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Matheus Pichonelli

REPORTAGEM

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'É impossível falar de Angeli sem falar de SP', diz diretor de 'Bob Cuspe'

Cena do filme "Bob Cuspe, nós não gostamos de gente", de César Cabral - Divulgação
Cena do filme 'Bob Cuspe, nós não gostamos de gente', de César Cabral Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

11/11/2021 04h00

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O cineasta Cesar Cabral tinha 13 anos quando entrou em contato com as revistas da editora Circo, de Toninho Mendes. Foi ali que conheceu um universo de personagens criados por Angeli, Laerte e Glauco em publicações como "Chiclete com Banana", "Piratas do Tiête" e a revista "Geraldão". O garoto nascido em Santo André e que cresceu em São Miguel Paulista, extremo leste de São Paulo, conta hoje, aos 49 anos, ter encontrado naqueles quadrinhos um conteúdo de formação que foi ao encontro do seu interesse por skate, música e literatura. "Foi ali que descobri também a geração Beatnik e a existência de bandas como The Clash ou mesmo os quadrinistas norte-americanos, como Robert Crumb e Gilbert Shelton, criador dos Freak Brothers", diz.

O fascínio por aquelas revistas o levou, já no começo dos anos 2000, a procurar Angeli e pedir autorização para dar sequência a um projeto, idealizado junto com a companheira, a documentarista Carla Gallo, contando a história do "assassinato" da Rê Bordosa — célebre personagem das tiras publicadas por ele na Folha de S.Paulo. Angeli, num primeiro momento, não quis muito papo. No fim, cedeu.

Em 2007, com o curta "Dossiê Rê Bordosa" quase pronto, o diretor enviou a ele uma cópia e teve "um retorno muito positivo" sobre o diálogo que o filme fazia com sua própria obra. Foi o início de uma sequência de conversas que renderam, além de uma série animada, 30 horas de entrevistas gravadas até 2018. Nesses encontros, Angeli falava sobre cotidiano, processos criativos e, principalmente, suas "crises de autor".

Essas crises — que passam por uma relação de amor e ódio por São Paulo e pelo contexto do Brasil atual — estão no centro de "Bob Cuspe, Nós não gostamos de gente", longa em stop-motion de César Cabral, vencedor da Mostra Contrechamp, em Annecy (França), o maior festival de animação do mundo. O filme estreia nesta quinta-feira (11) nos cinemas.

A construção do roteiro, que traz em cena o ícone punk do universo de Angeli, é uma mescla de todos esses materiais, inclusive o captado em "Dossiê Rê Bordosa". "Mas, diferentemente do curta e da série, que tem um foco no humor dos quadrinhos da revista 'Chiclete com Banana', no longa busquei trazer suas questões mais atuais, da autocrítica, da idade e, de certa forma, uma revisão do seu passado", diz Cabral.

Dublado por Milhem Cortaz, de "Tropa de Elite", o punk mal encarado de Angeli tenta no filme escapar de um deserto pós-apocalíptico que se confunde com a mente e a crise de seu criador. Paulo Miklos, André Abujamra, Grace Gianoukas e Laerte emprestam a voz para os personagens que ele encontra no caminho.

Nessas andanças, a cidade de São Paulo é quase um personagem em si. "Não acho possível abordar a obra de Angeli sem falar de São Paulo. A cidade não está ali representada apenas pelos prédios e a cor cinzenta da fuligem e do nanquim, mas em cada personagem urbano que ele constrói. Essa São Paulo é representada através da janela que vemos do estúdio do Angeli, mas também dentro da cabeça dele, uma cidade quase pós-apocalíptica, esvaziada de vida e de certa maneira de ideias também."

Animação Bob Cuspe - Divulgação - Divulgação
O personagem de Angeli em cena da animação 'Bob Cuspe, nós não gostamos de gente'
Imagem: Divulgação

Quando iniciou o projeto, estava claro, para o diretor, que o filme traria um embate entre criador e suas criaturas — entre elas, pequenas paródias de Elton John, o símbolo do pop que atormentava o protagonista nos anos 1980. Mas, por conta do documentário que permeia a ficção, as entrevistas acabaram moldando a ideia original. "A parte documental acabou sendo editada e 'manipulada" para transformar o Angeli autor no 'Angeli - Velho Cartunista', uma personagem rabugenta, mal-humorada, que não quer falar muito do seu trabalho, que não quer dar entrevistas. Foi com essa proposta que criamos esse perfil, para muitas vezes trazer o humor, e criar um personagem mais esférico dentro da narrativa", diz Cabral. "Mesmo as cenas ficcionais do Angeli são extratos do material documental, não houve gravações com diálogos escritos antecipadamente."

Para millennials e centennials que não captarem as referências, o diretor explica que Bob Cuspe representa um espírito jovem que não se limita a um momento específico — no caso, os anos 1980, quando as revistas da editora Circo viviam o auge. "É claro que o punk tem uma data, mas a postura inconformista com o mundo estabelecido está nos jovens de qualquer época. Acho que o 'punk', no sentido amplo, nunca morre, está em cada geração que se renova."

Em uma das entrevistas retratadas no longa, Angeli se queixa de que o mundo está "fofo demais". Cabral concorda. "O Angeli se refere à visibilidade das redes sociais com fotos de gatinhos, mensagens singelas e pratos de comidas bem ou mal decorados. Fala da futilidade explícita e de um discurso politicamente correto."

Esse embate entre os personagens do submundo e a "fofura" que virou marca de uma época está presente até mesmo na trilha sonora original, criada por André Abujamra e Marcio Nigro, e nas músicas do "imaginário oitentista", fundamentais, segundo Cabral, para aproximar o mundo de Angeli ao mundo dos personagens. "O filme tem na música um reflexo do embate entre criador e criatura, em que o Pop tenta vencer o Punk. A escolha de duas músicas do Titãs, além de resgatar os hits que foram em sua época, teve a intenção de trabalhar o ambiente 'pop' da música 'Sonífera Ilha' com a música mais 'porrada' de 'Cabeça Dinossauro'. Paulo Miklos, por uma feliz coincidência, faz o ponto de conexão com esses dois mundos emprestando sua voz para os Irmãos Kowalski."

Apesar do formato, Cabral avisa que o longa é uma animação para adultos — um segmento que tem encontrado seu espaço com a internet e a popularização do streamings.

Os fãs das antigas HQs de Angeli e Laerte terão, no filme, a oportunidade de ver os velhos amigos novamente juntos — na verdade, não tão juntos, já que o criador ranzinza do filme foge de tudo e de todos, inclusive da amiga. Cabral jura que é tudo jogo de cena. "Ela (Laerte) inclusive é muito próxima do Angeli. No filme construímos um suposto distanciamento para reforçar a persona do 'Velho Cartunista'".