MASSACRE SEM FIM

Meu nome é Wellington. Nunca havia me sentido constrangido em dizê-lo para um entrevistado até a tarde de 17 de outubro de 2017. Foi o dia em que liguei pela primeira vez para Adriana Silveira, presidente da Associação Anjos de Realengo, entidade que reúne as famílias das vítimas do massacre ocorrido em 2011 no bairro da zona oeste do Rio.

Disse meu nome e me apressei em revelar que sou jornalista. Pensei que, se não fizesse isso, a minha apresentação soaria como uma menção de mau gosto. O fato é que a recepção de Adriana foi bastante gentil. Nessa conversa, não comentamos a coincidência de eu ter o mesmo nome do assassino de sua filha, o autor do massacre de Realengo.

Mas, nos dias seguintes, reparei no peso do nome cada vez que falava com Adriana ou me apresentava a outras pessoas que convivem com a tragédia daquele 7 de abril. Sim, convivem, o verbo no presente. Porque o dia do massacre não acabou para essas famílias.

Naquela manhã, o Brasil acordou sob o impacto da ação de Wellington Menezes de Oliveira, um rapaz de 23 anos. Ex-aluno da escola Tasso da Silveira, em Realengo, ele invadiu o local com duas armas e fez disparos que mataram 12 crianças – 10 meninas e dois meninos - e feriram gravemente outras 11. Na sequência, se suicidou.

“A bala que atingiu minha filha foi atingindo paralelamente a família toda. Um tiro que atinge um cidadão não tira a vida só dele. Se a família da vítima não tiver estrutura para recomeçar, é a destruição de todos”, afirma Adriana. Sua filha, Luiza Paula, tinha 14 anos quando foi morta.

“Dias depois [do massacre] meu marido sofreu um infarto e ficou muito mal. Vi mulheres (mães de vítimas do massacre) enlouquecerem na minha frente. Eu dizia para a psicóloga: ‘vamos morrer loucas’. Tive que reaprender a viver e renascer das cinzas”, completa.

Adriana lembra que a filha era alegre, comunicativa e carinhosa. Adorava a cantora Ivete Sangalo. Já Wellington teria sofrido bullying na época em que havia estudado naquela escola. Em sua sede de vingança, atirou em crianças de outra geração, que ele nem conhecia.

Entre os sobreviventes, Thayane Tavares, hoje com 20 anos, foi a mais atingida: levou quatro tiros. Antes do massacre, ela praticava atletismo – competia em provas de velocidade e de salto em distância. Apesar de ter ficado paraplégica, não desistiu do esporte e hoje se dedica à paracanoagem.

“A Thayane não ficou só na cadeira de rodas. Ela tem várias sequelas. Depende de sondas para urinar e evacuar, tem muitas dores e toma remédios de uso contínuo. É uma luta diária”, afirma a mãe, a cantora Andrea Tavares, 39.

SEM DOIS FILHOS

Comuns nos Estados Unidos, casos como o de Realengo (ainda) são raros no Brasil. Aqui a violência com armas de fogo se dá de outras formas. De acordo com o Atlas da Violência, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 41.817 pessoas foram assassinadas a tiros no país em 2015, o que representa uma taxa de 20 homicídios por 100 mil habitantes. Segundo o projeto Small Arms Survey, que tem sede na Suíça, a taxa média brasileira ficou entre as 10 mais altas do mundo entre 2010 e 2015.

Outras pesquisas, como o Mapa da Violência, mostram que a maioria das vítimas de homicídio no Brasil são homens jovens e negros. Nesse perfil se encaixam os filhos da educadora Miriam Duarte Pereira, moradora de Sapopemba, zona leste de São Paulo.

Jones e Miguel sonhavam em ser policiais, mas morreram baleados em 2000 e 2003, respectivamente. Usuário de drogas, o primeiro morreu ao tentar um roubo em Santo André, na região do ABC. O segundo foi assassinado após uma discussão no próprio bairro. “De 1998 a 2005 foi um tempo de muita morte aqui na região”, lembra a educadora.

“A gente que é pobre não tem acompanhamento. Você tem de se cuidar sozinha. Você não sabe como o outro vai te escutar e sempre enxerga o preconceito, ‘olha, essa mãe não cuidou dos filhos’. Depois percebe que não é nada disso, que você também é prejudicada e sofre a violência. Aí começa a ver o que é a periferia, que há um descaso e que o jovem daqui não tem oportunidade”, afirma Miriam. Após a morte dos filhos, ela se formou em pedagogia e passou a trabalhar no Cedeca Sapopemba (Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente).

“A perda dos filhos transformou minha vida. Isso me fez ter uma escuta melhor e me deu força para mudar muitas situações, principalmente no meu bairro. Também me deu muita coragem para estudar. Nasceu uma leoa”, diz Miriam.

MÃES CONTRA ARMAS

Tramitam no Congresso Nacional dezenas de projetos para modificar o Estatuto do Desarmamento, propondo o afrouxamento de regras sobre o controle de armas e até mesmo a sua revogação. A questão é sensível para as mães de Realengo e para Miriam Duarte.

“Quem tem que estar armado são as Forças Armadas e os policiais. Mesmo assim, teria que existir um estudo que reavaliasse isso, porque também acontecem muitos acidentes com eles”, afirma Adriana Silveira.

“Só traria mais tragédia. Se estou com uma arma e me vejo numa situação complicada, onde seria eu ou ele [o ladrão], automaticamente eu pensaria ‘antes ele do que eu’. Mas o que isso acrescentaria? Mais guerras e sangue derramado. Nem sei qual seria minha atitude, mas certamente essa não seria a melhor opção”, afirma Andrea Tavares.

“Em de vez de ficarem se preocupando com isso [o aumento do acesso a armas], eles [os parlamentares] tinham que se preocupar com a educação. Sou contra o armamento. O que tenho mais medo na minha vida é arma. Porque se uma pessoa tem uma arma e está desnorteada, ela tem um minuto de destempero, vai lá e mata. Não tem como segurar”, diz Miriam.

VIOLÊNCIA E ESTATUTO

Um representante dos policiais militares e pesquisadores da violência no Brasil fazem coro com as mães. O PM Elisando Lottin, presidente da Associação Nacional dos Praças, que reúne soldados, cabos, sargentos e subtenentes das polícias estaduais, diz que o Congresso tem atuado de forma irresponsável nas questões de segurança. “Temos 500 PMs mortos por ano. A maioria estava armada e 92% morreram baleados. Andar armado não garante defesa. É uma falsa sensação de segurança”, afirma.

"Nós (os policiais militares) é que vamos ter que lidar com esse monte de arma na rua”, prevê Lottin. Ele foi baleado por um assaltante quando jantava em um restaurante de Joinville (SC), em 2007. Apesar de estar armado na ocasião, Lottin afirma que não teve como deter o criminoso. O policial teve o pulmão perfurado e ficou internado por 30 dias.

No livro “Causas e Consequência do Crime no Brasil”, o economista Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra com cálculos econométricos - uso de ferramentas estatísticas para análise de variáveis na economia - que “a cada 1% de armas a mais nas cidades a taxa de homicídios sobe 2%”. O campo de pesquisa foi o Estado de São Paulo. Ele também concluiu que os homicídios custam ao país R$ 160 bilhões por ano, o equivalente a 2,35% do Produto Interno Bruto. “O Estatuto do Desarmamento foi importante para refrear os homicídios. Se não fosse o estatuto, eles teriam crescido 12% a mais”, afirma Cerqueira. O Atlas do Ipea também mostra que os suicídios por arma de fogo caíram depois do Estatuto.

É lugar comum dizer que o Brasil precisa fiscalizar melhor as fronteiras para combater a entrada de armas no território, mas pesquisas do Instituto Sou da Paz indicam que o desvio interno de armas também é um grave problema. A maioria (61%) do armamento apreendido na região Sudeste em 2014 foi fabricada no país. Entre 2011 e 2012, mais de 80% das armas vinculadas a homicídios no Estado de São Paulo também eram nacionais, sendo que grande parte era legal e caiu nas mãos do crime, um risco que pode aumentar no caso de haver mais armamento em circulação.

Lottin, Cerqueira e Ivan Marques, diretor-executivo do Instituto Sou da Paz, dizem que o movimento de parlamentares contra o Estatuto é movido pelo interesse econômico da indústria bélica brasileira, doadora de campanha de políticos e terceira maior exportadora de armas leves do mundo, e por motivações eleitorais.

“Deputados e senadores vêm se aproveitando da insegurança pública para se promover. É leviano dizer que armar a população resolve o problema da segurança. As armas são catalisadoras de violência e homicídio, elas impulsionam a violência”, avalia Marques. Na opinião de Lottin, outro fator, mais subjetivo, motiva o debate. “A arma exerce um poder e um fascínio sobre as pessoas. Ela provoca um efeito psicológico. Com ela, você subjuga as pessoas.”

ATIRAR ATÉ TOMBAR

No outro lado do debate, há atiradores e parlamentares com argumentos favoráveis ao uso de armas de fogo como instrumento de defesa. O instrutor de tiro Nelson de Oliveira Jr. enfrentou uma situação que reforçou a opinião pró-armamento. Depois de mais de duas décadas como atirador e instrutor, ele viveu a experiência limite de estar sob a mira de um revólver e reagir a um assalto. “Pensei que se tratava de uma brincadeira por estar tão próximo da minha casa, na calçada, à luz do dia, em um dia de semana. Ele [o assaltante] simplesmente parou a moto em fila dupla e veio fazer a abordagem”, lembra.

O ladrão queria o relógio de Oliveira e achou que o instrutor fosse policial. “Ele engatilhou o revólver e falou que eu ia morrer. Aí eu tive que fazer uso da arma de fogo para me defender”. O assaltante não teve tempo de fazer disparos. “Na hora que ele tombou, eu parei de atirar”, narra o instrutor.

Oliveira passa por acompanhamento psicológico e tratamento de saúde. “A gente já está preparado, graças a Deus, tecnicamente para isso. Emocionalmente, nunca. É uma sensação desagradável. Segundo as psicólogas e os psiquiatras, a sensação mais estressante que tem é a de que você vai perder a vida”, afirma.

O instrutor teve de responder a um inquérito por homicídio, mas conta com o encerramento das investigações em breve. “O relatório de conclusão do inquérito policial foi por legítima defesa. Estou esperando o arquivamento pelo Ministério Público.” Segundo o instrutor, o homem assassinado tinha passagens pela polícia. “Depois recebi ameaças da família dele como se eu tivesse culpa pelo que aconteceu. Eu não tive alternativa. Era eu ou ele”, analisa Oliveira.

DIREITO DE DEFESA

No Congresso, os principais argumentos dos parlamentares críticos à atual legislação é que ela não reduziu a violência e que cada pessoa deve ter o direito à própria defesa. “O Estatuto foi vendido como solução que ajudaria a combater a violência. O efeito foi contrário. Os índices de roubos aumentaram. Os criminosos sabem que o cidadão de bem está desarmado”, alega o deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF). Para ele, estudos que mostram a estabilização da taxa de homicídios após a aprovação do Estatuto “têm maquiagem” e não são confiáveis.

O deputado se incomoda com a fama de ser integrante da “bancada da bala” e diz que os R$ 80 mil que recebeu na campanha das eleições de 2014 da Taurus, fabricante brasileira de armas, são insuficientes para bancar uma campanha eleitoral. “Minha bandeira é a segurança pública”, declara.

Para Fraga, a prioridade no momento é aprovar o porte de arma na zona rural, o que poderia aumentar uma violência que só cresceu nos últimos dois anos, batendo os recordes de morte de trabalhadores em 2016 (61) e em 2017 (64, até setembro) desde o ano de 2003, segundo levantamento da Comissão Pastoral da Terra.

Além disso, ele defende o aumento do prazo de registro de armas, de cinco para dez anos – recentemente, o governo ampliou o prazo de três para cinco anos –, e a limitação do poder dos delegados da Polícia Federal sobre a autorização de posse e porte de armamentos.

Atualmente, cabe ao delegado avaliar as alegações do interessado sobre a necessidade de ter uma arma. “Queremos atualizar o Estatuto, e não revogar, como dizem. Somos contra o poder discricionário do delegado. Em cima da necessidade, que é subjetiva, é que o delegado nega [a autorização]. Se tirar o arbítrio do delegado, já resolve.”

A revogação está, sim, entre as alternativas propostas por parlamentares. O senador Wilder Morais (PP-GO) propôs um plebiscito sobre a revogação a ser realizado com as eleições de 2018. O parlamentar, porém, também adota alguns cuidados no discurso e reconhece que a diminuição da violência exige outras medidas.

“O estado de insegurança é grande. A arma não vai resolver o problema, mas dá o direito de a pessoa defender sua integridade física e a sua propriedade”, afirma. “A segurança pública é um conjunto de fatores e ações. Temos que começar pela educação, além de diminuir a desigualdade. O que estamos discutindo é o direito de se defender. Não se deve retirar esse direito”, prossegue o parlamentar.

Para Fraga e Morais, os Estados Unidos, onde há facilidade para a aquisição de armamento e, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), uma taxa de homicídios inferior à brasileira, deveriam ser a grande referência para o Brasil. “Mais armas não significa mais crimes”, diz Fraga. O senador também cita o fato de a proibição da venda de armas ter sido rejeitada por 64% dos votos válidos no referendo realizado em 2005. Na ocasião, o governo alegou que o resultado não exigia a revogação da atual legislação, mas apenas impedia o aprofundamento das restrições.

O senador promete que, se o Estatuto for revogado, a lei que vier a substituí-lo manterá as regras para a aquisição de armas. “Tem que ter curso, preparação, teste psicológico e necessidade de bons antecedentes [para obter uma arma]”, declara. Apesar das queixas quanto às restrições da lei atual, Morais obteve autorização de porte legal de arma. “Armado, fico seguro e protegido na minha fazenda.”

CULTURA ARMAMENTISTA

Os defensores da cultura armamentista contestam o Estatuto do Desarmamento desde que ele entrou em vigor, em 2003. “Essa lei já deveria ter sido revogada. Sou a favor ao armamento pessoal. Conheço pessoas que botaram gente para correr, que atiraram, que acertaram”, afirma Mário Collado, dirigente de um clube de tiro na zona oeste de São Paulo e um veterano do meio.

Quem quer ter uma arma, alerta Collado, precisa aprender a manuseá-la e treinar. “Não adianta ter uma arma e não saber usar.” O treinamento, segundo ele, deve incluir as crianças por questão de segurança. “Se você tiver criança em casa, deixe-a saber onde está essa arma e ensine a atirar. É questão de educação.”

“Com essa lei do desarmamento, perdemos uma cultura armamentista onde você via seu tio, seu pai, seu avô, o amigo da família portando uma arma e ninguém dava tiro em ninguém”, afirma o instrutor Nelson de Oliveira Jr..

A legislação tornou mais rigoroso o processo para a aquisição e o porte legal de armas, mas não proibiu ambos - entre os pré-requisitos para comprar uma arma estão ter pelo menos 25 anos e comprovar residência fixa, ocupação lícita, aptidão técnica e psicológica com profissionais credenciados pela Polícia Federal, além de não ter antecedentes criminais. Mas essas regras não fizeram a cultura armamentista se perder completamente. “Herdei armas do meu pai. Quando teve anistia, passei-as para o meu nome. E comprei mais uma que uso para treino e competições”, conta o engenheiro Claudio Pappone. 

Para ele, a prática do tiro funciona como um hobby, uma forma de relaxar, e a posse de armas em casa proporciona segurança. Pappone argumenta que ter uma arma é uma questão individual na qual o Estado não deve interferir. “Não aceito que o Estado venha me dizer o que posso ou não posso fazer.”

Defensor da liberação do porte de armas, Oliveira reconhece que a medida provocaria uma onda de violência em um primeiro momento. “Vai acontecer muita bobagem na hora que liberar o porte de arma. Mas o que acontece com o indivíduo que tira a vida de alguém sem necessidade? Vai para a cadeia, vai responder penalmente.”

A previsão do instrutor mostra como é delicado o debate sobre as armas, que mexe com experiências e sensações extremas, toca nos princípios éticos mais básicos e testa convicções pessoais porque envolve vida e morte. Em meio a paixões e interesses particulares, é importante não perder da mira os pontos centrais da discussão: o combate à violência e a convivência em sociedade. Manter a razão poderia ser a regra número um do debate.

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