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'Baleiro arrumado é o que faz vender': os ambulantes de bala no Rio

O vendedor Anderson da Silva e seu tabuleiro, no meio de um bloco concentrado em frente à Bolsa de Valores  do Rio, no Centro - Matheus de Moura/UOL
O vendedor Anderson da Silva e seu tabuleiro, no meio de um bloco concentrado em frente à Bolsa de Valores do Rio, no Centro Imagem: Matheus de Moura/UOL

Matheus de Moura

Colaboração para o TAB, do Rio

06/03/2022 04h01

A noite chegara tão quente quanto o dia no domingo de Carnaval. Às 20h o burburinho entre foliões, poucas vestes e encharcados de purpurina era grande.

Parado no meio da Rua do Mercado, de frente para o prédio da Bolsa de Valores, o baleiro M.G.S., 49, que preferiu não se identificar por motivos de segurança, era parado com frequência pela multidão de jovens que atravessavam as grades de contenção. A barra era vigiada por seguranças, que impediam a entrada de transeuntes com bebidas alcoólicas.

O suor manchava a blusa do baleiro, que se requebrava para lidar com o alto fluxo de jovens ansiosos por cigarro, pois é costume misturar bebida com alguns tragos de nicotina; bala Halls, para melhorar o hálito dos beijoqueiros; e pirulito, o doce mais comprado por quem toma MDMA, psicotrópico que tem como um dos efeitos a compulsão por morder a própria língua e o próprio lábio.

M.G.S. trabalha como açougueiro durante o dia, virando as noites de sexta e sábado como baleiro em festas cariocas e, também, rodeios mineiros. "Olho na internet a agenda de eventos e sigo pra onde tem bons rodeios. As três cidades que eu sei com certeza que vou encontrar rodeios fortes são Divinópolis, Conselheiro Lafaiete e Juiz de Fora."

Agora que os blocos de Carnaval estão voltando (legalmente por meio de festas privadas e ilegalmente pela reunião orgânica de foliões nas ruas do Rio), não há melhor opção para lucrar do que a noite fluminense. Pela data festiva, o baleiro optou por sair de casa de sexta a quarta-feira de Cinzas, sem falta, chegando ao bloco entre 15h e 20h, para sair só ao amanhecer.

O bem organizado tabuleiro de M.G.S., que trabalha de açougueiro durante o dia - Matheus de Moura/UOL - Matheus de Moura/UOL
O bem organizado tabuleiro de M.G.S., que trabalha de açougueiro durante o dia
Imagem: Matheus de Moura/UOL

Vale o custo-benefício

Quando conversou com TAB, não tinha muita noção de quanto já havia lucrado no Carnaval, mas previa mais de R$ 2.000; em perspectiva, fora de temporada, o açougueiro lucra, como baleiro, R$ 400 por fim de semana, finalizando algo em torno de R$ 1.600 no fim do mês.

Para encher seu tabuleiro, como é chamada a caixa aberta onde ficam dispostos os produtos (doces, cigarros e outras coisas de loja de conveniência e tabacaria), gasta em média R$ 750, valor considerado alto pois, segundo explica, seu tabuleiro é um dos maiores nas festas que frequenta.

"Baleiro grande e bem arrumado, é isso que faz vender!", brinca, após explicar que, com a chegada da pandemia e o aumento do desemprego no Brasil, o número de baleiros aumentou exponencialmente na Grande Rio, fazendo com que ele tenha que ralar para se destacar diante da concorrência — justificando assim a blusa social e o tabuleiro grande e diversificado.

Com ele, que trabalha no ramo há uns sete anos, pode-se encontrar cigarro avulso a até R$ 3, maço a até R$ 35, chocolate por R$ 5, pirulito por R$ 1, Trident por R$ 4, Halls por R$ 3 e amendoim por R$ 2 — preços que considera "justos" para a média noturna.

Antigo dono de uma loja de doces no subúrbio carioca, M.G.S. explica que tira muito mais como ambulante do que com sua antiga lojinha. O custo-benefício é alto, pois, além de tudo, há pouco perigo no trabalho, afinal, "todo mundo respeita baleiro; traficante, miliciano, assaltante, ninguém mexe com a gente".

Ele relata que, em labutas na praia, já chegou a vender cigarro para bandidos conhecidos e foi super bem tratado. O baleiro também já abriu o tabuleiro em bailes de favela. "Lá [em bailes] a gente entra e vende sem nenhum problema. No máximo", confessa, "tem os milicianos, que cobram para poder vender dentro das festas deles? lá na zona oeste já me cobraram R$ 50 para trabalhar."

O tabuleiro de Anderson da Silva tinha, além de doces e cigarros comuns, vapes e dichavadores - Matheus de Moura/UOL - Matheus de Moura/UOL
O tabuleiro de Anderson da Silva tinha, além de doces e cigarros comuns, vapes e dichavadores
Imagem: Matheus de Moura/UOL

Concorrência direta

A alguns metros de M.G.S., Anderson da Silva, 42, um homem negro de cabelo curto e regata amarela, trabalhava freneticamente em frente ao tabuleiro, esbaforido da corrida para repor os maços de cigarro na banca de jornal próxima à Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) enquanto sua amiga cuidava da mercadoria para ele.

Baleiro há quase quinze anos, discorda da visão do colega de profissão quanto a ser uma profissão segura. Sim, criminosos tendem a respeitá-los, mas, no estalar de uma confusão (briga e/ou operação policial), uma das vítimas mais óbvias de violência é o baleiro.

"Às vezes, uma garrafa pode voar na gente ou até um tiro nos atingir", explica ele, que garante ter tido amigos vítimas desse tipo de violência. Para ilustrar, ele cita o caso de um baleiro que foi morto por um policial militar na frente de um bar de Campo Grande, na zona oeste do Rio, em dezembro de 2021. O trabalhador foi baleado no pescoço durante uma confusão envolvendo o segurança do local e o PM.

Apesar disso, ele, que carrega um tabuleiro considerado de porte médio ("muito grande torna difícil de andar no meio das pessoas"), trabalha majoritariamente em bailes de favela, sentindo-se respeitado pelos chefes de morro e o público funkeiro. O Carnaval, contudo, é uma ótima oportunidade para se tirar uma boa grana do asfalto.

Enquanto fumava um cigarro paiol, Anderson dizia que seu tabuleiro custava uma média de R$ 700 para encher de produtos. Ele vende itens mais caros que M.G.S, como dichavador de maconha ("tenho mais de 250 desses em casa pra vender") e cigarro eletrônico, o "vape", cuja comercialização é ilegal.

Jornalista comunitário, Igor Melo atua como baleiro às sextas e sábados - Matheus de Moura/UOL - Matheus de Moura/UOL
Jornalista comunitário, Igor Melo atua como baleiro às sextas e sábados
Imagem: Matheus de Moura/UOL

Justamente por medo de uma possível apreensão da Guarda Municipal ou da PM, o jovem jornalista comunitário e baleiro nas sextas e sábados Igor Mello, 28, fica receoso de vender "vapes", embora acabe por fazê-lo pois, segundo explica, dá para tirar uma boa grana com eles. Compra um de 100 a 200 pushes por R$ 40 e vende depois por R$ 90; se for um com maior capacidade de tragadas, consegue vender por até R$ 300. "A polícia tira da gente porque tem preconceito, acha que a gente vende droga. Não é porque sou baleiro que vendo droga!", desabafa.

Sentado na praça Mauá, perto do Museu do Amanhã, ele parecia um tanto entediado pela oscilação no movimento, no crepúsculo de segunda-feira (28). A festa, que parecia ter se formado por causa de uma bandinha de rua, mal tocou 15 minutos de música e já havia encerrado o dia, frustrando comerciantes e foliões, que foram lentamente se dissipando.

Mas Igor não reclamava: só naqueles dias faturaria por um mês. Acostumado às vendas em festas das zonas centro e sul, disse que sua maior preocupação era com a ética da venda de cigarros. "Hoje em dia tem muito menor de idade comprando. Fico triste, pois eu mesmo não fumo."

Assim que o bloco se dissolveu, seguiu junto dos festeiros, disposto a parar somente na manhã seguinte, quando não houvesse nem mais uma alma dançante nas ruas. No pior dos casos, se nenhuma festa render, como dizem os baleiros, sempre dá para ir à Lapa.