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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que diz um autor antifascista britânico sobre o Brasil de Jair Bolsonaro

Militantes de direita pedem golpe militar na Avenida Paulista durante manifestações do 7 de setembro de 2021 - EPA
Militantes de direita pedem golpe militar na Avenida Paulista durante manifestações do 7 de setembro de 2021 Imagem: EPA

Colunista do UOL

31/07/2022 04h00

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O escritor britânico Joe Mulhall se apaixonou pelo Brasil durante a Copa do Mundo de 1998, na França. Aos dez anos de idade, nada parecia mais incrível do que ver Ronaldo Fenômeno em campo. "Sua força, sua habilidade e seu ritmo alucinante me convenceram de que ele era o melhor jogador a já ter pisado em campo em toda a história", escreve Mulhall no prefácio à edição brasileira do livro "Tambores à distância — viagem ao centro da extrema direita mundial", recém-lançado por aqui pela editora Leya.

Iniciada pelo futebol, a ligação afetiva com o país, estendida ao longo da adolescência aos campos da Amazônia e ao som da Tropicália, levou o autor a dedicar um capítulo-chave ao Brasil em sua análise de um fenômeno global.

Mulhall é diretor de pesquisa da organização antifascista "Hope not Hate" (esperança, não ódio). Ele já atuou em campanhas contra partidos de orientação fascista na Europa e precisou se infiltrar em grupos extremistas para flagrar, monitorar e denunciar suas estratégias e ações. Entre outras passagens do livro, ele descreve como se juntou a uma milícia supremacista nos EUA, recebeu uma espingarda e foi enviado para a fronteira com o México. E também como conheceu por dentro a Ku Klux Klan e participou de diversas marchas com os grupos extremistas mais violentos da Europa.

Sua experiência à frente da organização o levou a mudar a visão que tinha até pouco tempo do Brasil. No livro, o ativista conta ter assistido aterrorizado à chegada de Jair Bolsonaro à Presidência com o lema "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos". Os dizeres eram um pastiche de slogans já usados pela extrema direita em seu país ("Grã-Bretanha em primeiro lugar") e o "America First" de Donald Trump.

Sob Bolsonaro, afirma, o Brasil se tornou um dos representantes do bloco formado, até então, por Índia, EUA e outros países de democracia liberal que caíram no que ele chama de "feitiço de xenófobos nacionalistas" que hoje ameaçam direitos básicos de seus cidadãos. Para Mulhall, os fenômenos que levaram à ascensão da extrema direita nesses lugares são difusos e possuem raízes históricas distintas, mas existem semelhanças que ajudam a lançar luz sobre o que classifica como tempos assustadores.

Algumas das consequências desse fenômeno, afinal, são a expansão do terrorismo de extrema direita, levada a cabo por supremascistas responsáveis por massacres nos EUA e na Europa, a crescente proliferação de leis discriminatórias e o boicote à luta internacional contra a mudança climática. A forma como esses líderes enfrentaram a covid-19, com negação e retórica antichinesa, é também lembrada pelo autor.

"Para entender as fake news internacionais e a desinformação, o racismo, o populismo, o aquecimento global ou até mesmo a covid-19, é preciso tentar entender o Brasil", escreve.

E, para entender esse fenômeno, é preciso cuidado ao dar nome aos bois. Ele alerta, por exemplo, que Trump pode ser considerado racista, misógino, nativista e de extrema direita. Mas não pode ser considerado um fascista, como tanta gente o faz. O risco de colocar tudo no mesmo balaio é perder a perspectiva do diagnóstico e de enfrentamento. Seria um erro crasso, segundo ele, combater os movimentos que possibilitaram o Brexit na Inglaterra com as mesmas armas para conter grupos neofascistas.

Mas o que é o fascismo, afinal?

Fascismo, segundo a definição de "tipo ideal" mais próxima de consenso fornecida por seu conterrâneo Roger Griffin, professor de História e teórico político na Oxford Brookes University, é um "gênero de ideologia política cujo cerne mítico em suas várias permutações é uma forma palingenética (uma ideia de renascimento ou recriação) de ultranacionalismo populista".

O autor acredita que, embora tenha sido chamado de "Trump dos trópicos", "Bolsonaro está numa ordem de magnitude diferente da do seu aliado americano". Ele lembra que existem poucas minorias que Bolsonaro não tenha atacado até hoje — a lista de ofensas e ameaças citadas pelo autor é extensa. Uma delas é quando o atual presidente afirmou que preferia ver um filho morto em um acidente do que com um "bigodudo por aí".

Ataques do tipo colocam Bolsonaro numa estante anacrônica mesmo em linha com movimentos similares de extrema-direita pelo mundo, que já não descrevem pessoas LGBTQIA+ como sujeitos "degenerados" ou "perigosos". "Muitos agora mantêm diálogos limitados com homens gays, principalmente para fins estratégicos", cita.

Essa estratégia posicionou o direito a ser gay como um valor ocidenal central para municiar ataques a culturas islâmicas e não ocidentais acusadas de intolerância. É uma forma (cínica, admite o autor) de marcar posição inviabilizaria o convívio entre pessoas de valores "incompatíveis".

Mulhall observa um esforço retórico para enquadrar o ativismo de extrema direita como uma luta por direitos humanos e igualdade, isenta de epítetos abertamente grosseiros. Bolsonaro, segundo ele, prova que esse reposicionamento retórico não chegou a todos os lugares. "O histórico agressivo de Bolsonaro em relação à homofobia anda de mãos dadas com uma misoginia cada vez mais explícita", diz, citando entrevistas em que o atual presidente diz que não empregaria mulheres com o mesmo salário de homens ou quando afirma que não estupraria uma deputada porque ela era feia e não merecia.

O autor defende que a passagem de Bolsonaro pela Presidência precisa ser vista no contexto de seu longo histórico de crenças antidemocráticas e pró-ditatoriais aliadas à fragilidade das instituições democráticas do Brasil, o que inclui o desmonte da normas de proteção ambientais no país, o incentivo a atividades poluentes na Amazônia, como mineração e criação de gado, e o enfraquecimento dos direitos indígenas.

A questão da preservação da floresta, que faz o mundo observar com apreensão o contexto local, não é um tópico qualquer.

A certa altura do livro, o autor admite que ele e sua ONG demoraram a perceber que aquecimento global e ascensão da extrema direita não são fenômenos desconexos. O negacionismo climático, afinal, é uma estratégia que une extremistas de diferentes países. Mulhall descreve uma reunião em que pesquisadores chegaram ao consenso de que a maior ameaça ao antifascismo nas próximas décadas não é o terrorismo, a radicalização online ou normalização de líderes e discursos de ódio, mas as mudanças climáticas, que resultarão, cada vez mais, em deslocamentos populacionais em decorrência da savanização de territórios hoje ameaçados.

Os massacres promovidos por extremistas em guerra contra o declínio ambiental e uma suposta superpopulação são alertas do que pode vir daqui em diante.

Por conta de seu trabalho, o autor conta já ter sido fisicamente ameaçado, perseguido, abusado e jogado de escadas. Mesmo assim, diz encarar o contexto atual com um misto de medo e esperança. "Escrever este livro me convenceu mais do que nunca de que a história não é uma jornada linear inevitável em direção ao progresso, mas uma luta contínua que precisa ser vencida de novo e de novo", ensina.

Outra reflexão, que chega em boa hora em um período de recrudescimento dos ânimos às vésperas da eleição no Brasil, é que "coisas ruins são fruto da crença e da ação de pessoas normais", e não monstros facilmente identificáveis. "Lembro-me de todos os ativistas de extrema direita que conheci, muitos deles de quem de fato gostei, mesmo desprezando suas crenças e desejando detê-los. É muito fácil, e reconfortante, desumanizar as pessoas. Fazer delas um mal abstrato, torná-las monstros".

É isso, segundo ele, que torna tudo ainda mais apavorante.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL