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Daniela Pinheiro

REPORTAGEM

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Pilar fala da solidão sem Saramago: 'Quem vai namorar a viúva de Deus?'

Pilar del Río na Fundação Saramago, que criou e preside - Divulgação
Pilar del Río na Fundação Saramago, que criou e preside Imagem: Divulgação

Colunista do TAB

16/04/2022 04h01

Esta é parte da versão online da edição de sexta-feira (15) da newsletter de Daniela Pinheiro. Para assinar o boletim e ter acesso ao conteúdo completo, clique aqui.

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É com um pé em Portugal e outro no Brasil, de olho nos patrícios e nos locais, que irei tocar essa coluna. Ela não terá só reportagens ou crônicas. Será mais que um relato frio e menos do que um tratado de geopolítica. Vai tratar dos temas sérios, dos irrelevantes, dos espantosos, dos frívolos e dos essenciais. Não nessa ordem, não na mesma extensão, mas com igual galhardia, graça e gana de aprender. Boa leitura.

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O livro inédito da viúva de Saramago

A jornalista espanhola Pilar del Río viveu por mais de 20 anos com o escritor português José Saramago, prêmio Nobel de Literatura, até a morte dele em 2010. Quase todo o tempo n'A Casa — a ampla residência do casal hoje aberta a visitas —, na ilha de Lanzarote, a mais oriental das sete Canárias.

Refugiaram-se ali quando o governo português proibiu um livro dele de representar o país em um prêmio internacional. No autoexílio, Saramago anotou em diários seu cotidiano, pensamentos e lembranças. "Não vou fazer a minha versão das histórias dele", disse Pilar del Rio, em um começo de noite tranquilo, antes de a Rússia e a Ucrânia terem dominado nossos corações e mentes. "É um livro para as pessoas da aldeia que conheceram José", afirmou. Referia-se a "A Intuição da Ilha - Os Dias de José Saramago em Lanzarote", escrito por ela durante a pandemia, e que reúne dezenas de crônicas em quase 200 páginas. Será publicado em breve pela pequenina editora Itneraria, com sede em Lanzarote.

Estávamos em um restaurante ao lado da Fundação Saramago, da qual é presidente, no centro de Lisboa. Ela não havia comido nada o dia todo. Talvez seja assim que consiga manter a boa forma. Aos 71 anos, aparenta muito menos. Veste-se com uma sobriedade moderna, tem um porte garboso e harmônico, com um quê de altivo. Gesticula como se tivesse feito balé a vida inteira. Com interlocutores cuja língua materna é português, prefere falar em espanhol.

Fora uma semana tumultuada. Comparecera ao funeral de uma amiga, a escritora Leonor Xavier, participara de um sem-fim de reuniões para preparar eventos em torno do centenário de Saramago, tomara o reforço da vacina contra a covid-19. Estava fatigada, mas, em vez do bar, cogitara ir ao cinema. Acabou desistindo. Tomou vinho branco e o maître, que a tratava pelo nome, trouxe tapas espanholas.

"Esse livro é um ato de amor", escreveu logo nas primeiras linhas. Percebe-se. Tem digressões e delicadezas sobre o marido, e a vida na ilha, tranquila sem ser aborrecida. É pessoal, mas não é íntima. É sólida e genuína — como a vida dos dois, ao que parece, devia ser. A existência do livro ainda estava sob segredo. Na altura em que conversamos, apenas seus editores, um diretor da fundação e alguns de seus parentes sabiam do projeto. Ela diz não pretender "interferir" na relação do escritor com seus leitores, mas "contar em detalhes" alguns momentos.

Pilar del Río, na casa em que viveu com José Saramago, em Lanzarote - Pilar del Río/Arquivo Pessoal - Pilar del Río/Arquivo Pessoal
Pilar del Río, na casa em que viveu com José Saramago, em Lanzarote
Imagem: Pilar del Río/Arquivo Pessoal

Há passagens sobre lembranças que o marido tinha da mãe, reflexões que o levaram a escrever alguns de seus melhores livros, o dia que ele recebeu o Nobel, menus servidos aos convidados d'A Casa, detalhes da visita de amigos, como o fotógrafo Sebastião Salgado e sua mulher, Lélia, também do compositor Chico Buarque, do cineasta Bernardo Bertolucci, o desastre do jantar oferecido ao ex-presidente Mário Soares, casos envolvendo os três cachorros do casal.

Também uma longa reprodução da entrevista do escritor à Playboy brasileira, em 1995. Ao que parece, a preferida dele. E trivialidades, como sobre quando ele passou a gostar de vinho branco ou o ritual de ir à padaria. Sobre a primeira mulher de Saramago, Ilda Reis, há cinco parágrafos. A única filha dele, Violante, teve duas menções.

A vida de Pilar del Río gira em torno da fundação e dos compromissos que ela lhe impõe. As viagens são quase sempre a trabalho, os jantares são, a rigor, institucionais. Dedica muito tempo a causas, não só às ligadas ao legado do ex-marido. Ao feminismo, à democracia, aos direitos humanos, à ciência.

Participa de debates, tertúlias, conferências sobre o assunto no mundo inteiro. Em março, só pelos 100 anos de Saramago, deu as caras em eventos na Alemanha, Itália, França, Estados Unidos, Colômbia, Equador, Argentina, Uruguai, Grécia, México. De bailados a apresentação de livros. De óperas a colóquios. A Companhia das Letras, que publica o escritor no Brasil, deu início a uma longa programação, que deve se estender até o final de abril. Ela tem muitos amigos brasileiros, acompanha com lupa os desmandos da política nacional. Mesmo assim, acha que o Brasil tem jeito.

Fala na primeira pessoa do plural quando se trata de mobilizar o eleitorado para eleger Lula. Acha que é dele que o país precisa para retomar a confiança, acalmar os ânimos e restabelecer a sanidade. A pedido de um figurão petista, visitou-o quando estava preso, em companhia de Dilma Rousseff — a quem admira.

Em algum momento da noite, usou a palavra "a vendedora" para classificar seu papel junto ao legado do escritor. Depois, corrigiu para "a continuadora", como o próprio Saramago a definira quando ficou doente. "Ele me dizia 'Continue-me'", contou.

Pilar em Lanzarote com seu filho Juan José, o Juanjo (de seu primeiro casamento), e Alba Cantón López, a editora do livro a ser lançado em breve - Pilar del Río/Arquivo Pessoal - Pilar del Río/Arquivo Pessoal
Pilar em Lanzarote com seu filho Juan José, o Juanjo (de seu primeiro casamento), e Alba Cantón López, a editora do livro a ser lançado em breve
Imagem: Pilar del Río/Arquivo Pessoal

Quis saber se ela se sentia sozinha. Estava viúva há quase doze anos. "Muito", disse. Contou que o escritor e amigo Valter Hugo Mãe havia vislumbrado que sua vida amorosa não seria fácil depois da partida de Saramago. Escrevera até um texto ("A Mulher Sagrada"), no qual sustentava que o papel que estava sendo reservado a ela poderia ser injusto — o da intocável; que ela tinha o direito de seguir adiante; que viúvas de grandes homens carregam sempre consigo a figura invisível do marido morto ao lado; que esperava ansioso por notícias de que ela tivesse outro homem em sua vida; que ela tinha esse direito. "Sim, eu tenho esse direito", disse num tom quase resignado. "Eu queria ter um ombro para me apoiar." Então, cruzou os braços, enlaçando o próprio tronco, e tombou a cabeça para esquerda, como se estivesse se aconchegando no ar. "Um instante de ombro já seria suficiente", disse, emendando uma risada.

Sugeri que entrasse no Tinder, ao que ela reagiu imediatamente com um tom de voz de Penélope Cruz em algum filme do Almodóvar: "Ay por Díos, nunca me atrevi!". E contou casos de conhecidos que haviam tido boas e más experiências nos aplicativos de namoro. Durante todos esses anos, ninguém nunca flertou com ela, disse. "Nem mulheres?", eu quis saber. "Ah, isso sim, mas eu nem me dei conta", disse em gargalhada. A conversa ia e vinha dos temas políticos à moda, viagens, restaurantes, filhos. Voltou-se a falar de uma vida amorosa. "Quem vai namorar a viúva de Deus?", indagou. Mais uma rodada de vinho.

Durante outra hora, falou-se bem e mal de gente boa e má, contaram-se histórias do arco da velha sobre políticos e escritores, houve uma sessão de partilha de GIFs e memes, riu-se de cenas de filmes e séries e lamentou-se a doença de conhecidos em comum e da condição feminina em alguns círculos e países.

Ela quis pagar a conta. Contou que iria direto para casa, talvez assistisse a algo na TV, folheasse um livro, tomasse um chá. Não tinha sinal de sono, não lhe apetecia fazer nada diferente. Despedimo-nos com toques de cotovelos e um abraço de rostos virados para lados contrários: pandémie oblige. Pilar del Río subiu a ladeira de Alfama sem olhar para trás.

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LEIA MAIS NA NEWSLETTER: Daniela Pinheiro fala sobre os bastidores de um congresso de jornalismo em Perúgia, na Itália; sobre a capital do cabrito, em Portugal, que convoca novos moradores, e mais.

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