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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

As redes sociais que conhecemos vão acabar. E isso pode não ser ruim

Cena do documentário "O Dilema das Redes" (2020) - Reprodução
Cena do documentário 'O Dilema das Redes' (2020) Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

11/08/2022 04h01

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Então é isso: as redes sociais que conhecemos acabaram.

Se não acabaram ainda, estão perto do fim.

Não é que vão morrer, explicam os entendidos. Vão virar outra coisa.

Pelo DataMinhaCasa, instituto de pesquisa e estatísticas baseada nos comportamentos dos habitantes da minha residência, as chances de essa mudança no mindset no Vale do Silício dar certo são razoáveis: dois dos três moradores (os dois habitantes de pata não contam) estão cada vez mais ativos nas redes. Mesmo (ou justamente porque) elas são cada vez mais entretenimento e menos sociais.

A mudança nos algoritmos é conhecida. Atropelados pelo TikTok, hoje a principal plataforma de vídeos curtos, os proprietários de Facebook e Instagram perceberam o risco da desatualização bater à porta e correram para se adaptar. Passaram eles também a priorizar dancinhas e pequenos esquetes em detrimento da verdade absoluta que seu tio tinha a dizer sobre as eleições no Brasil.

Por isso você tem recebido tanto material de pessoas e páginas que você não segue. Se você clicou é porque está dando certo. O algoritmo quer agora entender seus gostos e preferências para oferecer diariamente um cardápio de conteúdos do seu estrito interesse, mesmo que sejam produzidos do outro lado do mundo por quem você jamais ouviu falar.

É por isso também que você ficará, a partir de agora, cada vez menos exposto a textões e sequências de fotos da viagem ma-ra-vi-lho-sa da sua cunhada. O que não significa que vai estar imune a viver em um outro tipo de bolha.

Para a turma do Zuckerberg, era isso ou acabar na mesma vala comum onde jaz o Orkut.

A vida em rede, até aqui, é uma grande ideia que deu errado — não como negócio, claro, mas como ponto de encontro de ideias e interações.

Com ela, pudemos nos conectar com aquele amigo da escola que se mudou para os EUA ao fim do ensino médio. O duro não foi descobrir que ele agora faz parte da Associação Nacional do Rifle, mas conviver com suas postagens diárias posando como Rambo depois da malária.

Com o tempo, conexões como essas se deterioraram porque todos, de alguma forma, se tornaram produtores ou transmissores de conteúdo e opiniões. Produtores ruins, diga-se.

No Facebook, as postagens com mais chances de viralizar eram as que mexiam com os instintos mais primitivos das conexões mais próximas. O esgoto a céu aberto que correu foi alimentado por gabinetes do ódio, influenciou eleições e destruiu relações pessoais.

Em um efeito rebote, o Facebook transformou um simples botão de "aceitar amizade" em um portão alargado para falsas intimidades que só escamotearam vidas vazias e experiências humanas solitárias. Ali somos todos adictos em busca de um pouco de atenção e sequestro de recompensa baseado em likes — primeiro nas postagens, depois nas respostas invertidas que mandamos a quem ousou discordar da nossa verdade sobre o mundo.

No Instagram a aposta era o contrário: lá a felicidade era compulsória, atravessada por todos os filtros e resumida a uma piscina de borda infinita ao fim de um treinão monstro acompanhado da hashtag #DeHojeTaPago. Se o Facebook era o território da raiva, do medo e do ressentimento, o Instagram era a antessala da inveja.

Era como se aquele chato de galocha que contava vantagem na mesa do bar se multiplicasse em postagens capazes de atualizar os versos de Álvaro de Campos: "Não conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus amigos têm sido campeões em tudo".

Campeões, viajados, esportistas, aventureiros, famílias modelo, sommelier de música indie, frequentadores de bons restaurantes: todos em algum momento fomos chamados a interpretar personagens de uma grande farsa que não suportaria dois minutos de reencontro, sem ângulo preferido, na vida real. Como uma epidemia de baixa autoestima social, ninguém estava bem fora dos stories.

Inúmeros artigos científicos explicam como a positividade tóxica instagramável tornou todo mundo sujeitos insuportáveis que não se suportam. Mas talvez nenhum desses estudos tenha feito um resumo melhor da coisa toda do que o Documento Trololó do antigo humorístico Hermes e Renato sobre redes sociais. Sério, aquilo é uma profecia.

De uma forma ou outra nos tornamos pastiches do personagem Carlos Carré (o Joselito), que queria manter as pessoas bem informadas informando para elas tudo o que fazia na vida — inclusive no banheiro.

A anunciada diminuição nas redes das interações com pessoas mais próximas pode ser um alívio duplo.

Os produtores amadores de conteúdo, sem poder competir com influencers cada vez mais jovens e profissionalizados, já não terão razão para esconder a barriga e postar para o mundo a sua projeção fantasiosa de realidade. E quem consome, mesmo sabendo que está o tempo todo diante de uma grande farsa, pode guardar sua inveja da vida alheia para os profissionais e seus jatinhos particulares. Se é pra invejar, melhor pensar grande.

Talvez assim se dissipe aquele azedume contra parentes e amigos que parecem sempre viver experiências incríveis enquanto estamos ocupados esquentando lasanha congelada num sábado à noite.

Desde que fizemos nossa primeira conta no Orkut, a vida em rede nos modificou e se modificou para acompanhar novos contextos e demandas, sejam elas comerciais ou geracionais — o que quase sempre dá no mesmo.

Cada mudança criou problemas diferentes. Mas também algumas soluções.

Não sabemos para onde vão os usuários que agora não largam a tela inundada de vídeos curtos de famosos e desconhecidos. É provável que os artistas do TikTok e seus pastiches jamais respondam ou sequer visualizem nossas reações, produções próprias e pedidos de "me segue".

A vida em rede deixará de ser uma troca de interações. E o que será da geração que cresceu à sombra da urgência de ver e ser vista? Seremos cada vez mais receptores/consumidores unilaterais de conteúdo, como na TV? É provável.

Mas talvez, só talvez, seja mais interessante conferir o vídeo mais recente de uma página criada para te entreter do que saber o que seu primo deslumbrado jantou na lua de mel.