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'Morro de medo': imigrantes sem documentação regular ficam sem vacina em SP

Daniela*, imigrante boliviana que não consegue se vacinar contra covid-19 em São Paulo por não ter os documentos - Pryscilla K./UOL
Daniela*, imigrante boliviana que não consegue se vacinar contra covid-19 em São Paulo por não ter os documentos Imagem: Pryscilla K./UOL

Manuela Azenha

Colaboração para o TAB, de São Paulo

04/03/2022 04h01

Daniela*, 35, chama o filho mais velho até a entrada da casa e pede que ele levante a camisa para mostrar a cicatriz de cerca de 20 centímetros no meio do peito. A mãe, imigrante boliviana, comove-se ao falar da cirurgia no coração que salvou o jovem de 17 anos, a quem médicos deram meses de vida quando era criança.

"Morro de medo que ele pegue covid-19. Sempre digo para não esquecer de usar a máscara", diz ela, em espanhol. Tanto Daniela quanto os três filhos não tomaram nenhuma dose da vacina contra covid-19. Em situação irregular no Brasil desde que chegaram, há um ano, não tinham CPF nem comprovante de residência, documentos que foram exigidos pelo agente de saúde no local de vacinação próximo a onde vivem, no extremo leste da periferia da cidade de São Paulo, em setembro de 2021.

Existe um razoável contingente de imigrantes sem documentação no Brasil -- e que, por isso, não foram vacinados ou tomaram apenas uma dose do imunizante, afirmam especialistas em migração. Muitos não comparecem aos postos de saúde por medo de serem deportados.

"Nenhum documento deveria ser exigido, mas soubemos da exigência de CPF e comprovante de residência durante a maior parte de 2021. Pela lei, o direito à saúde é universal e o atendimento não pode ser negado pela falta de documentos, muito menos vacina em tempos de pandemia", afirma o antropólogo Alexandre Branco Pereira, coordenador da Frente Nacional pela Saúde de Migrantes e do Observatório Saúde e Migração.

Por meio de nota enviada ao TAB, a secretaria municipal de Saúde de São Paulo afirma que deixou de exigir comprovante de residência para adultos a partir de 30 de novembro de 2021, mas mantém o protocolo para a vacinação de crianças, o que é um contrassenso, de acordo com Pereira. "A criança não tem comprovante de residência próprio, de modo que exigir as mesmas comprovações que foram exigidas dos adultos reedita as dificuldades que elas passaram."

Apesar dos instrutivos da Prefeitura de São Paulo aos serviços de saúde, na prática, o que se observa é que a exigência de documentos varia de unidade para unidade.

Quintal de Daniela* - Pryscilla K./UOL - Pryscilla K./UOL
Quintal de Daniela*
Imagem: Pryscilla K./UOL

Pandemia de indocumentação

Não há dados sobre vacinação de imigrantes ou de incidência da covid-19 nessa população, conforme informaram ao TAB o Ministério da Saúde, a Prefeitura de São Paulo e o Governo do Estado de São Paulo.

"O poder público se recusa a coletar dados sobre o acesso dessa população à saúde. Estamos cobrando isso desde 2020, mas tivemos uma série de derrotas aqui em São Paulo, município com o maior número de migrantes do país", assinala Pereira. Tampouco há dados oficiais sobre a quantidade de imigrantes indocumentados no Brasil, mas o antropólogo estima que haja no país o maior número da história.

Atualmente 1,3 milhão de imigrantes residem no país, segundo levantamento do OBMigra (Observatório das Migrações Internacionais), uma parceria do Ministério da Justiça e Segurança Pública e a UnB (Universidade de Brasília). São mais numerosos os que vêm da Venezuela, Haiti e Bolívia.

Segundo estatísticas da Polícia Federal, em 2021 houve 1.285 deportações no país. O pico foi em 2020, com 2.091 -- um aumento de mais de 5.000% em relação a 2019, quando apenas 36 pessoas foram deportadas do Brasil.

Sob alegações de ordem sanitária na pandemia, o governo federal editou, em março de 2020, uma portaria que fechou as fronteiras terrestres até dezembro de 2021, quando passou a ser permitida a entrada de quem apresente comprovante de vacina. Também foram suspensos até março de 2022 os prazos de validade de documentos de imigrantes. O motivo foi a indisponibilidade de atendimento presencial para serviços de regularização durante a pandemia. Agora, o atendimento foi retomado, com enormes filas de espera.

Há relatos de imigrantes que há quase dois anos tentam renovar a documentação, sem sucesso. "Criou-se uma pandemia da indocumentação", diz Pereira. Ainda assim, serviços públicos como cartórios, escolas e postos de saúde continuaram exigindo que os documentos estejam dentro da validade.

Sem vacina nem amparo

De setembro a novembro de 2021, organizações da sociedade civil entraram em contato com a Coordenação da Atenção Básica para coordenar três mutirões de vacinação na periferia de São Paulo, liberando a apresentação de documentos para vacinação.

O haitiano Hugo*, 33, vacinou-se em um dos mutirões, em setembro. Conta que já havia tentado duas vezes -- tentou em UBSs de Ferraz de Vasconcelos e Guaianases --, mas foi proibido por não ter comprovante de residência.

Hugo vive com a esposa e a filha de 4 anos em Ferraz de Vasconcelos, na região metropolitana de São Paulo. Estava com dificuldade de transferir a titularidade das contas da casa para seu nome. Coordenador pedagógico de um curso de inglês e francês, está há 5 anos no Brasil com visto humanitário.

"Foi muito difícil conseguir me vacinar, pedia nos lugares e não me deixavam. Como estava em home office, não sentia tanta urgência, mas a empresa pediu para voltarmos às aulas normais e, nesse caso, o ideal foi vacinado o mais rápido possível", conta.

Já a boliviana Daniela tirou o CPF em dezembro de 2021, depois de sair da oficina de costura onde trabalhou por um ano, segundo ela, em condições análogas à escravidão. O expediente ia das 7h às 22h, com folga aos domingos. Recebia R$ 0,18 (dezoito centavos) por barra que costurava e R$ 0,30 (trinta centavos) por uma peça inteira.

Nos últimos dois meses de trabalho, Daniela diz que não recebeu pagamento algum. Ela, os filhos -- que também trabalhavam --, e o então namorado viviam na oficina e tinham que pagar pela alimentação. "Eu não tinha autorização do patrão para perder parte do dia de trabalho e ir tirar meus documentos. E no domingo estava tudo fechado", conta ao TAB.

Apesar de já ter o CPF, a costureira ainda não tomou a vacina. Diz que imigrantes bolivianos que vivem há mais tempo no Brasil a informaram que é necessário o comprovante de residência para fazer a carteira de vacinação, o que só conseguirá depois que o dono da casa transferir as contas para seu nome.

O venezuelano Marcos*, 17, está há quatro meses no Brasil. Conta que na fronteira com Pacaraima (RR), por onde chegou, não ofereceram a ele a vacina contra covid-19. Apenas as que combatem sarampo, caxumba, rubéola e febre amarela.

Em São Paulo, tentou se vacinar duas vezes no bairro do Cangaíba, zona leste da cidade, onde vive. Primeiro, tinha em mãos os documentos brasileiros que recebeu na fronteira, mas os agentes de saúde exigiram CPF e comprovante de residência. Na segunda vez, já com esses documentos, pediram também o RNM (Registro Nacional Migratório), que ainda está em processo de emissão.

A mãe de Marcos vive no Brasil há 4 anos, em situação regular, e trabalha como vendedora de bilhetes na estação de metrô de Carrão. Tomou duas doses da vacina, assim como seu marido.

Marcos faz um curso gratuito de português em Guaianases, a uma hora e meia de transporte público de onde vive, e não vê a hora de completar 18 anos para começar a trabalhar. Parou de estudar aos 15 para trabalhar em plantações de banana nos arredores de Caracas, capital venezuelana, e por ora não tem planos de voltar à escola. "Meu plano é conseguir juntar dinheiro para ajudar minha avó, que ficou na Venezuela", afirma.

Máquina de costura na casa de Daniela*, imigrante boliviana que não conseguiu se vacinar contra covid-19 por não estar em situação legal - Pryscilla K./UOL - Pryscilla K./UOL
Máquina de costura na casa de Daniela*
Imagem: Pryscilla K./UOL

'No mesmo barco'

Após questionamento apresentado pela DPU (Defensoria Pública da União), a Polícia Federal esclareceu, em documento de 22 de fevereiro, que migrantes com entrada irregular entre março de 2020 e janeiro de 2022 podem pedir residência ou solicitar o reconhecimento da condição de pessoa refugiada, desde que apresente o comprovante de vacinação contra covid-19.

"Não deveria ser condicionada à vacinação, já que solicitar refúgio é um direito no Brasil. Mas, considerando nossa situação, é um avanço porque permite que pelo menos os imigrantes que conseguiram se vacinar possam se regularizar, independentemente da forma que entraram no país", afirma João Chaves, advogado da DPU.

A advogada Karina Quintanilha, especialista em migração e refúgio, considera a nova orientação da PF "tapar o sol com a peneira". "É apenas uma interpretação que abre algumas brechas, mas deixa tudo em aberto e dependente da boa vontade da PF em aplicar esse posicionamento."

Para o sírio Abdulbaset Jarour, vice-presidente da ONG PDMIG (Pacto pelo Direito de Migrar) e refugiado no Brasil há oito anos, deveria haver mutirões de atendimento de saúde aos imigrantes de forma regular. "Muitos não têm máscara nem como pagar pelo deslocamento até um posto de saúde, não falam português, então as organizações da sociedade civil ajudariam na logística. Quem vive em ocupação ou em situação de rua não tem conta para comprovar residência. Os funcionários do SUS também precisam de um preparo para receber essa população. Às vezes, imigrantes sofrem distratos xenofóbicos e desistem de cuidar da própria saúde. Temos que incentivá-los a fazer isso", opina.

"Há quem diga que estamos todos no mesmo barco, mas isso é mentira. Tem gente dentro do barco, tem gente nadando e tem gente se afundando. Ninguém fala da gente, população imigrante e refugiada. Somos excluídos da realidade", afirma Abdulbaset.

Daniela, mãe do garoto que operou o coração, raramente sai de casa. Passa o tempo todo na máquina de costura fazendo bermudas e calças. Sente medo de ser reconhecida na rua pelo ex-patrão, pelo ex-namorado, com quem rompeu, e pela polícia.

Sentada num caixote de madeira, a costureira observa a filha caçula, Maria*, 7, que brinca no quintal da casa com o gatinho de
estimação. "Foi por meus filhos que saí da oficina de costura", diz, às lágrimas. "Minha alegria é saber que agora meus filhos não vão mais trabalhar, e estão matriculados na escola. No ano passado, só a mais nova pôde estudar. É muito difícil enfrentar a vida num país diferente e estou numa depressão profunda. Mas fico de pé pelos meus filhos, faço tudo por eles."

* Nomes trocados a pedido dos entrevistados