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Muito além das smart cities verdejantes, solarpunk também pode ser sombrio
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Nos últimos meses, tenho me debruçado sobre o subgênero da ficção científica solarpunk. Aqui no Brasil, já em 2013, tivemos a publicação de uma das primeiras coletâneas de contos do gênero, sob o título "Solarpunk - Histórias ecológicas e fantásticas em um mundo sustentável". Isso resume bastante o que o subgênero vem a propor: histórias de um futuro mais ecológico, sustentável e positivo.
O sufixo "punk" adicionado a subgêneros como cyberpunk, steampunk ou dieselpunk por muito tempo teve uma conotação negativa por conta do primeiro, que trazia o comportamento de protesto e pessimismo associados à subcultura. Mas, com o desenvolvimento de outros subgêneros da família "punk", percebe-se que não necessariamente o tom precisava ser assim, obscuro e distópico. Aliás, como já comentei em outra oportunidade, cada vez mais as pessoas estão pedindo por histórias mais positivas — talvez não necessariamente utopias, porque estas são apenas "o outro lado da moeda", mas pelo menos um pouco mais razoáveis, que possam nos servir de inspiração para um otimismo que está em falta.
Lançada no começo de abril, a coletânea "Multispecies Cities", publicada pela editora World Weaver Press, reúne 24 histórias de autores que abordam futuros ecológicos, concentrados na região da Ásia e do Oceano Pacífico, com contos que se passam em países como as Filipinas, Rússia, China, Taiwan, Japão, mas também no Havaí e... Marte (!). À primeira vista, o solarpunk parece ser um gênero muito mais visual do que necessariamente definido por uma robusta bibliografia. É o mesmo que acontece com outros gêneros mais recentes, como o sertãopunk e o amazofuturismo, que também estão se desenvolvendo na literatura após conquistarem fãs através das artes visuais. E nas artes relacionadas ao solarpunk, conhecemos um futuro mais brilhante, urbano, permeado por construções vítreas e jardins verticais, um futuro que, aliás, pode beirar os mock-ups de projetos de cidades inteligentes e gentrificação futurista.
Mas, em "Multispecies Cities", descobrimos que imaginar um futuro ecológico vai muito além disso e não necessariamente tem a ver com um otimismo ingênuo e fantástico. Em contos como "Becoming Mars", de Taiyo Fujii, ou ainda "In Two Minds" de Joel R Hunt, é possível identificar várias referências e tropos de gêneros mais pessimistas, como o cyberpunk. Ainda assim, as propostas são inovadoras e trazem à tona tecnologias mais recentemente popularizadas no âmbito acadêmico, mas também entre o público leigo. A engenharia genética é tanto usada para adaptar seres humanos ao ambiente inóspito de Marte, onde uma tentativa de terraformação foi frustrada, ou então de modo a estabelecer uma ponte de contato entre seres humanos, animais e inteligências artificiais.
Em "Mariposa Awakening", por exemplo, cientistas conseguem se comunicar com animais marinhos que os ajudam a monitorar as tempestades e enchentes na costa filipina. Já em "A Rabbit Egg for Flora", o planeta é repovoado por animais que "nascem" de ovos distribuídos pelas cidades. Por outro lado, contos como "By the Light of the Stars" e "Old Man's Sea" são narrativas curtas, porém confortáveis. Apesar de termos passado por uma catástrofe ecológica, fomos capazes de reverter ou de achar uma forma de sobreviver e de nos reconectar com a natureza e outros seres — principalmente os marítimos.
Minha curiosidade residia principalmente em tentar achar uma forma de explorar o tema do solarpunk sem necessariamente cair na fórmula de uma fábula otimista ou de um sermão pós-apocalíptico sobre o que vem depois da catástrofe climática — algo que abordei em um texto de anos atrás, quando uma escritora propôs que o solarpunk seria o novo cyberpunk. Uma das críticas feitas por fãs de ficção científica é que o solarpunk conta histórias do que acontece depois da crise, mas não como ela foi resolvida. Em "Multispecies cities", há um ou outro conto que aborda soluções tecnológicas para evitar alagamentos em cidades litorâneas ou então a maneira como certas cidades se tornaram "cidades-jardim", além de Marte ter se tornado um novo habitat humano caracterizado por domos habitacionais.
"Radical Botany" analisa como as plantas são abordadas enquanto metáfora política em histórias de ficção — de "The Yellow Wallpaper" até "Invasion of the Bodysnatchers" e, mais recentemente, o livro e filme "Aniquilação" (2018). Foi justamente esse último título que me fez refletir como o solarpunk poderia trazer um aspecto mais bizarro, misterioso, mais próximo do subgênero "new weird" do que de uma narrativa otimista com tons de "greenwashing". Foi interessante ver que o livro "Radical Botany" sugere justamente isso: histórias em que humanos se tornam plantas, são consumidos por vegetais, ou decidem se tornar árvores em protesto à sociedade vigente. Isso me levou diretamente à cena de "Aniquilação" em que a personagem de Tessa Thompson decide se render ao "shimmer" e se tornar parte do ecossistema.
Por outro lado, também a banda Botanist tem sua carga de influência na minha ponderação sobre novos rumos para o solarpunk. O projeto de um só músico começou audacioso, como uma banda de black metal sem guitarras, mas com um instrumento medieval chamado dulcimer que embala as letras que são, na verdade, descrições científicas de espécies vegetais. E toda a identidade visual da banda gira em torno dessa "supremacia botânica", inclusive com artes que revelam cadáveres sendo consumidos por plantas, fungos e vermes, como se a natureza estivesse cobrando de volta aquilo que era dela.
Bem, aí estava a minha inspiração mais "dark" para o solarpunk também combinada à estética e proposta pós-humanista de Björk, desde seu álbum "Biophilia", no qual a cantora islandesa começa a delinear alguns figurinos, performances e vídeos em que seu corpo é transfigurado em criaturas virtuais, mas que seguem premissas naturais — algo como a proposta criativa da designer de moda Iris Van Herpen, que, aliás, assina vários looks da cantora. Para quem pôde conferir a exposição Björk Digital no MIS (Museu da Imagem e do Som) de São Paulo, foi possível vivenciar os clipes da cantora em realidade virtual, numa narrativa de metamorfose e transcendência sobre o fim de um relacionamento.
Em "Multispecies Cities", aprendi que o solarpunk não precisa necessariamente ser um subgênero da ficção científica que pensa um futuro parecido com panfletos das Testemunhas de Jeová, mas é também um gênero de crítica, resistência e endereçamento metafórico de outras questões filosóficas que não necessariamente têm a ver com os problemas concretos da crise climática ou dos efeitos colaterais do capitalismo tardio. Por isso, é importante resgatar que já em 2000 o escritor Bruce Sterling (um dos veteranos criadores do cyberpunk) já propunha a criação de um novo subgênero da ficção científica que estivesse mais preocupado com a natureza e o clima — Sterling, aliás, tem livros como "Heavy Weather" que falam sobre isso.
O manifesto Viridian Design, portanto, apresenta um movimento estético focado no conceito de um "ambientalismo verde-brilhante" que está, justamente, conectado ao nome do coletivo — viridian é uma tonalidade de verde um tanto fluorescente, de aspecto mais artificial e que, por isso, conecta-se com temas como inovação através do design e tecnologia em contraponto ao "verde-folha" tradicionalmente usado pelo ambientalismo original. Ao resgatar temas como design ambiental, tecno-progressivismo e cidadania global, o conceito foi pensado por Sterling já em 1998, apesar de seu manifesto ter sido publicado dois anos depois. Alex Steffen, Jamais Cascio e Jon Lebkowsky foram alguns dos escritores que se aliaram à proposta de Sterling, que ficou concentrada no blog Worldchanging, mesmo nome dado ao livro com contos que representam o gênero. Em 2008, no entanto, o escritor "encerrou" o movimento porque entendeu que já emergia na cultura um ímpeto por esse ambientalismo "verde-brilhante", isto é, um olhar mais tecnológico ao ambientalismo, como se vê também mesmo entre ativistas como James Lovelock.
Apesar de ainda estar se desenvolvendo, o solarpunk tem muito de onde tirar suas inspirações, sejam nas cli-fis (climate fiction ou ficção climática) ou ainda na maneira como os escritores Ursula K. Le Guin, Octavia Butler e Samuel Delany adotaram a figura do alienígena e da metamorfose entre seres humanos e natureza para discutir temas como gênero, raça e política. O solarpunk pode ser um gênero que agrade mesmo os fãs pessimistas e "obscuros" do cyberpunk, porque ele não precisa contar apenas histórias ingênuas de um otimismo pós-apocalíptico que busca sanar nossa ansiedade do presente, mas também para retomar outros tropos que dizem respeito à transformação da humanidade e seu deslocamento do centro de todas as coisas para se amalgamar ao entorno. Fica aqui o desafio para mim mesma e para outros autores que desejem abordar esse lado mais "gótico" do solarpunk — porque a natureza pode ser tão assustadora quanto nos filmes de Lars Von Trier.
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