Topo

Daniela Pinheiro

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

'Chef gritar é inadmissível', diz diretor de escola de gastronomia

Joxe Mari Aizega, diretor do Basque Culinary Center - Divulgação
Joxe Mari Aizega, diretor do Basque Culinary Center Imagem: Divulgação

Colunista do TAB

21/05/2022 04h01

Esta é parte da versão online da edição de sexta-feira (20) da newsletter de Daniela Pinheiro. Na newsletter, a colunista fala quase tudo sobre a longa temporada de Madonna em Portugal e mais. Você pode ler o conteúdo completo aqui (apenas para assinantes). Para se inscrever e receber o boletim semanalmente, clique aqui.

*

'Como tudo, bebo tudo, não deixo nada no prato'

Na quinta-feira (19), antes das 10h, os corredores do Basque Culinary Center, em San Sebastián, na Espanha, estavam lotados de brutamontes carecas, de barba, com ar de lenhadores do Oregon, reunidos para um evento chamado Haragi, um congresso internacional sobre carne, brasa e fogo. Eram os maiores experts do planeta no assunto e estavam ali para debater desde a diminuição de emissão de CO2 na criação de gado a fórmulas de rações especiais para vacas e, é claro, o ponto certo para degustar uma chuleta.

Muita gente vestida de cozinheiro, de jalecos e chapéus cor de neve, outros com avental preto, circulava de um lado para o outro. Na cafeteria, um grupo de jovens brancos na faixa dos 20 anos — que pagam 40 mil euros pelo bacharelado de quatro anos em gastronomia — definia o cardápio de um almoço-aula que seria apresentado a representantes do governo basco. Criada em 2009, a escola tem 750 alunos (apenas oito brasileiros) e é considerada uma das melhores instituições de ensino da culinária no mundo. No conselho da instituição, figuram nomes como os de Juan Marí Arzak, Pedro Subijana, Martín Berasategui e Andoni Luis Aduriz. É uma lista equivalente à escalação de um time de futebol com Garrincha, Pelé, Zico, Romário, Ronaldo.

San Sebastián é uma pequena região com menos de 3 milhões de habitantes, berço da cozinha basca, que revolucionou a restauração no mundo, e que tem a maior concentração de estrelas de todo o Guia Michelin. Em seu escritório com poucos móveis, Joxe Mari Aizega, de 51 anos — um magro de voz calma —, diretor do Basque Culinary Center, falou, entre outros assuntos, sobre como a inovação tecnológica na comida pode mudar a vida de pessoas comuns, experimentos supervisionados pela escola (como uma máquina que tira o álcool do vinho, o que permite que os comensais de uma mesa dividam uma garrafa e um deles tome a bebida desalcoolizada) e como vai ser o primeiro jantar organizado por eles no Metaverso, o ambiente virtual imersivo, coletivo e hiper-realista, onde as pessoas vão conviver usando avatares customizados em 3D. A entrevista foi editada e condensada para melhor compreensão.

Daniela Pinheiro: Pandemia, guerra, ditaduras em curso. Não é um capricho bobo ficar falando de gastronomia num momento desses?
Joxe Mari Aizega: As pessoas precisam desfrutar a vida. O mundo já tem muita coisa ruim e a gastronomia nos traz memórias boas, lembranças de situações, pessoas, nossos antepassados, coisas que nos fazem bem. Isso é mais profundo do que comer e beber. É encontrar um lugar seguro para uma experiência sensorial e social que traz conforto e prazer.

Mas isso tudo não é elitista?
A gastronomia mudou muito. Claro que ainda há o fine dining, a alta cozinha, mas ficou muito mais aberta, democrática. Antes, a gastronomia estava restrita ao quase inacessível. As redes sociais tiveram um papel importantíssimo para tirar o assunto e as pessoas de um pedestal. Entre na internet e vai ver conteúdos digitais sobre croquetes, sobre assados, sobre comida do dia a dia, comida simples e acessível. Também os cozinheiros de alto nível levaram muita qualidade para propostas mais populares. A oferta aumentou.

Mudou, mas não mudou. Ainda há muito pouca diversidade -- os homens continuam liderando as cozinhas estreladas, raros negros. Vi apenas um por aqui.
A diversidade vai acontecer -- queira-se ou não. É inevitável. Há muita coisa mudando, as carreiras [estão] se reestruturando. Mais de 40% dos nossos alunos são mulheres. Aqui no País Basco, é difícil chegar alunos negros. A mudança está acontecendo. Quem quer atrair talentos e jovens tem que mudar.

A escola tem um Laboratório Digital de Gastronomia, que também funciona como restaurante. O que se faz lá que pode beneficiar a vida de gente normal e não só das que frequentam restaurantes de luxo?
Ali, pesquisamos como podemos fazer uma transformação digital no setor. Trabalhamos com startups no aprimoramento de serviços e gestão de restaurantes, como melhorar o sistema de reservas, a conexão com o comensal, mas também no desenvolvimento de produtos e novas tendências. Os clientes podem comer muito bem pratos desenvolvidos por alunos da escola por um preço acessível. Estamos testando com eles, por exemplo, uma solução digital para entender melhor os menus a partir de "eye-tracking", que é um conceito de se obter informações de um usuário através da análise de seus movimentos oculares. A pessoa está lendo o cardápio num tablet e, a webcam identifica qual a palavra que ela lê primeiro. Também testamos recentemente como um cliente pode rastrear a carne que está comendo. Ou seja, o cliente está comendo um bife e pode saber como aquele gado foi criado, alimentado, como foi abatido, algo importante discutido hoje sobre o bem-estar do animal.

As pessoas vão chorar com a história do bichinho?
Esse é um tema polêmico. Por um lado, há quem queira saber a origem do que está comendo, se o animal não foi maltratado, se estava pastando feliz nos montes na Galícia. E por isso a ferramenta é importante. De outro, realmente é uma questão: queremos mesmo saber disso ou não? Temos um sentimento ambivalente, construído socialmente, em relação à carne. Para mim, uma coisa interessante que estamos fazendo é preparar o primeiro jantar no Metaverso.

Como vai ser isso?
Queremos criar o Lab e também esse jantar no Metaverso. Um jantar com convidados, um cardápio específico, a interação toda virtual. Há quem possa ouvir isso e dizer: "Ah, por favor?", mas é interessante saber o que vamos coletar de informações e experiências ali.

O que vamos comer daqui a vinte anos?
Hoje em dia, é um risco tentar adivinhar o futuro. Aposto em alguns caminhos: maior valorização do produto, do território, da qualidade dos ingredientes. O food tech com o bem-estar animal, veganismo, proteínas alternativas. E as startups trabalhando na criação da nova comida. Também maior conexão com o varejo, fazendo chegar às prateleiras dos supermercados comida de boa qualidade, barata e de fácil preparo. Um produto seguro, com gosto bom, que se coloque no micro-ondas por 20 segundos e seja uma ótima refeição.

Qual o maior erro ou má aposta feita pela gastronomia nos últimos anos?
A evolução da gastronomia foi muito positiva. Passamos de uma visão muito elitista para uma mais popular. No entanto, a questão dos trabalhadores nas cozinhas foi mal gerida. Esse problema poderia ter sido antecipado e sanado. As horas sem fim de trabalho, a ausência de acordos trabalhistas nas cozinhas, uma situação que fosse melhor para os empregados. Também a ideia de liderança que foi vendida. A de que o chef é um tirano, que grita, que trata mal a equipe. Isso não é mais possível aceitar.

Programas de TV como 'Masterchef' não corroboram essa ideia?
Aqui na Espanha não tem a situação de humilhar os participantes. É mais uma questão mesmo de desafio e competição. Não sei como é o programa nos outros países. Mas aqui até colaboramos com eles na formação de profissionais que saem de lá. Esse perfil de chef que humilha é insustentável e inadmissível.

Eu nunca pensei que o diretor de uma escola de gastronomia assistisse ao 'Masterchef'.
Eu prefiro entretenimento que tenha a ver com comida do que outras coisas. É um divertimento.

A gastronomia deveria ser politizada?
Sempre prefiro que não seja. Gastronomia é felicidade. E a política, ainda que faça parte da nossa vida e seja muito importante, tem suas regras próprias. Quando um autocrata decide coisas em seu país, aquilo reverbera em toda a indústria mundo afora. O transporte dos alimentos, a produção, a cadeia toda é afetada. Nisso eles não pensam também. Prefiro que vejamos a política da gastronomia como algo que nos conecta uns aos outros, que nos une, que nos envolve. É uma visão mais positiva.

Imagino que sua vida seja um sem-fim de almoços, jantares, coquetéis, degustações. Que inveja. Como mantém a forma?
É verdade e tenho muita sorte de ter essa vida. Como tudo, bebo tudo, não deixo nada no prato nem no copo mesmo que tenha várias refeições num mesmo dia. Adoro comer. É exercício físico. Muito exercício físico todas as manhãs.

Qual foi o melhor jantar da sua vida?
Não consigo me lembrar de um especificamente.

Uma vez fui a um restaurante muito caro que servia uns 18 pratos, acompanhados de uns 18 vinhos diferentes, e eu não me lembro de nada a partir do quinto.
Na verdade, é uma experiência com muita informação. Isso é um fato e não é um demérito. Em geral, o que nos fica na memória é algo que nos emocionou. Essa memória só é acessada por experiências menos complicadas, com algo mais próximo e fácil.

E a pior comida?
A pior coisa que pode acontecer é quando se tem uma intoxicação alimentar. Já me aconteceu algumas poucas vezes. O chef nunca soube. Respeito muito o trabalho de todos eles. Discrição é tudo.

Se tivesse um restaurante, como seria?
Eu gosto da sensibilidade na comida. Teria produtos bons e lindos, uma equipe de alta excelência técnica, que preparasse pratos em que o ingrediente, seja uma verdura ou uma carne, não estivesse oculto. Seria simples. Isso não significa que fosse simplório. Sustentabilidade, orgânico. Nada barroco. Teria o melhor copo, aquele cristal que temos medo de segurar e quebrar. Guardanapos de linho único. Madeira. Verde. Um ambiente natural, clean. Muito cuidado com os detalhes. O luxo é fazer tudo excelente com pouco. Menos é mais.

Em 2003, quando surgiu o El Bulli, decretou-se que a "Espanha era a nova França". Agora, diz-se que a "França se recupera". É França ou Espanha na hora de comer bem?
Acho que essa dicotomia não faz mais qualquer sentido. O mundo está cada vez mais globalizado, e isso é cada dia menos importante. Isso é coisa de jornalistas, que gostam de "a Dinamarca agora é não sei o quê", "a vez dos escandinavos". Estamos em San Sebastián, um dos maiores destinos gastronômicos do mundo, que gera muito conteúdo e cliques. Isso é um debate da imprensa.

Brasileiros ricos costumavam vir muito para cá comer nos restaurantes estrelados ou mandavam os filhos estudar em escolas de gastronomia mundo afora. Como definiria os brasileiros?
Os alunos que estão aqui trazem uma alegria de viver, um jeito diferente de ver o trabalho e a vida. É uma pena o que está acontecendo no seu país. Até aqui é possível perceber a diferença na prática. Há uns 10 anos, costumávamos receber vários governadores que queriam fazer projetos com o Basque, abrir uma filial da escola no Brasil, havia um clima de investimentos, de valorizar esse setor, gerar empregos na área. E há uns quatro anos, nunca mais apareceu ninguém.