a atuar, com investimentos em Peruíbe, no litoral sul do estado.

É uma mulher que também entende de obras, e faz questão de mostrar cada detalhe de sua casa ao TAB. "Fiz a ponte, minha filha fez a piscina e minha ex-mulher fez o hall de entrada", diz a advogada, indicando as instalações construídas por ela em um condomínio de luxo em Barueri, na Grande São Paulo. Márcia é vizinha da empresária Luiza Trajano e do apresentador José Luiz Datena.

Na sala, com duas enormes janelas de vidro que dão vista para um bosque, Márcia também escolheu os granitos colocados na escada que leva a um primeiro andar. "Fui com um amigo comprar essa pedra no Espírito Santo. Montei uma marmoraria aqui dentro para preparar tudo. Escolhi essas da escada, aquelas da lareira e as do banheiro", conta. "Essas pedras da escada eu vi, depois, no banheiro de um mafioso em um filme", brinca.

"Essa casa é coisa de travesti", soltou Márcia, segurando os longos cabelos pretos, na varanda, enquanto posava para foto. "Coisa de travesti é uma frase que eu sempre uso nas minhas redes sociais. Eu gosto de mostrar que tudo é coisa de travesti. A gente tem o direito de ter o que a gente quiser, de estar onde a gente quiser."

A posse da nova gestão da OAB será em 1º de janeiro. É o dia em que Márcia colocará, mais uma vez, seu nome na história.