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Hoje só as saúvas frequentam a 1ª 'Disneylândia brasileira', em Guarulhos

Ruínas do parque de diversões Vasconcelândia surgem em meio a vegetação na zona rural de Guarulhos (SP) - Rodrigo Bertolotto/UOL
Ruínas do parque de diversões Vasconcelândia surgem em meio a vegetação na zona rural de Guarulhos (SP) Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Rodrigo Bertolotto

Do TAB, em Guarulhos (SP)

27/03/2022 04h01

Apresentada aos futuros acionistas como "o maior centro de diversões e turismo do mundo", sobraram da Vasconcelândia apenas ruínas no meio da zona rural de Guarulhos. Por lá, a única fila é a das saúvas, indo e voltando atrás de folhas. Rodopios e rasantes só os das andorinhas, desenhando montanhas-russas no ar. Do meio do lodo, onde havia um lago represado, antigos funcionários resgatam pedalinhos afundados, que depois consertam e vendem para sitiantes vizinhos.

As cinzas do humorista José Vasconcellos (1926-2011), seu idealizador, foram lançadas pela família ali onde ele depositou seus sonhos e suas economias, após lotar teatros ao longo das décadas de 1950 e 1960. Considerado o introdutor do formato stand-up comedy no Brasil, Vasconcellos quis importar outra fórmula norte-americana de entretenimento, os parques temáticos. O sucesso, porém, não se repetiu.

"Era um lugar para dar alegria para o povo. Hoje é só mato e tristeza", resume Vanderlei Cruz, 46, ex-funcionário da Vasconcelândia, assim como boa parte de sua família. Sua mãe, Antônia, trabalhava na bilheteria. Seu avô, Simão, era o responsável pelos passeios de charrete. E ele mesmo foi garçom, recepcionista e jardineiro no empreendimento.

Pelo anúncio publicitário de 1967, a Vasconcelândia reuniria em um vale perto da serra da Cantareira desde a pré-história, com réplicas de dinossauros, até cenários de conquista da Via Láctea, com foguetes espaciais e naves extraterrestres. Além de teleférico e roda gigante, o parque teria ferrovia particular, anfiteatro para 5.000 pessoas, museu de cera, rinque de patinação, aquário gigante e "restaurantes de todos os países".

As pretensões do humorista esbarraram na falta de investidores e de apoio dos governantes estaduais e municipais. A estrada de terra que existia até dez anos atrás dificultava o acesso. As quedas no fornecimento de luz também eram frequentes.

Essa foi a primeira tentativa de se criar uma Disneylândia brasileira. Depois da Vasconcelândia vieram outras, com tantas subidas e descidas como as dos brinquedos mecânicos que ofereciam.

O reino encantado de Guarulhos

Se Walt Disney anunciou em 1965 que ergueria sobre os pântanos da Flórida a Disneyworld, seu segundo parque após o pioneiro na Califórnia (inaugurado em 1955), por que não fazer o mesmo no Brasil? Foi assim que pensou Vasconcellos. Ele havia viajado para a Costa Oeste dos EUA e visitado várias atrações, inclusive o Knott's Berry Farm, considerado o primeiro exemplo de parque temático do mundo, criado em 1940 a partir de um restaurante de estrada muito visitado.

Naqueles tempos, Vasconcellos era uma estrela do humor nacional. O show "Eu Sou o Espetáculo" lotava teatros pelo país inteiro, e sua versão em vinil foi o primeiro disco de humor a vender mais de 100 mil cópias por aqui. Ele também foi o primeiro Bozo do Brasil, gravando LPs de versões musicais do personagem norte-americano e fazendo apresentações em palcos.

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Publicidade em jornal para conseguir acionistas para a Vasconcelândia, parque de diversões idealizado pelo humorista José Vasconcellos nos anos 1960s
Imagem: Reprodução

Aproveitando o surgimento da Bolsa de Valores de São Paulo, o humorista começou a vender ações de seu projeto. Escritórios nos centros de São Paulo e de Guarulhos recebiam os pequenos investidores, e os corretores percorriam as ruas atrás de pessoas interessadas em um bom negócio. "Alegria a toda hora, o ano inteiro, para sempre? E dá muito lucro" e "Cada ação da Vasconcelândia é uma máquina registradora trabalhando dia e noite para você" eram alguns dos slogans.

Fora a publicidade, Vasconcellos gastou todas as economias na terraplanagem e infraestrutura da área doada em Guarulhos. Como os acionistas e patrocinadores ficaram escassos, ele mudou a estratégia e passou a vender títulos de sócio, e o local virou durante a década de 1970 um clube para os feriados, com chalés, piscinas, cavalos, pedalinhos, quadras e uma pista para buggies. E ainda tinha em seus gramados um avião de caça Gloster Meteor, de fabricação inglesa, doado pela FAB (Força Aérea Brasileira).

As angústias da diversão

No início dos anos 1990, o veterano humorista foi chamado por Chico Anysio para interpretar o gago Rui Barbosa Sá Silva no programa de TV "Escolinha do Professor Raimundo". As gravações no Rio afastaram o comediante de sua Vasconcelândia.

Justamente quando ele desistia de seu sonho, um ex-coadjuvante do programa "Os Trapalhões" começava a realizá-lo: Beto Carrero. João Batista Murad (1937-2008), que encarnava o cowboy fictício, viajou para os EUA com o comediante Renato Aragão e se impressionou com os parques de lá. Na volta, comprou um terreno em Penha, cidade catarinense conhecida antes pela pesca de baleia, para construir seu empreendimento. A proximidade de Balneário Camboriú, Blumenau, Joinville, do aeroporto de Navegantes e da rodovia BR-101 ajudou o projeto. O que começou com apenas uma roda gigante e uma lona de circo em 1991 hoje é o maior parque de diversões da América Latina. Beto Carrero morreria em 2008 sem ver a grandiosidade do projeto que iniciara.

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Copo com logo do Playcenter é encontrado no terreno antigo do parque de diversões na Marginal Tietê
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Em São Paulo, quem passa pela Marginal Tietê e vê um matagal, cercado por grades derrubadas e arames farpados improvisados, tem dificuldade de imaginar que dali saíram lembranças felizes de milhões de brasileiros, com lampejos cheios de golfinhos, orcas e mongas entre brinquedos piscantes e giratórios.

Só resta do Playcenter trechos do pavimento colorido em vermelho e amarelo e um copo descartável que insistiu em ficar ali como uma marca do passado. É mais fácil encontrar por lá restos de fogueiras com fios metálicos, além de bolsas e documentos de quem foi roubado em algum engarrafamento, mostrando que o baldio é frequentado por revendedores de cobre e delinquentes.

O Playcenter fechou em 2012 prometendo reabrir após uma reforma que nunca aconteceu — outra parte de sua área original é ocupada por espelhadas torres corporativas. Agora o projeto é que ele ressurja em Olímpia, meca turística no interior paulista por suas águas termais.

Aliás, os parques aquáticos também se esvaem. Existente entre 1991 e 1995, o The Waves, atração indoor com piscinas de ondas artificiais e muitos toboáguas, foi bancado pelo grupo suíço de tubulações Amanco. O movimento abaixo do esperado e os prejuízos recorrentes às margens do rio Pinheiros fizeram os empresários estrangeiros venderem o local para um hipermercado, que hoje também está fechado.

Sonho dourado

"Todo fim de semana tenho que expulsar alguém que invade e vem pescar aqui. Se deixar, vai virar bagunça, porque tem cada tilápia graúda aí...", conta Vanderlei Cruz, apontando para o lago que circunda a antiga "Ilha Encantada da Criança". Junto com sua parentela, ele trabalhou na Vasconcelândia até seu fechamento. Mora atualmente em um terreno vizinho ao parque, e seu genro é um dos seguranças.

Na virada do século, a área foi comprada por uma indústria alimentícia, que queria aterrar os lagos e abrir ruas no meio da mata. A obra acabou embargada, e o que restou do parque foi se deteriorando. "Dá uma pena muito grande, porque minha vida foi aqui. Meu sonho era deixar tudo como estava antes, mas o atual proprietário não tem interesse. Eu até corto a grama dele de graça, só para não ver tudo tão abandonado", conta Cruz.

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Com sua mulher, Luzia, o ex-funcionário da Vasconcelândia Vanderlei Cruz posa em uma das estradas do parque temático
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Henrique Vasconcellos, 61, terceiro dos quatro filhos do comediante, foi pela última vez ao lugar em 2011 para espalhar os restos cremados do pai. "Lembro de tudo daquela época, porque passei todos os fins de semana da minha infância lá. Meu pai gastou todo o dinheiro dele, mas foi o sonho que deu para realizar. Hoje fica na memória uma sensação gostosa do que vivi ali", relata.

A região tem 33 nascentes, e seus rios são de uma limpeza incrível dentro da segunda mais populosa cidade do Estado de São Paulo (quase 1,5 milhão de habitantes). A água encanada na casa de Vanderlei Cruz, a mesma que servia a Vasconcelândia, é mineral e vem de uma fonte na serra vizinha. Em terreno próximo há uma fábrica desde 1978 produzindo cervejas e chopes, aproveitando a represa de águas cristalinas — hoje a área é da Ambev, cujo maior acionista é o homem mais rico do Brasil, Jorge Paulo Lemann.

Mas não é de hoje que as pessoas buscam prosperar nas terras e nos rios de Guarulhos. Um século antes do Ciclo do Ouro de Minas Gerais, uma corrida ao metal valioso aconteceu nos cursos d'água nos montes próximos a São Paulo, de São Roque à cidade do aeroporto de Cumbica. Um deles foi o rio Jaguari, que corta o território da Vasconcelândia. O pote de ouro, porém, não se apresenta para todos.

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José Vasconcellos à época que fazia personagem no programa "Escolinha do Professor Raimundo"
Imagem: Reprodução