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Bernardo Machado

Sufoco em Manaus: é possível responsabilizar o presidente?

14.jan.2021 - Jair Bolsonaro (sem partido) com o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, em live semanal transmitida pelas redes sociais - Reprodução/Redes sociais
14.jan.2021 - Jair Bolsonaro (sem partido) com o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, em live semanal transmitida pelas redes sociais Imagem: Reprodução/Redes sociais

Colunista do UOL

17/01/2021 04h00

Diante do colapso do sistema de saúde em Manaus, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, e o Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, realizaram uma transmissão ao vivo no dia 14 de janeiro. Dentre a defesa pelo uso da cloroquina, a sugestão de que a felicidade previne o contágio e a listagem de números vagos para o início da vacinação, o general declarou: "A responsabilidade da ação continua com o senhor prefeito e com o governador do estado e a Secretaria de Eestado, mas nós estamos apoiando em todos os aspectos".

No dia seguinte, 15 de janeiro, o presidente publicou em uma de suas redes sociais a mensagem de que o Ministro da Saúde esteve pessoalmente em Manaus, e que "todos os meios foram disponibilizados para atender a população". As duas autoridades se apresentaram, ainda que de maneira irritada, como aquelas que irão redimir e até salvar o Amazonas e o município de Manaus. Nessa retórica, as atribuições legais do governo parecem atendidas adequadamente.

Entretanto, paira a dúvida sobre as ações desempenhadas por essas autoridades. Afinal, o sistema de saúde colapsou e ceifou vidas. A quem atribuir a responsabilidade? Ao invés de expor uma análise legal sobre o que ocorreu, me interessam as questões simbólicas e sociais envolvidas, afinal, nota-se como a própria noção de responsabilidade é usada de muitas maneiras.

Em primeiro lugar, no plano das autoridades federais, encontramos alguns deslocamentos sobre o que seria a responsabilidade. O presidente Jair Bolsonaro é hábil em desviar das incumbências que o cargo exige. Os procedimentos empregados são muitos. Primeiro, ele levanta dúvidas sobre a existência de um fato ou a causalidade de eventos. Será que o vírus é perverso, ou trata-se de uma gripezinha? Por que sugerem que a cloroquina é ineficiente? Afinal, segundo as observações de alguns médicos, ela ajuda. A vacina é segura?

O procedimento é simples e eficaz, ele coloca em primeiro plano a desconfiança e as dúvidas sociais sobre complexos assuntos biológicos. O arrolar de dúvida não é um problema em si, mas a estratégia cria um efeito favorável a Bolsonaro: não há como o presidente ser responsabilizado, afinal, ele avisou, ponderou e desconfiou. Por sinal, ele até prescreveu o uso de "tratamentos precoces" não comprovados cientificamente. Dessa forma, oferece à população algo simples e comum para administrar — e sanar as angústias e dilemas que a pandemia impõe.

Uma segunda estratégia consiste em atribuir a responsabilidade a terceiros, outorgando-se uma posição cômoda. Nessa retórica, a economia não andou por conta das decisões de governadores e prefeitos, a pandemia só cresceu pois foi potencializada pela mídia e por aí vai. A omissão estratégica também contribui para esse procedimento, isto é, ao optar por não agir em determinadas políticas públicas — como na condução das mazelas educacionais em 2020 — o governo outorga o problema para as próprias famílias. Quando aparece, o presidente reforça a narrativa de sua ajuda e preocupação. Dessa forma, a responsabilidade não o atinge.

No dia a dia social, as noções de responsabilidade são, ao que tudo indica, igualmente complexas. Em pesquisas recentes, o Datafolha estimulou as pessoas a avaliarem os atos do presidente Jair Bolsonaro na condução na pandemia. Em agosto, o instituto perguntava: "O presidente Jair Bolsonaro é culpado pelas 100 mil mortes de coronavírus no Brasil?". Nas respostas, 11% entendiam que ele era o principal culpado, 41% entendiam que ele seria um dos culpados, mas não o principal, e 47%, diziam acreditar que o presidente não tinha culpa nenhuma pelos óbitos.

Em dezembro, o índice se modificou: caiu o número de pessoas que consideravam Bolsonaro o principal culpado, somando 8%. As pessoas que entendiam ser ele um dos culpados — mas não o principal — reduziram para 38%, e a porcentagem de pessoas que consideram que Bolsonaro não tem nenhuma culpa pelos óbitos aumentou para 52%.

Chama a atenção como o instituto optou por adotar a palavra "culpa" e não "responsabilidade" em sua pergunta. O primeiro termo, muito próximo do referencial religioso cristão, alude aos atos de uma pessoa, e não às consequências impostas por um cargo público. Diante de uma pergunta como essa, as pessoas podem imaginar Jair Bolsonaro como pessoa e não como presidente (ainda que o Datafolha o defina por seu cargo). A questão pode induzir as pessoas a pensarem exclusivamente na ação de um indivíduo para causar a morte de alguém.

No convívio social, é culpado quem agiu deliberadamente para infligir algo a alguém, e pode parecer abstrato (ou distante) a relação entre os atos do presidente e as mortes cotidianas de brasileiros. A responsabilidade fica difusa.

O Datafolha também perguntou sobre o desempenho do presidente em relação à pandemia do novo coronavírus. Nesse caso, em agosto, 43% das pessoas consideraram ruim ou péssimo o desempenho, 30% avaliaram como ótimo ou bom e 25% como regular. Já em dezembro, os índices variaram dentro da margem de erro: 42% das pessoas consideraram ruim ou péssimo. O índice de ótimo ou bom se manteve em 30% e a qualificação regular aumentou para 27%.

Quando há um deslocamento da categoria "culpa" para "desempenho" ou eficiência, a avaliação do presidente parece piorar ligeiramente. Isto é, em dezembro, 52% das pessoas não considerarem o presidente "culpado" pelas mortes. Apesar disso, um número consideravelmente menor, 30%, entendeu que ele está conduzindo o país de maneira adequada no que toca a pandemia. Isentar da culpa pelas mortes não corresponde, portanto, a aprovar suas medidas — embora uma pesquisa mais detalhada precise ser realizada.

O instituto também perguntou sobre a responsabilidade do país, como um todo: "O Brasil fez ou não o que era necessário para evitar o número de mortes no país?". Nesse caso, em dezembro, 53% consideravam que o país não fez o necessário, 22% avaliavam que nada que o país fizesse evitaria o número de mortes e 22% considera que o país fez o que era necessário para evitar o número de mortes.

Aglutinados os últimos dois grupos, 44% das pessoas consideram que a realidade, tal como está, não poderia ser alterada. Isto é, quase metade da população não considera existir outro cenário sanitário possível. Nossa imaginação social está convicta de que enfrentamos quase um "destino" — seja porque o melhor foi feito e, portanto, não poderia ser aprimorado, seja porque nada poderia evitar o que ocorreu. Diante do destino, há responsabilidade?

Curioso atinar para o fato de que mais da metade da população considera que o país, como um todo, foi ineficiente no combate às mortes. Como a responsabilidade do presidente não atinge essa marca, pode-se imaginar que as pessoas estão considerando múltiplos fatores para o fenômeno pandêmico — governadores, prefeitos, as ações cidadãs. Nesse sentido, o presidente e o governo federal ficam isentos ou, ao menos, recebem apenas parcela da atribuição do cargo, e podem navegar de forma mais tranquila pela aprovação nacional.

O único tema em que Jair Bolsonaro não consegue escapar de sua responsabilidade parece se relacionar à própria família. Quando toca nesse plano, as dúvidas ficam menos presentes, o reconhecimento entre causa e consequência se tornam mais evidentes, e a terceirização não se sustenta. Talvez porque a família antecede o governo e os "ataques" da mídia. Como a noção de patriarca — responsável por seus filhos e atos — faz parte do cerne da gramática do presidente, as acusações e evidências de comprometimento dos Bolsonaro com a legalidade impregnam na imagem do chefe do executivo.

Por fim, a responsabilidade merece reflexão. De um lado, vale prestar atenção e respeitar o fato de que as pessoas entendem que um problema complexo como uma pandemia não pode ser arcado exclusivamente por uma autoridade. De outro, não é possível desprezar as ações e omissões do presidente da República no combate a um vírus que dizimou mais de 200 mil vidas no país em menos de um ano. De toda maneira, o pacto sobre as nossas responsabilidades no Brasil merece ser novamente firmado.