A Origem

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Estopim

Anna Wintour, inspiração de "O Diabo Veste Prada", causou ao aparecer com um celular de flip no US Open de tênis. Um modelo pré-pago vendido por menos de R$ 50 chamou mais atenção que o ator Hugh Jackman sentado ao lado dela no box de Roger Federer.

Por Felipe Pereira

Não demorou para outros famosos imitarem a editora da "Vogue". A cantora Rihanna tem o dedo nervoso para o Instagram, mas foi vista com um celular que serve apenas para fazer chamadas e mandar mensagens. Teve gente decretando uma nova moda.

Calma aí. Existem sim pessoas que não querem o celular conversando com a televisão, o carro e o computador. Mas se apenas meia dúzia de famosos copiarem Anna Wintour, o movimento morre logo. Caso a atitude represente um novo comportamento, temos uma tendência. Desembolsar milhares de reais num iPhone 6 será cafona.

As respostas para o efeito Anna Wintour virão da observação que antropólogos, sociólogos e especialistas em semiótica farão da sociedade. Muitos acreditam que estilos e coleções nascem da cabeça iluminada de estilistas. Bobinhos. Não há big bang criativo. As grifes se baseiam em relatórios desses especialistas para saber quando mudar o guarda-roupa das pessoas. Foi assim com a calça skinny. Moda é ciência social.

Biografia

Ostracismo, apogeu e declínio da calça skinny

Show das poderosas

A primeira fila dos desfiles do São Paulo Fashion Week era formada pela expressão blasé de consultoras e editoras de moda. Hoje o espaço é das blogueiras. Nada mais justo. A internet embaralhou a moda. Uma coleção não precisa aparecer na novela para ser conhecida. O "look do dia" das blogueiras apresenta as novidades com a vantagem de criar uma proximidade impossível de ocorrer com uma global.

Imagens: Estúdio Akatre

Essa dinâmica se refere ao que acontece da passarela em diante, mas toda coleção é precedida de uma tendência. Uma apostila de colégio diria que tendência é um comportamento capaz de mudar hábitos em diferentes setores da sociedade. Chatinho no conceito, mas bem legal na prática, olha só.

Em 2010 notou-se que os moradores das metrópoles brasileiras estavam chateados de viverem trancados em casa. As pessoas queriam quebrar o isolamento e retomar suas cidades. Batizada de Novos Urbanos, essa tendência se desdobrou na cultura da bicicleta, no food truck e na valorização dos parques. Ela pediu um jeito "menos é mais" de vestir. Ninguém vai pisar na grama de salto fino nem de maquiagem pesada para derreter ao sol. Hora da moda investir em conforto e liberdade de movimentos.

A pessoa da classe C e da classe A têm influenciadores diferentes. Por isso tendências nascem de forma simultânea. Quando me pedem uma tendência eu falo "depende para quem", porque existem várias.

Daniela Dantas, head of advisory da WGSN Mindset Brasil

Difusão

Como uma tendência se espalha pela sociedade

Trickle Down

Gotejamento

Marcas de luxo lançam estilos. Ricos e famosos compram peças das coleções e ajudam a espalhar, fazendo cair no gosto do povo. É a forma mais antiga de difusão. Reinou sozinha em quase todo o século 20 e se baseia numa hierarquização de classes

Bubble up

Evaporação

Um comportamento das ruas sobe para as diferentes classes socioeconômicas até chegar a todos. As Havaianas são um exemplo. Usadas pela base da pirâmide, fizeram uma escalada social e foram parar nos pés de celebridades como a atriz Jennifer Aniston

Trickle Across

Fluxo Horizontal

A tendência se dissipa entre grupos de diferentes classes. Num pequeno espaço de tempo está em boutiques e lojas de departamento. É um sistema semelhante aos virais da internet, como o Brasil falar "taca-lhe o pau" de uma hora para outra

Curva da Zara

Primeira empresa a adotar o fast fashion - produção rápida e contínua de novidades -, a Zara adota o seguinte sistema: monitora o mercado e, quando 16% da população tiver adotado um estilo, ela o produz. A estrutura operacional permite a marca fabricar as peças em 18 dias.

Inovators Artistas plásticos, fotógrafos e designers

Early Adopters Blogueiras e celebridades

Mainstream Consumidores de moda

Retardatários Consumidores esporádicos

Farejadores

Descobrir tendências não é coisa de alquimista, mas dá um trabalhão. Bureaus de investigação esquadrinham a internet todo dia. Mas nada de fuçar o Facebook alheio: a tarefa é feita por gente pra lá de entendida em ciências humanas. Eles sabem que o Tumblr tem mais usuários que o WordPress.

Essa turma frequenta de exposição de arte a rolezinhos - até porque acabou aquela coisa da tendência vir de cima. Levantam as orelhas se percebem pessoas agindo de maneira semelhante em diferentes lugares do país ou do mundo. Pode ser gente antecipando um comportamento que será copiado por todos.

Essa confirmação se dá por meio de estudos complementares. Os donos de bureau dizem que nunca erram, mas às vezes são tão infalíveis quanto o Titanic. Um exemplo é o #seapunk. Nestes tempos de crise econômica, criaturas marinhas como sereias apareceram no Tumblr em colagens toscas que remetem ao punk e ao grunge, acompanhadas de frases de protesto.

O fenômeno se repetiu no mundo, e a Chanel embarcou levando modelos de cabelo verde e azul às passarelas. A H&M e a Nasty Gal incorporaram à coleção. No Brasil, a Riachuelo e a Renner aderiram. Flopou. O fiasco de vendas fez a tendência sumir no semestre seguinte.

A tendência sai da sociedade, não é a moda que dita. O designer entende uma tendência através de uma leitura social

Lylian Berlim, gestora do curso de Moda Contemporânea em Paris

Entendidos veem as lojas de departamento como exemplos de fast fashion. Esse setor também faz suas pesquisas, mas de maneira superficial. Profissionais são enviados à Europa, assistem aos desfiles, circulam por locais descolados e tiram fotos de vitrines. Roupas são compradas e desmontadas no Brasil para copiar a modelagem.

As fast fashion aproveitam as pesquisas de comportamento das grandes grifes e, quando as tendências chegam às ruas, surfam a mesma onda. As duas fórmulas têm dado certo: o setor têxtil responde por quase 10 milhões de empregos no país.

Regra de três

Esqueça a matemática. Lembra que tendência é matéria de Humanas? É o seguinte: se um fenômeno aparece num setor, temos um fato; em dois, é coincidência; três é tendência.

Traduzindo para o mundo real: em 2010 e 2011 a empresa de captação de tendências Box 1824 percebeu que as pessoas das classes C e A estavam ouvindo Naldo. A nova classe média e a elite trocavam referências levando ao comportamento Unclassed Consumption. Abaixo, como o fenômeno mudou a música, a moda e o mercado imobiliário:

Música

Gaby Amarantos e o tecnobrega decolam. Ela faz a campanha de Natal da C&A e vai parar na Vogue

O Multishow cria o TVneja. O funk ostentação estoura e aparecem o pagofunk e o funknejo. Caetano Veloso ergue o braço de Criolo na MTV

Moda

Impulsiona o look periguete e a mulher se assume mais sexualizada. A calça estilo popozuda ganha espaço

A Melissa vira a sandália dos rolezinhos. Homens adotam o boné de aba reta e o visual regata com correntona bomba

Imóveis

O asfalto descobre as lajes do Vidigal, que viram ponto de festa de ricos. Cléo Pires compra uma casa no local

Aparece na novela e celebridades como Kim Kardashian sobem o morro. Apartamentos passam de R$ 1 milhão.

Jogo da tendência

Você consegue distinguir entre looks o que é tendência, o que está na moda e aquilo que já é fora de moda? Se acertar tudo, considere mandar currículo para um bureau

A gente tem uma ideia clássica de uma tendência de moda surgir do estilista, a imagem do 'diabo veste Prada'. Claro que isso continua, mas tem um novo eixo que é o das pessoas e das ruas. Da onde veio o sertanejo universitário?

André Oliveira, diretor de Análise de Tendências da Box 1824

Programados para comprar

Se uma pessoa não engordar 20 quilos nem engravidar, ela tem roupa, calçados e acessórios para décadas. Mesmo assim, as prateleiras do guarda-roupas sempre têm novidades que não foram parar lá por geração espontânea. O consumo venceu.

Com o país cheio de dinheiro após a Segunda Guerra, o governo americano criou maneiras para as pessoas gastarem. A roda tem de girar. O conceito de cultura adolescente nasce nesse período. Incentivado, o hedonismo enfraqueceu a noção de trabalho e recompensa. Ideologias e religiões perderam espaço, enquanto as marcas ganharam terreno.

Quem nasceu a partir da década de 60 está programado para comprar. O consumo virou a maneira de uma pessoa mostrar quem é. O filósofo francês Gilles Lipovetsky batizou o fenômeno de sociedade do hiperconsumo. A moda nada de braçada.

Vitrine desvendada

A moda tá fora de moda

Sempre tem aquele sujeito do contra, que quer ser diferente ou não concorda com o comportamento da maioria. São os caras que dão origem a contratendência, resposta existente a toda tendência. Eles arregalaram os olhos com a loucura em comprar. Dão origem à discussão sobre sustentabilidade. Essa reação, super em alta hoje, afeta o fast fashion por razões óbvias. Há cada vez mais resistência à produção de roupas que saem de moda na terceira lavagem. Como se não bastasse, se acumulam denúncias de trabalho escravo nessa indústria.

Os especialistas divergem sobre os efeitos desse cenário no fast fashion. Uns preveem que as empresas criarão etiquetas sustentáveis para tentar amenizar a queda de receita. Outra corrente acredita que o surgimento de novos mercados consumidores vai garantir clientes. Não é à toa que os melhores resultados da Zara são nos países emergentes. Sempre bem administrada, não seria estranho a moda fazer ainda mais dinheiro atuando nas duas frentes.

Mas os desafios se acumulam. Vinculada à vanguarda, as passarelas deixaram de ser protagonistas das novidades. A gastronomia e o design representam melhor a maneira como as pessoas se enxergam hoje no mundo. O "você é o que come" é cada vez mais forte. A alimentação orgânica predomina nos países do norte da Europa, Oceania, Canadá e cresce nos EUA.

A situação é consequência da aposta furada feita no começo do século que cada indivíduo buscaria um look único para representar sua singularidade no mundo. A moda esqueceu dos ensinamentos de Alexis de Tocqueville, pensador francês do século 19. Quanto maior as possibilidades de escolha, liberdade e expressão individual, mais as pessoas tendem a aderir a um grupo. O ser humano é gregário e optar pelo mesmo que o amigo é mais confortável.

A gastronomia é a nova moda, ocupou o lugar de relevo, de number one que a moda tinha até o final do século 20 na cultura de consumo. Despontando agora, o design é a força nos anos 2010. A moda perdeu um pouco o seu brilho

Dario Caldas, sociólogo e diretor do Observatório de Sinais

Não está fácil pra ninguém. A vida ficou mais complicada até para o mercado de moda. Ele ainda consegue adivinhar o que pessoas de todas as classes irão querer vestir. Fatura um monte de dinheiro. Mas, como em outros setores, precisou se adaptar à vontade da sociedade. Impulsionados pela internet, o bubble up e o trickle across embaralharam as cartas. A indústria vai continuar forte, mas cada vez mais terá de dançar conforme uma música que não controla.

Felipe Pereira

Repórter do UOL. Vai trabalhar com a camisa que se formou no colégio em 97 e se orgulha de ainda caber nela

tabuol@uol.com.br

Esta reportagem também contou com apoio de:

Felipe Pereira, reportagem; Flavio Florido, fotografia; Carol Roquete, styling; Edu Hyde, maquiagem; Goan Fragoso e Annick, modelos; Estúdio Akatre, imagens; Dario Caldas, sociólogo e diretor do Observatório de Sinais, Daniela Dantas, head of advisory na WGSN Mindset Brasil, André Oliveira, diretor de Analise de Tendências da Box 1824, Lilyan Berlim, gestora do curso de Moda Contemporânea em Paris, onde ministra aula nos museus do Louvre, L´Orangerie, Centre Georges Pompidou e outros, Bruno Maletta, diretor executivo da Consumoteca, Luiza Futura, pesquisadora de tendência, prestou serviços para marcas como Globo, UOL, Pão de Açúcar e Heineken Claudia Kather, Márcia Nakagawa e Paula Pianezzola, do blog Moda no Trabalho.

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