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Bernardo Machado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Vale nacionalizar a guerra entre a Rússia e a Ucrânia?

Colunista do UOL

12/03/2022 04h00

Na Rússia não existe estrogonofe de frango ou camarão, o ketchup não entra na panela e o acompanhamento com arroz e batata palha tampouco faz sentido. Se somos hábeis em nacionalizar e reinterpretar sabores, a receita pode entornar se aplicada à política externa. A nacionalização de problemas estrangeiros nas dicotomias nacionais pouco rende já que os assuntos são, muitas vezes, alheios à nossa compreensão mais rápida e, por vezes, esquemática.

Depois de meses encarando os próprios problemas — pandemia, inflação, escândalos de corrupção e descalabros administrativos —, o noticiário brasileiro foi tomado por dilemas de outro continente. Nossas questões foram eclipsadas e permaneceram momentaneamente inauditas pelo bombardeio incessante em território ucraniano.

A distância, que não é só física, mas também histórica, simbólica e geopolítica, parece ter resultado em reações particulares: uma certa tranquilidade (precária) em saber que os quilômetros nos poupariam (ao menos num primeiro momento) de mortes nacionais; e uma ansiedade a respeito dos eventos que estavam por vir.

Simplificar

De outro lado, passou a reinar uma dúvida profunda sobre os motivos e os interesses que fomentavam o conflito. Duas posturas emergiram. De um lado, a proliferação de especialistas em Rússia, Ucrânia, leste Europeu e OTAN. Certamente há dezenas de pessoas qualificadas para tratar do assunto, mas não foi sem surpresa perceber que parcela da população já guardava certezas a respeito do tema. Prontamente, pessoas que não são estudiosas do tema afirmavam conhecer os cálculos e interesses de Vladimir Putin, Joseph Biden ou Xi Jinping.

Em segundo lugar, um conjunto expressivo parecia titubear entre os muitos problemas. Quem, afinal, causou a guerra? Quem são os culpados? Onde está a origem? As perguntas, embora pertinentes, costumam acomodar o assunto em respostas cujo resultado é, em si, insatisfatório. Difícil cravar um fator (ou poucos) que descreva o fenômeno satisfatoriamente.

O Brasil não faz parte do conjunto de países que tomam decisões definitivas sobre esta guerra (e muitas outras). Nesse cenário, fora do alcance de nossas soluções e ações imediatas, há quem queira fazer boicote sugerindo o fim do estrogonofe. Parece absurdo, mas acontece. Faz parte da comicidade sintética de como lidamos com essa posição periférica dentro do cenário internacional. Se não podemos realizar grandes ações políticas, econômicas ou humanitárias, fomentamos raivas inconsistentes que pouco contribuem para a solução do atual problema e que podem gerar, na realidade, outros efeitos — como a xenofobia. Certamente é fundamental condenar a invasão da Rússia na Ucrânia e as consequências nefastas para a população e as relações entre países. Mas interessa odiar os russos, como povo, indiscriminadamente?

Nacionalização do problema

Parecemos enfrentar uma ansiedade em nacionalizar o problema. Tal como se nacionalizou o estrogonofe, paira um procedimento no qual os conflitos múltiplos e nuançados são transformados em posições partidárias alocadas em dicotomias características do universo nacional. As aproximações são geralmente apresentadas de forma exageradamente direta: direita-ucraniana-bolsonarista, esquerda-petista-russa-comunista, nazismo-bolsonarista-ucraniano; Putin-pró-bolsonarismo, guerra e estrogonofe... Acredita-se que se pode resolver uma invasão nos nossos termos.

Nacionalizar o problema é traduzir o intraduzível para nossos esquemas tipicamente brasileiros e necessariamente problemáticos (inclusive em nossa própria casa). Como se em nossos modelos coubesse o mundo e suas nuances. Nessas primeiras semanas, fico com a impressão de que a maneira como interpretamos o conflito faz mais sentido para nossas próprias inquietações do que para a invasão russa na Ucrânia.

Des-nacionalizar

A invasão aflige, gera impactos concretos para o Brasil (sobretudo humanitários e econômicos), mas na prática soa longínqua e de difícil apreensão. É duro decifrar o que se fala, afinal, numa língua pouco conhecida; os significados se perdem.

Melhor admitir a ignorância e reconhecer o erro em desconhecer tanto. Quiçá se torne uma oportunidade para passar os próximos meses (ou anos) ampliando nosso repertório sobre esses universos do leste europeu e asiático. O assunto deve continuar recebendo uma leitura histórica, cultural, geopolítica em paralelo com uma análise detalhada das narrativas que são construídas por todos os lados — e que movimentam as palavras como armas contra o adversário.

Nesse cenário de tantos matizes e incertezas, não é porque o estrogonofe combina com arroz que ele é sinônimo de feijão.