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Daniela Pinheiro

REPORTAGEM

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Cineasta premiada diz ter se sentido 'um E.T' ao ver filme de Lázaro Ramos

Clara Anastácia, a cineasta que escreveu e protagonizou "Escasso", curta premiado no festival Indie Lisboa - Gabriela Gaia Meirelles/Divulgação
Clara Anastácia, a cineasta que escreveu e protagonizou 'Escasso', curta premiado no festival Indie Lisboa
Imagem: Gabriela Gaia Meirelles/Divulgação

Colunista do TAB

14/05/2022 04h01

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É com um pé em Portugal e outro no Brasil, de olho nos patrícios e nos locais, que irei tocar essa coluna. Ela não terá só reportagens ou crônicas. Será mais que um relato frio e menos do que um tratado de geopolítica. Vai tratar dos temas sérios, dos irrelevantes, dos espantosos, dos frívolos e dos essenciais. Não nessa ordem, não na mesma extensão, mas com igual galhardia, graça e gana de aprender. Boa leitura.

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'Chegar ao topo é chegar ao topo que a branquitude organizou?'

"Escasso" (Brasil, 2021) conta a história de Rose, identificada como "profissional de pets", que, durante um passeio pelo bairro da Pavuna, no Rio, avista uma casa desocupada e resolve se instalar no imóvel sem que ninguém saiba exatamente o porquê. Durante 16 minutos, a exuberante, escrachada e frágil Rose — mistura de uma versão feminina de Romário com a dona Hermínia do Paulo Gustavo — dialoga com a diretora do filme encarando a câmera. Discorre sobre as razões da invasão, compartilha o que descobriu sobre a moradora que foi embora sem deixar rastros, elucubra sobre ela mesma, sobre a vida na perspectiva do outro, verbaliza lições de otimismo ("Não dá para contar com dois ovo no cu da galinha, mas com um dá"), celebra a vida, faz pouco da morte, imprime uma dose de estranhamento, resiliência e escracho contra a opressão inevitável. Tudo isso metida num abrigo vermelho Adidas (tomado da ex-moradora), colar de prata pesado à la Snoop Dogg, brinco indígena e sotaque da comunidade.

No domingo passado (8), "Escasso" ganhou o Prêmio Internacional de Melhor Curta de Ficção no Festival Indie Lisboa. Na justificativa dos jurados, a obra é descrita como "cativante e comovente", "hilariante e excêntrica", "que revela imensa fragilidade sem nunca perder o senso de humor", "uma ficção genuína ao ponto de se tornar um documentário".

O filme foi dirigido por Gabriela Gaia Meirelles, 27, e escrito e estrelado por Clara Anastácia, de 30. O cenário foi a casa da roteirista, filmou-se com apenas uma câmera, um microfone de lapela e um daqueles de novela de rádio. A edição foi de um amigo. A montagem, de outro. As duas gastaram R$ 5.000 do próprio bolso para a produção e outros R$ 2.000 para inscrevê-lo em festivais de cinema mundo afora.

"Foi nosso primeiro filme, o primeiro prêmio, a minha primeira viagem internacional", disse-me Anastácia no dia seguinte à premiação, num café próximo à Assembleia da República. Estava hospedada na casa de um amigo, próximo ao Cais do Sodré. Gaia, a amiga e diretora, já estava em Barcelona, para onde ela embarcaria no dia seguinte. "Vamos para lá só para andar em brechó", disse. E contou que ambas trouxeram "dez looks completos" na mala. Para não ter que pagar excesso na alfândega, viajou vestida com dois casacos. "Trouxemos muita roupa, muita roupa, a gente gosta de moda e não dava para vir para cá sem estar bem, né?"

Ela usava um vestido branco esvoaçante, colares de contas, brincos grandes e chinelos. Tinha os cabelos encaracolados amarrados num rabo de cavalo rebelde, que a deixava com um ar de quem havia acabado de sair da cama. Não havia comido nada. Era quase hora do almoço, e ela pediu apenas um café. Os preços em Lisboa lhe pareciam uma pechincha. Disse já ter passado pelo "surto do supermercado", que é o impulso de comprar tudo quando se começa a converter valores de euros em reais. "Um leite de amêndoa aqui custa R$ 5. No Zona Sul é R$ 25!", disse em tom de espanto, referindo-se a uma das maiores redes de supermercados do Rio. "No Rio, três drinks são R$ 100. Aqui, eu não gastei metade do que eu trouxe ainda." Não tinha conseguido conhecer muita coisa, mas estava encantada com a luz da cidade.

"Escasso" foi escrito em duas semanas durante a pandemia. Como todo mundo, Anastácia estava trancada em casa. Havia acabado de se separar, descobrira que teria que deixar o imóvel em breve porque ele estava tomado de cupins e seria demolido. Na imprensa, não se falava de outra coisa: o vírus, a morte, a escassez de alimentos e produtos de higiene nos supermercados, o que aquela praga significava para o mundo e individualmente. Ficou imaginando como seria uma pessoa invadir a casa que ela abandonaria dali a alguns meses. O que uma pessoa descobriria sobre ela baseada em suas roupas, seus móveis, seus objetos pessoais? O que levaria uma pessoa a invadir o lar de um estranho, se não fosse um morador de rua, e se recusar a ir embora? Contou que, entre uma série e outra da Netflix — que assistia compulsivamente —, fez um "baldão de pipoca" e começou a rabiscar o que seria um arremedo de roteiro. Deu o tom do jeito, da fala e do clima da personagem a partir de vídeos virais do YouTube. Recebera de amigos um do MC Negão da BL (ele tem 2,1 milhões de seguidores no canal), no qual aparece ao lado da mãe comemorando a marca de 100 mil visitantes. O vídeo de meia hora é uma aula sobre a realidade de boa parte das famílias brasileiras, cuja mãe cria sozinha os filhos, vira-se em dez para dar conta do recado.

Clara Anastácia em cena do curta 'Escasso' - Reprodução - Reprodução
Clara Anastácia em cena do curta 'Escasso'
Imagem: Reprodução

"A mãe dele nem sabe que tem uma opinião política; ela tem uma consciência de como ela vive, de quem ela é, de valores, de regras. É um retrato do Brasil profundo, do Brasil que existe mesmo." Também assistiu mais de 40 vezes outra postagem hit do confinamento: a música-chiclete do MC Rayban, cujo refrão — depois que o ouvimos uma vez — nos assombra por semanas, durante noites e dias, como um pesadelo recorrente: "Bactéria filha da puta / micróbio do caralho / Empatou a minha foda / e atrasou os trabalho". Dali, tirou a inspiração também para a estética do filme — algo que ela definiu como "pop da periferia". Houve quem dissesse ser a atualização da estética da fome de Glauber Rocha com roupagem de baile funk. Do documentário "Edifício Master", de Eduardo Coutinho (1933-2014), ela disse ter tirado o ritmo das filmagens. "Eu prestei muita atenção em como ele enquadrava as pessoas, deixava que elas falassem sem parar, não cortava mesmo se houvesse um silêncio, deixava imagens tremidas, se fosse preciso, a naturalidade e espontaneidade de tudo aquilo me pegou", comentou no café.

Anastácia é filha única e foi criada pelo pai militar, um dos sócios do icônico clube Pavunense — que já teve direito à menção em música de Jorge Ben Jor. A mãe, pedagoga, morreu quando ela tinha 8 anos. Era amiga de figuras da esquerda carioca — Benedita da Silva, Chico Alencar. Faz questão de também se apresentar como filha de Oxum (o primeiro agradecimento nos créditos do filme é para Exu). Estudou em colégios particulares na Pavuna antes de levar os estudos no público — no Centro de Ensino da Lagoa, na Zona Sul. Usava o dinheiro que o pai lhe dava para pagar as aulas de inglês e cursos de teatro, sobre os quais ele não tinha ideia. Cursou Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro e Estética e Teoria Teatral na UniRio.

Conheceu a diretora Gabriela Gaia, que é da Tijuca e cursou Cinema na PUC-Rio, pela internet. A conexão entre ambas foi imediata. Quando chamou Gaia para dirigir o filme, escutou de amigos "negros, letrados", segundo disse, questionamentos sobre as razões de estar chamando "uma patricinha branca" para participar do projeto. Segundo ela, "Gaia é o lado prático, organizado, sólido e eficiente" da parceria. Ambas têm empregos e projetos na área do audiovisual, que garantem a elas um bom ordenado. Jamais experimentaram uma sensação muito comum nos cineastas brasileiros: a saudade da Lei Rouanet. "É o contrário. Na nossa cabeça, a gente nem sabe se consegue fazer filme com dinheiro", disse.

Gabriela Gaia Meirelles, diretora do curta 'Escasso' - Divulgação - Divulgação
Gabriela Gaia Meirelles, diretora do curta 'Escasso'
Imagem: Divulgação

Em "Escasso", ela falou, preocupou-se em tratar do racismo sem mimimi. "Fomos criados com Beyoncé, com Whitney Houston, referências sobre o Spike Lee, mas tudo isso não tem nada a ver com a realidade do negro no Brasil", falou. Para ela, o maior erro sobre o tema é "generalizar o que é o racismo e o negro". Causava-lhe espécie a repercussão do longa "Medida Provisória", dirigido por Lázaro Ramos e estrelado por sua mulher, a atriz Taís Araújo. Recém-lançado em circuito nacional com alarde, a história se passa num futuro próximo, quando um governo autoritário ordena que, como compensação pelos anos de escravatura, os "melanino-acentuados" sejam deportados para algum país africano. Na Folha de S.Paulo, o crítico Inácio Araújo escreveu que o filme é cheio de personagens supérfluos e que o diretor optou "por uma estética acadêmica, certinha, que deixa a impressão de que estamos vendo a todo o tempo uma novela de TV quando, para um argumento que busca contrariar os cânones do conservadorismo, mais valeria optar por um filme mais abusado, mais transgressivo".

Ela contou ter ido à estreia e ter se sentido "um E.T." ao final da sessão. Achou tudo fora de lugar: os negros transportados para uma realidade de brancos ricos, o ator estrangeiro fazendo papel de brasileiro, a menção a se Camila Pitanga era branca ou negra — como se só houvesse essa dicotomia na sociedade —, as referências do que é ser bem-sucedido na vida. "Esse conceito de que temos que ocupar o lugar dos opressores é absurdo. Chegar ao topo é chegar ao topo que a branquitude organizou? É isso que queremos? O que faz sentido para nós?", indagou. "Nunca, jamais, a Taís Araújo poderia ter estrelado uma novela tipo Manoel Carlos, no Leblon perfeito. Não tem cabimento."

A garçonete, que só falava inglês, se aproximou para saber se a mesa queria algo a mais. Ninguém quis. "Esse povo todo, esses atores e o diretor, nasceu e cresceu no subúrbio. E não tem referência nenhuma a isso. É como se finalmente tivessem chegado lá, onde se performa aquilo que não se é. Que topo é esse?", disse. "A gente quer morar numa cobertura em Ipanema ou transformar a Pavuna num lugar foda?" Concordou com o exemplo ouvido por mim recentemente de um casal gay que queria se casar na igreja, com buquê de flores, de branco — tradição de casamentos héteros. "Por que não inventar um lugar em vez de querer viver o que já foi inventado pelos brancos ou pelos héteros?".

Para ela, toda a discussão sobre racismo no Brasil está datada. "O racismo cria miragens na gente. Pode dirigir filme, morar em cobertura, usar roupa cara, mas você é sempre chamado para falar de um assunto só: o fato de você ser negro." Comentou-se a polêmica recente envolvendo a artista plástica portuguesa Grada Kilomba, que é negra, e frustrou as expectativas de não representar Portugal na Bienal de Veneza. Um dos três jurados lhe deu uma nota muito baixa em comparação à dada pelas duas outras colegas -o que a desclassificou. Ele foi considerado misógino e racista. "Hoje as pessoas tendem a dar mais notas positivas do que tirar pontos com medo de serem consideradas racistas. A consequência disso é apenas reforçar clichês e perpetuar distâncias. No caso da Grada, ela foi preterida mesmo."

Quando soube terem sido selecionadas para o Indie Lisboa, ela e Gaia beberam e choraram juntas numa chamada pelo Zoom. Foi apenas durante o festival que conseguiram ver na telona o filme que fizeram. Anastácia acredita que o prêmio vai lhes impulsionar imenso a carreira. Ela já escreve outros roteiros e vai produzir mais um filme dirigido pela amiga. "Escasso" é uma trilogia. O segundo curta -que já está em produção- vai mostrar o passado de Rose como empregada doméstica na casa de um político da Tijuca. Um dia, os patrões pedem que ela prepare um ossobuco. E o que vem daí é assustador. O terceiro capítulo é um longa, um musical, no qual ela se torna mera coadjuvante. Na quinta-feira (13), de Barcelona, ela me disse que já tinha ido a muitos brechós.

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