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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Expor Klara Castanho não é 'jornalismo de entretenimento', é covardia

A atriz Klara Castanho - Reprodução/Instagram
A atriz Klara Castanho Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

27/06/2022 10h50

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"Pleasure" é um filme que tem no título uma amarga ironia. Em cartaz no Mubi, uma plataforma de streaming de filmes autorais, o longa de Ninja Thyberg mergulha a fundo nos bastidores da indústria do cinema pornográfico.

Conta a história de Jessica, uma jovem de 20 anos interpretada pela sueca Sofia Kappel que vai a Los Angeles, nos EUA, tentar a vida como atriz de filmes "adultos". Já no aeroporto, ela é questionada se está ali a trabalho ou por diversão.

Leva pouco tempo para a postulante ao estrelato e os espectadores descobrirem que, na frente ou atrás das câmeras, ninguém está lá para oferecer prazer, diversão ou entretenimento. Jessica está lá apenas para ser destruída.

Essa destruição alimenta uma multidão de psicopatas, formada por pessoas que odeiam mulheres, e que alimentam esse ódio através de uma violência performática.

Para fazer sucesso, é preciso ultrapassar em muitos quilômetros a linha do hardcore. Quanto mais longe for e quanto mais sofrimento entrar em cena, mais chance tem alguém de alcançar a fama e enriquecer. Parece contraditório, e é.

Em uma das passagens mais pesadas do filme, Jessica contracena com dois atores orientados a simular um estupro. Ela então é agredida de verdade para simular uma agressão. De novo, parece contraditório. E é.

"É só uma ficção", dizem os atores e seu diretor, atenciosos e carinhosos, quando ela pede para parar em meio a uma crise de choro.

Segundos depois, a atriz é violentada novamente, deixando uma pergunta fácil de ser respondida sobre o limite entre a violência e a performance dessa violência. Ambas doem de verdade.

A cena deixa mais do que subentendido que essa violência é alimentada pela plateia e a indústria disposta a alimentar uma pulsão de morte.

A pornografia, hoje discutida e radiografada em filmes como o de Ninja Thyberg, não é a única indústria que tem esse ódio e essa pulsão destrutiva como motores.

Torcido e retorcido, é esse ódio que muitas vezes mobiliza as notícias embaladas com o selo de "entretenimento". E que de "entretenimento" tantas vezes não tem nada: é só um furo numa parede de privacidade alheia aberta para alimentar uma outra (ou a mesma?) psicopatia social.

Pela régua implícita, seus alvos compilam uma série de condicionantes para ganhar o status de celebridade, ou subcelebridade, que envolvem padrões relacionados a corpo, figurino, paisagens, consumo e modos de estar no mundo.

A fatura dessa exposição a olhares supostamente curiosos chega em forma de devassa.

Com lupas, buscamos um flagrante que seja para desumanizar semideuses criados em filtros instagramáveis com a confortável sensação de saber que, no fim, são falhos como qualquer leitor/espectador. A ruína é a profecia autorrealizável de uma vingança.

Isso de modo geral. Quando esses corpos e modos de estar no mundo envolvem mulheres, a indústria do ódio se apodera e faz com que dramas pessoais como os de Klara Castanho sejam trucidados em nome de um interesse público inexistente.

No último fim de semana, uma multidão sedenta de sangue soube, graças a profissionais destituídos de qualquer escrúpulo, que a atriz gestou uma criança após ser estuprada e a entregou para a adoção. Foi julgada e condenada pela suposta "falta de responsabilidade".

Isso no momento em que um país inteiro mirou suas chamas e seus tridentes contra uma menina de 11 anos que teve o direito de interromper legalmente a gravidez sonegado e constrangido por quem tentava convencê-la a arriscar a própria vida e levar a gestação até o fim e fazer uma família "feliz" por meio da adoção. A violência, manifestada em audiências judiciais e na repercussão da turba e autoridades públicas, tinha no fundo um ódio disfarçado de imperativo moral.

A conclusão das duas histórias parece óbvia: não importa qual decisão supostamente pessoal, legal e soberana uma mulher pode tomar, ela vai sempre ser escorraçada pelo simples fato de existir.

Mães que planejaram, desejaram e querem ficar com seus filhos passarão, em uma outra fase da devassa, por outros tipos de julgamento e espancamento moral ao menor sinal de dúvida e cansaço.

Até onde alcançam os tentáculos de vigilância e punição das melhores/piores famílias e vizinhança, ninguém, absolutamente ninguém, está livre da exposição. Menos ainda a ideia de celebridade criada para alimentar a sanha de línguas e ouvidos envenenados.

Essa multidão é alimentada pela indústria do chamado jornalismo de fofoca, uma contradição em termos e desrespeitosa com quem aprendeu já na faculdade alguma noção básica sobre a diferença entre interesse público e interesses publicados.

Uma coisa é o que faz um(a) ministro(a) quando (pensam que) não tem ninguém olhando. Outra é o que uma atriz faz com seu corpo e sua vida.

No começo dos anos 1990, o jornalismo declaratório foi alimentado — por um delegado irresponsável — e alimentou um falso escândalo de pedofilia envolvendo os donos de uma escola em São Paulo. Longe da turba de linchadores, o tempo da Justiça demonstrou que tudo não passou de um delírio. Os acusados eram inocentes. Mas suas vidas já haviam sido destroçadas.

O caso Escola Base, como ficou conhecido, mudou o foco do escrutínio e botou em evidência as responsabilidades de quem tinha a missão de informar, e não apenas transmitir declarações e engrossar o grito da manada para vender jornal.

Só não resultou numa mudança de paradigma de fato porque aos poucos esse jornalismo mezzo policialesco/mezzo criminoso se infiltrou em novos veículos, como os digitais, para se atualizar.

Mas o esqueleto da tragédia em forma de cobertura ainda assombra, desde a primeira aula na faculdade, quem pretende fazer da profissão algo mais do que um penico. É o que separa gente séria de oportunistas armados com um telefone na mão.

A covardia por que passou uma mulher que entregou para adoção uma criança gestada por violência por conta da irresponsabilidade do jornalismo de celebridade pode e deve servir para lançar ao divã quem produz e quem consome irresponsabilidades do tipo. Não é o primeiro caso, mas bem poderia ser o último.

Talvez seja otimismo demais imaginar que a história possa produzir algum grau de reflexão. Mas é o mínimo que se pode exigir de contratados e contratantes com alguma preocupação com a credibilidade de seus veículos.

Assim como a indústria da pornografia, essa discussão só tem alguma chance de avançar se levar em conta que não é o entretenimento, o mero "prazer da fofoca" ou aquilo que os alemães chamam de Schadenfreude que nós, consumidores ou produtores de conteúdo, estamos alimentando. É o ódio puro e simples contra quem botamos no palco para saciar um desejo contínuo de destruição.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL