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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Eduardo Bolsonaro debocha de tortura. Essa turma quer falar de bem x mal?

Míriam Leitão fala sobre tortura vivida na ditadura militar -
Míriam Leitão fala sobre tortura vivida na ditadura militar

Colunista do TAB

06/04/2022 04h01

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Eduardo Bolsonaro escreveu, em sua perfil no Twitter, que tinha pena da cobra usada em uma sessão de tortura pela qual passou a jornalista Miriam Leitão em 1972, quando foi presa, aos 19 anos, sob a acusação de panfletar e escrever palavras de ordem contra a ditadura militar.

A menção ao ofídio era uma referência a um duro relato feito pela jornalista em 2014. Na ocasião, ela contou ter sido torturada pelos militares quando estava grávida e chegou a ser trancada, sem roupa, numa sala com o animal.

Eis um trecho do seu relato: "Eu não tinha noção de dia ou noite na sala escurecida pelo plástico preto. E eu ali, sozinha, nua. Só eu e a cobra. Eu e o medo. O medo era ainda maior porque não via nada, mas sabia que a cobra estava ali, por perto. Não sabia se estava se movendo, se estava parada. Eu não ouvia nada, não via nada. Não era possível nem chorar, poderia atrair a cobra. Passei o resto da vida lembrando dessa sala de um quartel do Exército brasileiro. Lembro que quando aqueles três homens (os torturadores) voltaram, davam gargalhadas, riam da situação. Eu pensava que era só sadismo. Não sabia que na tortura brasileira havia uma cobra, uma jiboia usada para aterrorizar e que além de tudo tinha o apelido de Miriam. Nem sei se era a mesma. Se era, talvez fosse esse o motivo de tanto riso".

Em seu Twitter, o filho do presidente encarnou o sadismo dos torturadores ao comentar uma coluna publicada por Miriam Leitão no jornal O Globo na qual dizia que a nota em defesa do golpe militar de 1964, assinada pelo Ministério da Defesa em 2022, não era apenas um acinte, era uma ameaça. "Se eles acham que respeitaram a Constituição quando a rasgaram, se acham que 'nos anos seguintes ao dia 31 de março de 1964 a sociedade brasileira conduziu um período de estabilização' e de 'amadurecimento político', que no fim trouxe 'a paz no país', podem repetir a mesma sequência pavorosa de eventos".

A colunista estava certa, como estava certa ao dizer, no mesmo texto, que os militares sempre se recusaram a olhar de forma adulta o que houve no país enquanto eles governaram, e que Jair Bolsonaro, pai do deputado, liberou esse autoritarismo ao ser eleito.

O diagnóstico era tão certeiro que o post de Bolsonaro não pode ser lido apenas como acinte, mas também como ameaça. Se ele acha normal debochar do relato de uma mulher torturada — aliás, como fez seu pai votando pelo impeachment de Dilma Rousseff, na qual elogiou o seu torturador, Carlos Alberto Brilhante Ustra —, ele pode endossar a sequência pavorosa de eventos enquanto sua turma estiver no poder.

Eduardo Bolsonaro assinou o recibo, e como resultado ajudou a explicar por que seu pai tem mais rejeição entre eleitoras mulheres do que entre os homens.

Diante da repercussão, e com um pedido de cassação movido pela oposição no Conselho de Ética da Câmara, o deputado fez o que sua turma sempre costuma fazer nessas horas: posou de vítima na mesma rede onde desferiu o golpe.

Citando ações extremas dos grupos armados contra a ditadura, da qual Miriam nem sequer fazia parte, ele perguntou onde estava a indignação de quem manifestou apoio à jornalista quando alguém desejava a morte dele e de sua família. Não indicou em que momento a jornalista compartilhou esse desejo.

Nenhum dos textos citados como exemplo de discurso de ódio movido pela imprensa era assinado por ela, mas isso parece um detalhe para quem precisa confundir o público para poder posar, ele sim, de vítima.

Curioso que a postagem do deputado aconteça no momento em que seu pai, em campanha pela reeleição, vem definindo a campanha presidencial como a luta do bem contra o mal.

É certo que o mundo editável do ambiente digital borrou as fronteiras de certo e errado, civilização e barbárie, verdade e mentira. Mas não é difícil saber quem é quem quando um dos lados normaliza o pior dos crimes, que é a tortura.

Para a turma de Bolsonaro, pessoas como Miriam Leitão precisam ser tiradas de cena, pelo medo ou pela tortura, por demonstrarem coerência em um dos momentos mais graves da história.

Ela defende que não há paralelo entre Bolsonaro e outros pré-candidatos, apesar da estratégia equivocada da tal terceira via em apontar dois "extremos" em 2022. Isso porque só Bolsonaro fez o que fez ao chegar ao poder, sabotando impunemente os planos contra o desmatamento e provocando a "cupinização" institucional do país, após escolher um procurador-geral da República fora da lista tríplice, alguém que o blindasse de qualquer perigo.

"Há vários caminhos na economia e nas políticas sociais, mas na questão institucional há uma via única: a democracia", ela escreveu.

O post de Eduardo Bolsonaro mostra que o diagnóstico estava correto. Se mais pessoas chegarem ao artigo após a ameaça explícita, mais chance de o alerta ser ouvido. Antes de se posicionar numa suposta luta do bem contra o mal, é bom observar em qual trincheira estão posicionados os torturadores e seus defensores de primeira hora.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL