Gente branca

O que os brancos de um país racista podem fazer pela igualdade além de não serem racistas?

Que tipo de vantagem um morador de rua branco pode ter em relação aos negros que dividem com ele um pedaço de calçada no centro de São Paulo? Fernando*, um jovem loiro, de pele clara e olhos azuis, é direto ao responder à pesquisadora e psicóloga branca Lia Vainer Schucman: “Ah, ser branco é poder entrar no shopping para cagar”.

Mas não para por aí, claro. Enquanto Fernando ressalta a liberdade de andar pelo centro comercial sem ser abordado pelos seguranças, ao contrário do que diz ocorrer com seus colegas de pele escura, outro morador de rua destaca a vantagem de ganhar mais dinheiro. “Às vezes eu fico na porta de um banco, com três pessoas negras, e já me falaram: ‘Tadeu*, você ganha dinheiro sem pedir, e nós que tamos aqui pedindo demoramos horas para conseguir’. Eu sento na porta do banco para ficar escrevendo, desenhando, e as pessoas me dão dinheiro”, relatou Tadeu a Schucman, autora do livro “Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude e Hierarquia de Poder na Cidade de São Paulo”, fruto do seu doutorado.

No extremo oposto da pirâmide social brasileira, o primeiro negro a ocupar uma cadeira no STF (Supremo Tribunal Federal) foi uma exceção por vezes tratada como regra. Para o bem ou para o mal, a cor de sua pele nunca deixou de ser notada. Para aqueles que apoiavam Joaquim Barbosa, ele era um "negro que mereceu", um “negro que não precisou de cotas”, um "negro que não fez mimimi". Já quem o criticava, incluindo aí muita gente que se diz progressista e antirracista, chegou a chamá-lo de "capitão do mato". Barbosa nunca foi visto apenas como um ministro da principal corte do país. Ele sempre foi “o ministro negro do STF”. A popularidade fez com que cogitasse se candidatar à Presidência em 2018, mas ele acabou por desistir.

A PELE QUE HABITO

Diferentemente dos negros, que precisam lidar com questões raciais desde pequenos, os brancos não costumam enxergar sua própria raça - ou etnia. A branquitude é naturalizada, percebida como padrão, como algo universal. Para os brancos, quem tem raça são os outros. "Quando o branco desperta da sua racialização, parece que bateu a cabeça numa porta de vidro, como diz [a pesquisadora branca] Edith Piza. Ele não tinha visto que estava ali, mas estava. Nós somos racializados, mas parece que levamos um susto ao perceber", compara Ana Helena Passos, branca, doutora em serviço social, professora na Universidade Brasil e cofundadora do Instituto Ella, com foco em estudos de gênero e raça.

Em um grupo de Facebook que debate branquitude, alguns relatos sobre quando cada pessoa se percebeu branca se repetem, como situações em que viram amigos e parentes negros sendo abordados por policiais ou seguranças e momentos em que características físicas como tom da pele, cor dos olhos ou cabelos liso foram destacadas como sinônimo de beleza.

"Percebi que era branco no dia que saí de carro com meus primos negros e numa blitz um policial me perguntou se eu estava sendo sequestrado", diz um deles. “Nunca esqueço um dia que eu fui depilar e uma mulher negra clara me disse que queria ter a pele da cor da minha, que achava lindo, porque a dela parecia suja”, relata outra.

A pesquisa de Lia Schucman feita em São Paulo traz relatos semelhantes. Uma jornalista de classe média se percebe branca no dia a dia quando alguém fala sobre cabelo. “Quando as pessoas chegam e dizem: 'Ah, hoje meu cabelo tá horrível!'. Tem um amigo meu, ele é moreno e reclama muito do cabelo. E eu lembro, meu cabelo nunca tá ruim. E nesse momento eu me dou conta: eu sou branca e ele não", afirma Isabela*.

O historiador e sociólogo negro Lourenço Cardoso definiu duas formas como o branco lida com seu lugar de privilégio em uma sociedade racista: a “branquitude crítica”, que pertence ao indivíduo ou grupo de brancos que desaprova publicamente o racismo, e a “branquitude acrítica”, que acredita no branco como merecedor de suas vantagens por causa de sua superioridade racial.

“Pesquisadores e ativistas brancos antirracistas exemplificam a branquitude crítica, enquanto brancos de pensamentos ou pertencentes a grupos de ultradireita, os integrantes de grupos neonazistas, outros brancos que comungam com o ideal da superioridade racial, mesmo em silêncio, representam a branquitude acrítica”, afirma Cardoso, professor na Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) e um dos organizadores do livro “Branquitude: Estudos sobre a Identidade Branca no Brasil”.

Reconhecer os próprios privilégios, perceber que mesmo pessoas não racistas podem praticar atos preconceituosos ou mesmo que deixar de falar sobre o assunto é de alguma forma compactuar com o racismo estrutural são alguns dos primeiros passos nessa jornada.

A gente que nasceu branquinho claro é como se tivesse sido convidado para uma festa. A gente entra na festa sem problema nenhum, a pessoa nos recebe em qualquer lugar. Acho que o negro tem mais dificuldade

Denise*, publicitária, em entrevista a Lia Schucman sobre privilégios de ser branca

Falar de branquitude, de privilégio branco, só faz sentido em sociedades onde a cor da pele faz diferença. Em uma sociedade de esquimós, onde pode haver mais de 30 cores de branco, mas não houve colonização europeia e uma ideia de raça compartilhada, o tom de pele não significa muita coisa. No Brasil, os indivíduos que ocupam o lugar de branquitude também não são os mesmos em cada região: uma pessoa considerada branca no Nordeste pode ser vista como parda ou mestiça no Rio Grande do Sul. Essa relação pode mudar dentro da mesma cidade, pensa Lia Vainer Schucman. Para ela, uma pessoa considerada branca na zona norte do Rio de Janeiro pode ser considerada parda em Ipanema, por exemplo.

A pedagoga negra Luciana Alves, que pesquisa as relações raciais na educação, define a branquitude como “um conjunto de sentidos que se atribui à pertença racial branca e que está disponível para as pessoas para além da sua disposição individual, mas que só se constrói na relação pejorativa com o outro”. Quer dizer que, mesmo que a pessoa branca não seja racista, ela acessa as vantagens da branquitude. Mas também que, por não ser uma “escolha” individual, ela pode lutar contra isso.

“Quando eu situo a branquitude nesse conjunto de significados e menos em relação a uma identidade individual, eu potencializo a participação de brancos na luta antirracista. Porque eles não vão estar lutando contra si mesmos, vão estar lutando contra um sistema de opressão que é muito maior do que eles”, analisa a mestre em educação e técnica em Assuntos Educacionais na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Mas e onde fica o lugar de fala? “Se você está lutando por igualdade e por democracia, não faz sentido você tolher a fala de ninguém”, diz a educadora. A jornalista Rosane Borges, também negra, reforça essa ideia. “Lugar de fala não deve se confundir com representação. Uma pessoa branca não pode representar uma pessoa negra. Mas do lugar de fala dela, de onde ela vê o mundo, é responsabilidade dela, sim, falar sobre racismo”, afirma a pós-doutora em comunicação e integrante da Cojira (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial).

HERANÇA COLONIAL

Esses diferentes lugares e a dinâmica das relações raciais em cada sociedade têm a ver com sua história. No Brasil, é impossível pensar no racismo sem lembrar os anos de escravização – que durou até 130 anos atrás –, a tentativa de branqueamento da população que começou ainda no Império e a falsa ideia de democracia racial que predominava no começo do século 20.

“Houve um plano político, social, cultural, econômico de misturar todo mundo, para criar uma identidade única brasileira. O ônus disso foi silenciar o discurso racial e silenciar uma identidade negra no Brasil. Nesse balaio de identidade brasileira, não se deu oportunidade econômica à população negra”, analisa Ana Helena Passos.

As primeiras pesquisas sobre racismo, encabeçadas por intelectuais brancos como Florestan Fernandes e Oracy Nogueira a partir da década de 1950, analisaram as questões raciais na perspectiva dos negros. “Era uma perspectiva denuncista, necessária quando você tem uma invisibilização do problema. A gente hoje já está na medida de superar essa perspectiva denuncista. A gente já sabe que existe racismo”, diz Luciana Alves. 

Um dos motivos que levaram a psicóloga negra Maria Aparecida da Silva Bento a estudar branquitude foi justamente a falta de uma investigação sobre o olhar dos brancos. “Eu tinha uma crítica ao Florestan Fernandes, por quem a gente do movimento negro tem o maior respeito. Ele dizia que a escravidão marcou o negro, que tinha dificuldade de atuar como um homem livre por causa da escravidão. E eu pensei ‘como é que ele não diz que marcou o branco, que ficou tantos anos escravizando, estuprando?’", lembra a doutora em psicologia social pela USP e diretora executiva do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades).

Deve ser muito confortável se sentir bonito, inteligente, honesto, habilitado a circular em diferentes espaços com segurança. Só que abrir mão desse conforto para começar a questionar esses sentidos de branquitude talvez seja o passo mais importante que os brancos possam dar na luta antirracista

Luciana Alves, mestre em educação e técnica em Assuntos Educacionais na Unifesp

Também colonizado pelos portugueses, Moçambique conquistou a independência há pouco tempo, em 1975. Grande parte dos brancos europeus deixou o país africano, que teve as terras nacionalizadas e uma série de governos negros na sequência. Hoje, mais de 95% da população é formada por negros, que ocupam cargos importantes nas esferas pública e privada.

Escritor moçambicano mais famoso no Brasil, Mia Couto é branco, filho de portugueses e participou da luta pela independência. Uma exceção. Sua cor de pele, diz ele, fez diferença em alguns momentos. “Sempre tive essa grande felicidade que os moçambicanos me olhavam como moçambicano. Foram pouquíssimos os casos em que me fizeram lembrar que eu tinha uma cor diferente”, conta o escritor, que esteve em abril de 2018 no Brasil para lançar “O Bebedor de Horizontes”.

Mas as marcas do período de dominação europeia ainda estão lá. “Há uma herança que ainda conta, que esses brancos eram filhos de gente que tinha mais privilégios, com mais formação acadêmica etc. E herdaram alguma coisa que seria daquilo que seria a riqueza dos pais, dos avós. Mas hoje a maior parte das pessoas que têm posses não são brancos”, diz Couto.

MIA E A BRANQUITUDE

MENOS OPORTUNIDADES

Último país do Ocidente a abolir a escravidão, o Brasil ainda grita desigualdade. Qualquer que seja a estatística socioeconômica, os negros estão em larga desvantagem. Mesmo sendo a maioria da população composta por pretos e pardos, eles são minoria nas universidades, ocupam menos postos de trabalho – e menos ainda cargos de chefia –, recebem salários menores, menos atendimento médico e são mais vítimas de violência.

Entre 2003 e 2014, segundo o Mapa da Violência, o número de negros mortos a tiros no Brasil passou de 20.291 para 29.813 - um aumento de 46,9%. No mesmo período, os homicídios por arma de fogo na população branca caiu de 13.224 para 9.766, uma queda de 26,1%. A diferença entre os números de mortes de negros e brancos passou de 71,7% para 158,9% em 11 anos.

Segundo dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), do IBGE, dos 13 milhões de brasileiros desempregados no terceiro trimestre de 2017, 8,3 milhões (63,7%) eram pretos ou pardos. A taxa de desocupação dessa parcela da população ficou em 14,6%, enquanto a da branca ficou em 9,9%.

Se você está no estado de São Paulo, em que 40% da população é negra, e não tem 40% de trabalhadores negros em todos os cargos e lugares de poder, se eles estiverem sub-representados nos cargos de poder e super-representados na faxina, isso também tem a ver com racismo

Lia Schucman, pós-doutora em psicologia social

Na saúde, há pesquisas do próprio Ministério da Saúde que apontam que pessoas negras ganham menos tempo de atendimento dos médicos na rede pública e que mães negras recebem menos anestesia antes do parto. Os brancos levam vantagem até na hora de receber uma doação de órgãos – segundo dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 56% dos receptores de coração e 93% dos que recebem um pâncreas doado no Brasil são brancos. E não se trata de médicos escolhendo receptores por sua cor da pele – como acontece em casos como entrevistas de emprego –, mas de condições socioeconômicas. Distância das residências até hospitais de ponta e dificuldades para receber remédios, fazer consultas e exames clínicos estão entre as causas dessa disparidade.

Seja por consequências do racismo estrutural ou de decisões individuais, brancos e negros seguem não tendo as mesmas oportunidades. Entrevistado na pesquisa de Lia Vainer Schucman, João* disse não se sentir racista nos seus relacionamentos pessoais e no dia a dia, mas costuma contratar apenas vendedores brancos para sua loja, localizada em uma área nobre de São Paulo, apesar de a maioria dos candidatos ser negra. “Não sei se isso é racismo, acho que é mais regra de mercado e publicidade. A gente sabe que o cliente vai se identificar com o vendedor e comprar mais, então como minha loja tem maioria dos clientes brancos, eu sempre contrato vendedores brancos”, afirmou.

Já a empregada doméstica Lilian* relatou ter conseguido um trabalho por ser mais clara que a outra candidata: "Eu já consegui serviço porque eu era clara e a outra pessoa era negra. E depois descobri que a patroa era racista, que ela não gostava de negro".

NAS ESCOLAS, NAS EMPRESAS

Em termos institucionais, o Brasil fez alguns movimentos na tentativa de compensar desigualdades históricas, como as políticas de ações afirmativas, cotas sociais e raciais nas universidades públicas, cotas em concursos públicos e leis que determinam o ensino de história da África nas escolas.

Ao ampliar o acesso de pessoas negras às universidades – um levantamento do Semesp, entidade que reúne mantenedoras de ensino superior no Brasil, 44,3% dos ingressantes nas universidades do país em 2016 se declararam pretos ou pardos –, as ações afirmativas também tiveram consequências nos estudos a respeito das relações raciais. Foi depois delas que surgiram reivindicações de brancos pobres, que se sentem preteridos pela reserva de vagas raciais, e que se intensificaram as discussões sobre o papel da branquitude na sociedade, por exemplo.

“O movimento negro costuma dizer que os brancos pobres não têm noção do quanto nos devem, porque essa categoria sociológica não existia antes. As pessoas falavam dos pobres. Quando a gente fala do racismo, não está desconsiderando que existem outras formas de discriminação e de preconceito. Há que se dizer que um branco pobre pode ter mobilidade pela cor dele, independentemente do que ele é”, diz Rosane Borges.

Um branco não precisa ser racista para acessar a herança que a branquitude dos que o antecederam deixaram. Esse conceito de que é mais competente, mais bonito, vai fazer melhor, é mais confiável

Maria Aparecida da Silva Bento, doutora em psicologia social, diretora executiva do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades)

Nas escolas, a lei 10.639/03 tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afrobrasileira e africana. “Tem uma enormidade de estudos que mostra que o não diálogo com a cultura negra torna o ambiente escolar mais hostil para a criança negra. Isso é um dos responsáveis por impactar a permanência delas na escola. Se tem um indicador que é uma invariável ao longo de todos os estudos é que a criança negra é aquela que mais evade, que tem uma trajetória educacional mais truncada”, diz Maria Aparecida da Silva Bento.

Quinze anos depois da aprovação da lei, estudos mostram que a aplicação dos conteúdos ainda depende de ações individuais dos educadores e que pouco se avançou na forma como professores não negros abordam as temáticas em sala de aula e outras atividades. "O único caminho que eu, como educadora, enxergo, é o da ressignificação dos discursos que circulam na escola. E não estou falando só da fala dos professores, tudo na escola é discurso. Os cartazes, os objetos que estão disponíveis, a relação professor-aluno, os livros didáticos, a relação com os pais, tudo isso fornece para criança uma construção do que significa ser branco ou negro naquele espaço”, avalia Luciana Alves, que pesquisa como professores brancos lidam com as questões raciais na escola.

Alguns resultados positivos vêm sendo observados. O projeto Educar Para a Igualdade Racial e de Gênero, do CEERT, tem mais de 3.000 práticas escolares voltadas para o tratamento da temática étnico-racial listadas em mais de 1.100 cidades. “Escolhemos 200 práticas exemplares e visitamos 10, nas cinco regiões, e em todas os gestores disseram que um dos impactos é a permanência da criança negra da escola, com melhores desempenhos”, diz Maria Aparecida da Silva Bento. Segundo a diretora do CEERT, mais de 40% dessas práticas são encabeçadas por professoras brancas. “Mulheres brancas, sem apoio do estado, tomando iniciativas de trabalhar esse tema. Você já tem pessoas brancas, em diferentes segmentos no Brasil, buscando fazer coisas para mudar essa situação, buscando entender melhor seu lugar enquanto branco e o lugar do negro”.

Maria Aparecida lidera projetos em empresas interessadas em trabalhar a equidade racial em diferentes níveis. Mesmo onde as pessoas já são iniciadas no tema, a especialista encontra resistência de pessoas brancas em pensarem o seu papel. “Quando eu estou lá dentro, o que surge na voz das pessoas é ‘Como é que eu acho os negros? Eu divulgo as nossas vagas e os negros não respondem’. Ou ‘A gente vai flexibilizar os critérios', como quem diz 'A gente vai baixar a régua pra vocês entrarem’. Eles não percebem que as instituições brasileiras, públicas e privadas, têm um modus operandi que não inclui os negros”, diz a doutora em psicologia social, considerada pela revista “The Economist” uma das 50 profissionais mais influentes do mundo no campo da diversidade.

NA NOVELA, NA SÉRIE, NO TEATRO

A polêmica mais recente envolvendo relações raciais no trabalho está no ar na maior emissora de TV do país. Ambientada na Bahia, estado com o maior percentual de população negra do Brasil (76,3%), a novela “Segundo Sol” recebeu críticas por causa do baixo número de atores negros em seu elenco. A Rede Globo chegou a ser notificada pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) para que tome medidas que resultem em uma maior representação racial na produção e em outros produtos da casa.

A notificação foi resultado da atuação da Coordigualdade do MPT (Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade e de Oportunidade e Eliminação da Discriminação no Trabalho), onde um grupo de trabalho focado em raça pretende promover outras ações do tipo com outras emissoras. “O grupo já havia definido que esse seria um dos nossos objetos de atuação. A questão vai além dessa das obras produzidas e discute o quadro funcional da empresa. O propósito é que se consiga, através das emissoras de TV, uma atenção especial para a necessidade para a promoção da igualdade e representação”, diz a procuradora do trabalho Valdirene Silva de Assis, coordenadora da Coordigualdade.

Para Lourenço Cardoso, o episódio é um exemplo de caso em que a branquitude crítica poderia atuar. “Todos aqueles que foram escalados para a novela poderiam colaborar com o protesto que o movimento negro vem liderando. Trata-se de uma prática de racismo institucional, não de licença poética. Um ou outro, de repente, poderia se recusar a participar, se tiver condições financeiras. Obviamente, é difícil, todos precisam trabalhar. No entanto, por que sempre o artista negro tem que ficar desempregado?”, questiona o pesquisador.

Você pode participar de um sistema de dominação sendo dominador quando você repete essa lógica sem questioná-la. E a repetição dessa lógica se dá de diferentes formas. É você entrar numa sala de uma universidade pública nos chamados cursos de elite, não ter nenhum negro e ninguém questionar, por exemplo

Rosane Borges, pós-doutora em comunicação e integrante da Cojira (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial)

Longe de poder atingir um público tão grande como o da TV, um grupo de teatro decidiu levar aos palcos de São Paulo a discussão sobre privilégio branco em 2017. Antes de chegar ao texto final de “Branco: O Cheiro do Lírio e do Formol”, os criadores, todos brancos, jogaram fora duas versões do roteiro e pensaram em desistir da peça, dada a dificuldade em abordar o assunto e os riscos de reproduzir situações de racismo em cena.

“Em algum momento a gente pensou que era melhor não falar, fazer uma peça sobre qualquer outro assunto. Mas a questão era essa também: poder não falar é um privilégio dos brancos. É superdifícil falar do assunto, mas não tocar nele é um privilégio, que não deixa de compor esse racismo estrutural e estruturante da sociedade”, lembra o ator Clayton Mariano, um dos idealizadores do projeto ao lado do diretor Alexandre Dal Farra.

O principal objetivo, de gerar incômodo nos brancos da plateia, foi atingido. “As pessoas se identificavam e vinham com a mesma pergunta que a gente fez ao longo do processo: ‘Como é que a gente sai disso?’. O movimento negro reagiu, tomamos várias porradas, mas algumas pessoas negras também nos diziam que viam algum tipo de avanço em brancos estarem discutindo isso. Muitas vezes eu sinto que o anseio é que a gente aponte a solução, ao passo que a gente está falando do problema em si. A arte tem um papel de deflagar, de fazer pensar”, diz Mariano.

Na série “Cara Gente Branca”, da Netflix, a questão da branquitude ganha destaque com o personagem branco Gabe Mitchell (John Patrick Amedori), par romântico da protagonista negra Samantha White (Logan Brownling). Na segunda temporada, Gabe faz um documentário sobre a questão racial, entrevistando colegas negros na universidade onde se passa a série. O recado do negro Reggie Green (Marque Richardson) é direto: "Se quiser mudar as coisas, não fale só comigo. Fale com seus amigos. Fale com a sua família. Fale com os brancos. Se o seu cachorro morde alguém, mesmo você não tendo mordido, a culpa ainda é sua. O racismo é o cachorro dos brancos. E ele tem mordido".

MAS... O QUE FAZER?

Não existe uma cartilha de atitudes esperadas dos brancos que questionam sua própria branquitude. Alguns pesquisadores falam sobre a necessidade de um “letramento racial”, para “reeducar o indivíduo em uma perspectiva antirracista”, baseado em fundamentos como o reconhecimento de privilégios, o entendimento do racismo como um problema social atual, não apenas legado histórico, e a capacidade de interpretar os códigos e práticas racializadas.

Ouvir é sempre a primeira orientação dada por qualquer especialista ou ativista. Uma escuta atenta, sincera e empática. Se uma pessoa negra diz que sofreu racismo, acreditar. E saber que uma pessoa branca nunca vai entender o que ela passou, por mais antirracista que seja. "Uma das principais coisas é atenção à linguagem. A gente tem uma linguagem sexista, racista, homofóbica, que passa pelas piadas, mas passa pelo uso de termos que a gente já naturalizou. ‘A coisa tá preta’, ‘denegrir’, ‘serviço de preto’... Só o fato de você prestar atenção na linguagem já anuncia uma postura de reconstrução. Se o outro diz que tem uma carga negativa e ofensiva, acredite”, diz Luciana Alves.

Valorizar e dar visibilidade ao trabalho de pessoas negras, seja ao consumir produtos, contratar um serviço ou indicar alguém para uma vaga. “Se tem uma vaga na sua empresa, pode indicar um negro. Não precisa dizer que está fazendo ‘cota’, porque quando indica um branco é natural, né? Faça isso da maneira mais natural possível”, sugere Rosane Borges.

UMA CONVERSA FRANCA

E, se as leis ainda dependem das atitudes dos educadores para serem aplicadas, uma educação antirracista pode começar em casa. A família pode conversar sobre raça com as crianças desde pequenas e acompanhar como a escola lida com essas questões. Bonecos e livros de personagens negros significam representatividade para crianças negras e alteridade para crianças brancas.

"A criança começa, desde pequena, a ter um acervo de informações sobre cultura africana e afrobrasileira em pé de igualdade com outras culturas. Começa a ver beleza naquilo. Começa a se identificar, enquanto criança negra, e respeitar, enquanto criança branca”, diz Ana Helena Passos.

A convivência de crianças brancas com outras crianças negras também é importante. Se as únicas referências de pessoas negras para as crianças brancas são trabalhadores da limpeza e da segurança, elas crescem acreditando que esses são os únicos cargos que podem ser ocupados, uma leitura racial mais difícil de mudar depois de adulto.

E, seja com crianças ou adultos, é importante o branco se posicionar. Enquanto pessoas brancas estiverem confortáveis para repetir piadas, situações e comportamentos racistas, vai continuar acontecendo. “Se a gente só reclama, é vitimista, mimimi. Se outras pessoas brancas começam a apontar, talvez até por ocuparem um lugar mais ouvido, as outras pessoas passem a prestar atenção também. É se aproveitar de uma representação que te torna superior para reverter uma situação em que você está vendo algum tipo de opressão", diz Luciana Alves. Que tal começar essa mudança hoje?

* Os nomes foram trocados pela pesquisadora para preservar as identidades de seus entrevistados

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