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Futuro bairro em clube de golfe dos Matarazzos revolta vizinhos em Osasco

O empresário Anderson de Souza vê da janela de seu apartamento trecho de mata que será cortado para construção de prédios em clube de golfe em Osasco - Rodrigo Bertolotto/UOL
O empresário Anderson de Souza vê da janela de seu apartamento trecho de mata que será cortado para construção de prédios em clube de golfe em Osasco
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Rodrigo Bertolotto

Do UOL, em Osasco (SP)

12/03/2022 04h01

Nenhuma região em São Paulo merece mais a classificação de "área nobre" do que a da Vila São Francisco e do Parque dos Príncipes (zona oeste), afinal, foi loteada por duas condessas italianas, as irmãs Grazielle e Claudia Matarazzo. Incrustados no limite com Osasco, os bairros são enclaves de alto padrão no meio do subúrbio empobrecido.

Mas por lá há uma revolta. "Quando ouvi o barulho das motosserras, saí correndo. Estavam derrubando várias espécies. Outras estavam com o 'X' da morte pintadas nos troncos. Me ajoelhei e comecei a chorar. Tentaram me expulsar. Só me acalmei quando chegaram mais vizinhos e a Polícia Ambiental. Mesmo assim, de noite saiu um caminhão com toras de 60 anos ou mais. Para mim, era como um carro funerário", relata a engenheira de software Lígia Ferreira, moradora do condomínio ao lado.

Mesmo com tanto gramado, uma clareira surgiu no meio do bosque do São Francisco Golf Club para erguer um estande de vendas para 19 torres de até 45 andares a serem construídas onde há nove décadas os golfistas tentam acertar os nove buracos do campo diariamente. O chamado "Bairro Golf" é apresentado pela incorporadora e construtora Ekko como "o maior projeto imobiliário da América Latina", incluindo na conta os outros sete prédios que estão sendo erguidos por ela no entorno.

Na última quinta, a Ekko, após recomendação do Ministério Público, interrompeu o corte das árvores. Do total de 193 autorizadas pela prefeitura de Osasco, 30 foram derrubadas (outras 30 ainda vão ser cortadas, segundo a empresa).

A vizinhança está mobilizada porque o projeto inicial prevê uma muralha cinza de edifícios de 130 metros de altura e a supressão de 74 mil m² de mata em um município que é o segundo na lista de menor índice de arborização na Grande São Paulo — Osasco, com menos 20% do mínimo recomendado pelo OMS (Organização Mundial da Saúde), só perde para São Caetano no quesito.

Entre porcos e jacarés

O agricultor Francesco Matarazzo (1854-1937) migrou para o Império do Brasil em 1881 e, começando com a produção e o comércio de banha de porco, construiu o maior complexo industrial da América Latina. Por ter enviado mantimentos para a Itália durante a 1ª Guerra Mundial (1914-1918), ganhou do rei Vittorio Emanuele 3º o título de conde. Quando morreu em 1937, ele detinha a maior fortuna do Brasil e a quinta do mundo.

Caçula entre seus 13 filhos, Luís Eduardo Matarazzo (1902-1958) herdou, além do título nobiliário, terras que depois foram urbanizadas, iniciando a vocação imobiliária desse ramo da família. Golfista amador, ele montou um campo com três buracos em uma das chácaras, onde atualmente está localizado o grifado Shopping Iguatemi. Depois de lotear ali, surgindo o Jardim Paulistano, o conde Luís Eduardo começou em 1937 a construir o São Francisco Golf Club na área de uma das três fazendas de sua propriedade, na fronteira entre São Paulo e Osasco, onde havia criação de bois e búfalos e plantação de eucaliptos.

Ao morrer em 1958, deixou para as duas filhas as fazendas. A condessa Claudia ficou com a área onde surgiu o Parque dos Príncipes, condomínio semiaberto de classe média-alta no meio do bairro popular do Rio Pequeno.

clube de golfe são francisco - Acervo Avive - Acervo Avive
Caminhões retiram árvores cortadas em bosque dentro de clube de golfe no município de Osasco
Imagem: Acervo Avive

Já a condessa Grazielle recebeu a área chamada "Cidade São Francisco", incluindo o campo de golfe. Ela, junto com o marido, o conde Raffaele Leonetti, preferiram investir em empreendimentos ao longo do tempo ao redor de sua mansão, que domina um quarteirão inteiro no alto de um morro. Enquanto os terrenos recebiam novos moradores, o campo de golfe, além dos esportistas diurnos, ganhou como habitantes permanentes oito jacarés vindos do Mato Grosso, na lagoa perto do último buraco (quatro estão vivos até hoje).

A condessa Grazielle também usou a sede do golf club como cenário para o tradicional almoço com as consulesas, encontro das socialites paulistanas com as representantes do serviço consular em São Paulo. Entre taças de champanhe e canapés, elas trocam dicas de viagens por recomendações de restaurantes na cidade.

O clube tem hoje 100 sócios, com pacotes de até R$ 5.120 para jogar aos fins de semana durante todo um ano. O curioso é que em volta do campo não há tela, o que garante bolinhas voando pelas avenidas laterais e, às vezes, acertando os carros.

A vista tem prazo

O edifício Vista Golf está começando a ser erguido na Vila Yara, em Osasco, com o seguinte slogan: "Uma vista de tirar o fôlego". O problema é que a própria incorporadora vai tirar parte do panorama em poucos anos, segundo o próprio projeto do Reserva Golf, o empreendimento dentro do clube. No mercado, chega-se a pagar até 30% a mais em apartamentos com a chamada "vista eterna", mesmo que ela seja provisória.

Outro trecho desse projeto vai condenar à sombra os moradores do condomínio horizontal Golf Life, durante todo o inverno. "A gente não está preocupado com nossas janelas. Queremos que as áreas verdes sejam preservadas. Podem tirar a minha paisagem desde que não cortem as árvores. Esse movimento não é elitista, o que a gente quer é qualidade de vida e de ar para todo o município. Se virasse um parque público seria melhor ainda", conta o empresário Anderson de Souza, morador do bairro há 12 anos e integrante da Avive (Associação Vila Que Te Quero Verde), grupo formado há dois anos.

Maquete mostra futura construção de 19 torres em campo de golfe da família Matarazzo em Osasco, na Grande São Paulo - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Maquete mostra futura construção de 19 torres em campo de golfe da família Matarazzo em Osasco, na Grande São Paulo
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

São Paulo e Osasco têm leis diferentes. Do lado paulistano, as árvores antigas estão protegidas, e oito andares é o máximo nas construções. No rincão osasquense, não há proteção para as plantas, e o céu parece ser o limite para os edifícios. "Passarinho não conhece os limites das cidades, mas aqui eles vão perceber", comenta Souza.

Giuliano Locosselli, biólogo especializado em florestas urbanas e morador do entorno, aponta diversas vantagens da manutenção dos bosques: regular o clima (o ar é até 3°C mais baixo ali que no cimentado centro de Osasco, e a superfície, até 10°C mais fria), formar parte de um corredor verde para a avifauna (ligando o Parque do Jaraguá e as áreas da Cidade Universitária, Alto de Pinheiros, Jardins e o Parque do Ibirapuera), servir de "esponja" para as chuvas e garantir a biodiversidade da floresta urbana.

"Os empreendedores dizem que não tem problema tirar eucalipto porque não é planta nativa, mas eles estão consorciados com outras espécies. A biodiversidade urbana inclui tudo. Só na arborização de São Paulo são 500 nativas e 300 exóticas. A retirada de uma ou de outra gera impacto", afirma Locosselli.

Tacos e tocos

Além do clã Matarazzo, outro personagem ilustre do século passado teve terreno vendido para virar prédio na região: o escultor modernista Victor Brecheret (1894-1955). Apesar de a casa estar tombada pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico), por ter dois afrescos do artista, os herdeiros dele venderam o terreno. A construção, onde ultimamente funcionava uma escola infantil, agora vai ser incorporada a um edifício residencial como área comum.

"Meu avô comprou o terreno, já com a casa, da família Matarazzo, que eram os grandes mecenas da arte na época. Ele só vinha pra cá nos fins de semana para descansar. Ele decidiu decorar dois nichos com pinturas, mas em geral não trabalhava aqui. Depois que ele e minha avó morreram, a gente acabou alugando para várias pessoas", conta o engenheiro Fernando Brecheret.

campo de golfe são francisco - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Giuliano Locosselli, biólogo especializado em florestas urbanas, diante de bosque a ser cortado para dar lugar a prédios em Osasco, na Grande São Paulo
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Essa chácara está logo ao lado do condomínio onde vive Lígia Ferreira. "O sentimento é de luto. Imaginar uma vida encaixotada por prédios onde hoje há mata é deixar um futuro muito árido para nossos filhos", afirma, entre lágrimas.

O clube de golfe tem três nascentes e é habitado por saguis e saruês. Se o projeto "Bairro Golf" sair como está agora, traria mais de 16 mil moradores para a região, o que aumentaria em 50% o já congestionado trânsito da região, segundo cálculo da Avive.

Por seu lado, a empresa Ekko afirmou que o projeto ainda é "embrionário" e "de longo prazo" e que vai submetê-lo à Graprohab (Grupo de Análise e Aprovação de Projetos Habitacionais do Estado de São Paulo), colegiado que reúne órgãos como Sabesp, Cetesb, Secretaria Estadual de Habitação, entre outros. Comunicou ainda que vai se responsabilizar por obras de compensações tanto na questão ecológica quanto de trânsito na área.

Já a prefeitura de Osasco respondeu que autorizou o corte de "árvores isoladas", fiscalizou a supressão e que tem a catalogação das árvores do bairro. Disse ainda que não tem plano de fazer um parque público no local, mas que a empresa Ekko apresentou proposta de dois parques de acesso geral (um deles fechando à noite).