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Bernardo Machado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O caso Monark: a liberdade incondicional e o relativismo por conveniência

Manifestante exibe cartaz contra o nazismo em imagem de arquivo da Polônia - Getty Images
Manifestante exibe cartaz contra o nazismo em imagem de arquivo da Polônia Imagem: Getty Images

Colunista do TAB

13/02/2022 04h01

Quais argumentos servem de sustentação (ainda que precária) para defender a existência de um partido nazista, após o Holocausto, ou de práticas racistas, após o sistema escravocrata?

Se o conteúdo é condenável jurídica e eticamente, ele também se ampara num conjunto de princípios retóricos: a opinião, a liberdade e o relativismo. Em última instância, as pessoas alegam: "mas é só meu ponto de vista".

O assunto é urgente, considerando que uma pesquisa recente revelou que a população jovem se forma politicamente via redes sociais, de maneira difusa, fragmentada, com muita informação e pouca sistematização.

Geração 'conteúdo'

Bruno Aiub (Monark), Kim Kataguiri e outros fazem parte de uma juventude que associa conteúdo nas redes à opinião pessoal. Trata-se de uma geração que vivenciou uma mudança nas próprias tramas da internet: as plataformas passaram a incentivar e depender de usuários para prosperar.

Há uma geração inteira que compreende que criar conteúdo faz parte de seu cotidiano, de sua maneira de se socializar e constituir identidade, independentemente da qualidade, do alcance ou da responsabilidade do que é tornado público. Aiub acha que dizer ser um "jovem idiota" num bar ou estar bêbado durante um evento são o suficiente para escusar-se — afinal, o que declarou é um procedimento normalizado em sua trajetória.

'É a minha opinião'

A frase, repetidamente utilizada em muitas discussões (políticas, econômicas, morais), parece autorizar as pessoas a defenderem toda e qualquer posição, independentemente dos efeitos ou das origens. Isso naturaliza, individualiza e des-historiciza a tal da "opinião".

Só que toda opinião é uma construção, quer se reconheça, quer se negue. É fruto de um contexto histórico, um conjunto de experiências pessoais, um processo de formação e fruto de desconhecimentos diversos. Não se trata de desqualificar a opinião das pessoas, mas de reconhecer que muitas vezes formamos ideias sem identificar exatamente o que nos orientou a sedimentar tal postura. Isto é, forma-se uma opinião com base em supostos imprecisos, em experiências negativas, em desconhecimento profundo ou até mesmo numa indiferença cruel.

Em outubro de 2021, Monark publicou uma mensagem no Twitter questionando: "ter uma opinião racista é crime?". Nesse caso, Aiub age como se sua opinião fosse fruto da individualidade e planaria por fora da experiência social brasileira — que, por sinal, é lapidada por práticas racistas em planos profundos.

Liberdade incondicional

Por sinal, a metralhadora opinativa (potencializada pelas redes) ampara-se numa leitura singular do que seria a liberdade. Este princípio, forjado para romper com grilhões do autoritarismo, tem sido lido, entendido e utilizado para defender ideias de maneira irrestrita.

Há um desejo de que nada impeça os desejos, as opiniões e as ações. Levada a seu extremo, essa postura reinstala um estado de batalha: quem tem mais meios pode agir sobre o outro com base em sua "liberdade" — uma demissão, uma ofensa, uma agressão ou uma morte podem ser justificadas por defender essa "incondicionaldiade" sem freios dos desejos do indivíduo. Em última instância, uma pessoa pode alegar ter liberdade de ferir outra por não concordar com sua cultura, raça, orientação sexual ou identidade de gênero.

Relativismo por conveniência

Em paralelo aos usos do princípio da liberdade — que é fundamental, mas condicionado as direitos de vida e liberdade de outras pessoas —, o argumento faz um uso singular da postura relativista.

O relativismo consiste numa perspectiva adotada por parte das ciências humanas (em particular a antropologia) para qualificar a existência e a complexidade de culturas diferentes das hegemônicas. Sua relevância para combater posturas etnocêntricas é considerável.

Contudo, presenciamos uma espécie de "relativismo por conveniência", isto é, o comportamento que revisa o que lhe convém para prosseguir e sustentar sua opinião.

Debater criticamente eventos não equivale a discutir se um objeto lembra um 6 ou um 9 — conforme o ponto de vista. O ponto de vista corresponde a um procedimento que assume 1) a equivalência entre os sujeitos que olham, 2) que sujeitos possuem uma perspectiva parcial do objeto existente.

Já a postura crítica relativista não abandona a objetividade e guarda um compromisso ético. Para o procedimento é preciso 1) analisar historicamente as relações de poder e assimetria, estabelecidas entre grupos, 2) avaliar os efeitos práticos das relações, 3) ter como objetivo não o auto-benefício, mas uma compreensão mais profunda da existência do outro.

Sugerir que não houve escravidão, colônia ou ditadura é incorreto historicamente e perverso eticamente. É perigoso revisar a história para justificar mortes, atentados à vida e práticas de violência. Trata-se de um relativismo individualista que atende ao propósito de preservar uma opinião pessoal (mas historicamente forjada) intacta e que costuma atuar para desqualificar ou violentar grupos subalternizados.

A questão da responsabilidade

Temos um problema pela frente. Esses procedimentos retóricos estão emaranhados em nós.

A sociedade brasileira reagiu de forma contundente e traçou uma linha: defender o nazismo não será tolerado. Feito isso, nos bancos das escolas, nos cantos ocultos das redes sociais, nos espaços públicos e em casa, precisaremos discutir com seriedade como esses procedimentos, capazes de relativizar as ações violentas sob o nome da "liberdade" e da "opinião", têm um potencial destrutivo e, em última instância, incontornável.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL