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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pátria armada: discussão é sentença de morte até para campeão de jiu-jítsu

O lutador de jiu-jítsu Leandro Lo teve morte cerebral confirmada após tiro na cabeça - Reprodução/Instagram
O lutador de jiu-jítsu Leandro Lo teve morte cerebral confirmada após tiro na cabeça Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

09/08/2022 04h01

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O país que passou mais de dois anos em confinamento, ou ao menos com a mobilidade e a vida social limitadas devido à pandemia, fez planos ambiciosos para quando "tudo isso acabasse". Um Carnaval apoteótico e transbordante, similar ao de 1919, quando a gripe espanhola arrefeceu, era o mínimo que se esperava.

"Sairemos dessa melhores", eles diziam — embora já estivesse claro que nem nós nem o planeta seríamos os mesmos.

No Brasil, quando as vacinas começaram a vencer a covid-19, a retomada prometia ser um caminho sem volta a um mundo em expansão. Mas no meio do caminho havia uma outra epidemia. Uma epidemia de homens armados que transformaram qualquer discussão na mesa do bar em sentença de morte.

O assassinato, na madrugada de domingo (7), de um campeão mundial de jiu-jítsu mostra que ninguém está salvo em um país engatilhado até a alma.

Leandro Lo, 33, foi baleado em uma festa no Clube Sírio, na zona sul de São Paulo, após discutir com um PM de folga durante um show de pagode do grupo Pixote. O policial militar Henrique Otávio Oliveira Velozo se entregou à corregedoria da corporação no mesmo dia e está preso temporariamente.

O crime aconteceu cerca de um mês após um policial, também de folga, resolver na bala as suas diferenças políticas com um guarda comunitário que comemorava seu aniversário com a família em Foz do Iguaçu (PR). A tragédia aconteceu no salão da Associação Recreativa e Esportiva Saúde Física, onde a saúde física do aniversariante e dos convidados foi literalmente destroçada.

Os dois episódios levam a um questionamento inevitável: se um agente de segurança, que em tese deveria saber como (não) usar sua arma em um dia de folga, representa um risco a quem cruzar seu caminho, o que dizer do exército particular de atiradores, caçadores e colecionadores que se multiplicou no país e já anda normalmente com seu arsenal por caminhos que nada tem a ver com clubes de tiro ou locais de caça?

Um levantamento recente da Folha de S.Paulo, com base em boletins de ocorrência da Polícia Rodoviária Federal, revelou que é cada vez mais comum encontrar armamentos do tipo entre pessoas que cruzam as estradas do país — há flagrantes de pessoas autuadas com armas após consumirem drogas e bebida alcoólica.

Até abril, segundo o levantamento, o Brasil possuía 605 mil CACs com registro ativo no Exército. Eles detêm um arsenal de 884 mil armas. Os números são superlativos e já superam o efetivo de policiais militares da ativa e das Forças Armadas.

Em 2021, caçadores e atiradores registraram uma arma a cada dois minutos no país, índice que fez o número de adeptos das modalidades crescer 24 vezes em apenas seis anos.

Uma herança e tanto do governo Bolsonaro, que cumpriu à risca a promessa de flexibilizar o acesso ao armamento.

A principal justificativa dos defensores do armamento é que todo cidadão tem o direito de garantir a segurança de sua família em caso de assalto ou outra abordagem violenta.

Na prática, até o choro de uma criança pode resultar em uma carnificina. Em Teresina, dois cunhados, um deles atirador, se mataram após uma discussão que acabou em troca de tiros. Uma das balas alvejou a babá da criança. Ela ficou dias internada e morreu na segunda-feira (8).

Um dia antes, em Mogi Guaçu, interior de São Paulo, um atirador resolveu fazer justiça com as próprias balas após um desconhecido bater com o carro em seu automóvel. O motorista desavisado foi morto com um tiro nas costas.

Pelo país, o que não faltam são indícios de que o "liberou geral" tem beneficiado grupos criminosos que encontraram por vias legais um modo mais simples e mais barato para impor na bala a sua própria lei.

Em julho, por exemplo, um integrante do PCC com 16 processos na Justiça não teve qualquer dificuldade para obter seu registro de atirador com o Exército e comprar um fuzil e outras peças.

O Brasil que deixou aos poucos o estado de confinamento é um Brasil mais armado e com os ânimos à flor da pele. Esse combo de tragédia anunciada transborda nas casas e ruas das cidades, onde homens inconformados com a separação fuzilam o rosto de suas ex, ou nas áreas remotas da Amazônia, onde armas de caça encerram a trajetória de ativistas emboscados na selva como bichos.

Nada disso vai mudar enquanto tiver gente dizendo que facas de cozinha também matam e ainda assim é vendida sem restrição —como se alguém precisasse de pistolas para abrir melancias.

Nos últimos anos, o revólver virou item de devoção, material de escultura, calibre de registro partidário e símbolo de campanha política.

O resultado é um país que empoderou a necropolítica, fez da morte uma solução e assumiu que não existe mediação de conflitos se não for à queima-roupa.

Da pandemia para cá, saímos de um filme de apocalipse zumbi e entramos em um cenário de faroeste onde só sobrevive quem saca a arma primeiro.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL