Topo

'Já matei Putin 100 vezes': ucranianos em SP lamentam guerra e temem futuro

A artista plástica Ludmila Szymanskyj (sentada), Olga Samila (à dir.),seu marido Miguel Atamanczuk e, à esq., o padre Elton Estefano Wonsik - Fernando Moraes/UOL
A artista plástica Ludmila Szymanskyj (sentada), Olga Samila (à dir.),seu marido Miguel Atamanczuk e, à esq., o padre Elton Estefano Wonsik
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Sibele Oliveira

Colaboração para o TAB, de São Paulo

07/03/2022 04h01

Não é a primeira vez que Ludmila Szymanskyj, 85, vê seu país ser destroçado. Apesar de a Segunda Guerra Mundial ter sido o cenário de quase toda a sua infância, o sofrimento dela agora, ao acompanhar a ofensiva russa à Ucrânia, é maior.

"Na outra guerra eu não chorei porque era criança. Nessa eu choro. Não aguento mais ver televisão e também não aguento ficar sem notícia. É muito difícil ver criancinhas retiradas do domicílio. Levadas para onde? E a comida? E a água? E o bercinho para dormir?", questiona, com os olhos inundados, na sala de sua casa no Jardim da Saúde, zona sul da capital paulista.

A artista plástica viveu dias de terror nos primeiros anos de vida. Tinha seis anos quando a frente de combate chegou à Slovianski, em 1942, cidade em que morava com a família. Por sorte, conseguiram escapar. Durante a fuga, se não encontrassem abrigo na casa de pessoas decididas a ficar, dormiam ao relento.

As primeiras memórias da ucraniana são de estradas forradas de pessoas puxando carrinhos parecidos aos usados por catadores. Neles havia poucos pertences, porque os donos, vencidos pelo cansaço, largavam panelas, roupas e outros objetos no caminho. Também dói em Ludmila a lembrança da mãe deitando em cima dela e de um dos irmãos para protegê-los dos estilhaços das bombas.

Ludmila Szymanskyj, nascida na Ucrânia e que vive no Jardim da Saúde, em São Paulo - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Ludmila Szymanskyj
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Quando a Segunda Guerra acabou, restou à família viver num campo de refugiados na cidade de Hanover, na Alemanha, que tinha aproximadamente 5 mil pessoas, ucranianos em sua maioria. Viveram lá três anos.

Vendo a Europa destruída, o pai de Ludmila aproveitou uma oportunidade e trouxe a mulher e os filhos para São Paulo. Mesmo sem falar português, estranhando as fantasias de Carnaval e se assustando com as bombinhas lançadas em festas juninas, estar no Brasil era o céu para a então pré-adolescente.

Ludmila revisita o passado na casa onde mora há 59 anos, cujas paredes são decoradas por quadros pintados por ela. Sua arte também está nas pêssankas, ovos estampados com desenhos escritos com cera de abelha, que enfeitam a mesa de centro. O artesanato típico e a blusa que veste, bordada com ponto-cruz nas cores preta e vermelha, usadas no centro da Ucrânia, mostram que no lar onde ela vive sozinha, as tradições do país seguem vivas.

Padre Elton Estefano Wonsik, descendente de ucranianos - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Padre Elton Estefano Wonsik, descendente de ucranianos
Imagem: Fernando Moraes/UOL

O inimigo tem nome

A convite da reportagem, também está na sala o padre Elton Estefano Wonsik, 33, bisneto de ucranianos, nascido em Campo Mourão (PR). Vieram também a jornalista Olga Samila, 66, filha de ucranianos, natural de Curitiba, acompanhada do marido, o engenheiro eletrônico Miguel Atamanczuk, 67.

O clima é de seriedade e consternação. Ludmila, a jornalista e o líder religioso expressam o que têm sentido nos últimos dias. A conversa é a mesma que ecoa por toda a comunidade ucraniana no Brasil, formada por cerca de 600 mil pessoas — 10 mil residem em São Paulo.

Quando o nome do presidente russo é trazido à baila, a indignação é geral. "Gente inocente que não deve nada está morrendo. O sangue está sendo derramado por pretextos de uma pessoa que não tem condição física nem psicológica de falar sobre coisa alguma, porque é uma pessoa que tem distúrbio mental, o Putin. Ele quer que a Ucrânia não tenha vida", desabafa Wonsik, padre da Paróquia Católica Ucraniana Imaculada Conceição na Vila Bela, na zona leste.

Para Olga, a motivação do estadista para a guerra é clara. "A gente tem visto a dobradinha Putin-Lavrov vindo há anos trabalhando nisso tudo. O ódio que esse homem sente pela independência das ex-repúblicas soviéticas é algo muito sério. A Ucrânia sempre foi a cereja do bolo, o celeiro do mundo, o país mais bonito. Dos países da antiga União Soviética, é o mais antigo, que tem uma cultura muito rica e uma história milenar. Para a União Soviética, a perda desse país foi uma afronta pessoal ao Putin." Um parente de Olga de cerca de 40 anos será convocado em breve à guerra.

Ludmila se remexe no outro sofá e sua delicadeza particular dá lugar à revolta. "Quer saber? Eu já o matei cem vezes. Pode escrever isso."

A jornalista Olga Samila - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
A jornalista Olga Samila
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Laços quebrados

Todos rechaçam a ideia de irmandade entre a Ucrânia e a Rússia. "Em algum momento foram povos irmãos. Hoje, não são mais", frisa Olga. Pegando carona no assunto, Ludmila é categórica. "O povo russo é uma má ovelha. Os líderes não se conformam com nossa independência. Eles querem ter a Ucrânia sob sua jurisdição. A gente não tem nada contra eles, mas nós não amamos muito os russos. A vida inteira eles querem dominar nossa terra." Ela teme que a Terceira Guerra Mundial comece pelo "louco" do Putin, como o define.

Num tom mais ameno, Wonsik separa o joio do trigo. "O problema são os líderes russos. Sempre foi. Lá também existe gente boa, pessoas do bem. O que a gente condena é a forma da política russa, dos líderes e governantes russos. Há divergências, mas a gente também tem que ver a outra parte. Existem pessoas que estão inclusive a favor da Ucrânia. Ontem vi uma reportagem que achei bonita, de um soldado russo que estava defendendo a Rússia, se rendeu e foi para o lado ucraniano." Refletindo sobre a fala do padre, Olga observa. "Em uma guerra, seja ela qual for, por qual motivo for, não existem vencedores. Existem apenas vencidos."

Nas mãos de Olga Samila, uma mótanka, boneca de pano tradicional da Ucrânia, feita de retalhos - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Nas mãos de Olga Samila, uma mótanka, boneca de pano tradicional da Ucrânia, feita de retalhos
Imagem: Fernando Moraes/UOL
As pêssankas de Ludmila Szymanskyj: ps ovos são estampados com desenhos escritos com cera de abelha - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
As pêssankas de Ludmila Szymanskyj
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Distância que não separa

Os três têm mantido contato com parentes e amigos que moram na Ucrânia. É por meio dessas fontes que são informados de histórias trágicas, que escapam da cobertura da imprensa. Ficam com o coração partido quando ouvem relatos. Ludmila volta a ficar em lágrimas. "Essa guerra, para quê? Invadiu por quê? Para anexar um pedaço de outro território e reconstruir a União Soviética? Aqui nós estamos chorando, pedindo, rezando que ela acabe logo."

Wonsik pede a palavra. "É uma dor no coração em 2022, em meio à pandemia, vir uma pessoa dessa provocar uma guerra. É algo inaceitável. A gente sofre muito." Ele acompanhou de perto o início das tensões que precederam o conflito quando morou em Lviv, entre 2011 e 2014. Lá deixou amigos padres, que como ele estão desesperados só de pensar que a Catedral de Santa Sofia — construída há mais de mil anos em Kiev — e prédios monásticos podem ser bombardeados.

O patriotismo de Ludmila, Elton e Olga ficou mais forte com a chegada da guerra. A dona da casa abre um sorriso quando diz que seu povo é composto por bons cidadãos, que amam a pátria. A jornalista afirma que, mesmo sendo brasileira, a Ucrânia é sua pátria do coração. Explica as origens da mótanka, a boneca toda feita de retalhos que não tem rosto e dada de presente, considerada um amuleto de proteção entre os ucranianos. O padre conta que, quando visita a mãe, sente prazer em ouvir orações e hinos em ucraniano na igreja. "O sentimento é de orgulho de ter nas minhas veias o sangue ucraniano."

Em meio aos ataques sangrentos, os ucranianos veem a fé como um farol num mar revolto e escuro. "Stalin não conseguiu matar nossa religião. Assim que ele morreu, logo abriram igrejas, porque as nossas foram tiradas de nós para virar estábulos e armazéns. E o povo voltou a rezar", conta Ludmila. Elton Estefano flagra nos fiéis de sua paróquia essa mesma crença em dias melhores.

Mais leve do que começou, a conversa termina com o trio entoando em coro a saudação usada pelos ucranianos nos finais de diálogos, mensagens e manifestações. "Slava Ukraini! Heroiam Slava!" (Glória à Ucrânia! Glória aos Heróis!).