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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

De quando tive de explicar 'flopar' aos portugueses, por causa do BBB22

BBB 22: Jade Picon pergunta como lavar roupa para Laís - Reprodução/Globoplay
BBB 22: Jade Picon pergunta como lavar roupa para Laís Imagem: Reprodução/Globoplay

Colunista do TAB

26/02/2022 04h01

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Lá pelos idos de 1973, Chico Buarque sonhou que o Brasil, imerso na lama autoritária dos militares, cumpriria seu ideal e se tornaria um imenso Portugal. Escrevo essa coluna do Porto, no norte do país, e sem pestanejar posso afirmar que, dessa vez, o gênio da raça errou. É Portugal de 2022 que mais parece um pequeno Brasil.

São quase 200 mil imigrantes na terrinha. Chegamos ao ponto de ver motoristas de Uber, garçons e atendentes, diante do primeiro sinal do sotaque tupiniquim, perguntarem se os visitantes estão para ficar ou a passeio.

Artistas brasileiros de sucesso na cena nacional ocupam os outdoors nas grandes cidades, oferecendo ao público espetáculos inéditos e garantia de vida segura ainda impossível de se ter no Brasil. Sem falar na música brasileira, onipresente nos cafés, supermercados e academias, de tal forma que os desavisados, por instantes, correm o risco de acreditar que Deus acabou com o Atlântico e conectou o rio Amazonas ao Tejo de uma vez por todas.

A intensa troca entre os dois países faz com que as apostas do entretenimento nacional também se transformem em trunfos de faturamento e audiência por aqui. A bola da vez é o "Big Brother Brasil". No entanto, se é verdade que o interesse desmedido por reality shows é um fenômeno global, em um programa sem roteiro e falas pré definidas, as diferenças entre o português de Portugal e o "brasileiro" são um entrave.

Para pôr fim as barreiras, Ana Clara (ex-BBB e apresentadora) assumiu a tradução. Vira e mexe, na programação da TV Globo local ou no Globoplay, ela explica para os tugas expressões como "fogo no parquinho", "fulano é uma planta", "O Brasil tá lascado", entre outras. No entanto, nem eu e nem a apresentadora tínhamos ideia de que teríamos de explicar mais uma faceta do vernáculo aos inventores da língua. A dúvida dos portugueses é saber qual o real significado da palavra "flopou", usada com frequência para explicar o péssimo desempenho dessa edição do programa.

É consenso que o atual elenco do "Big Brother Brasil" não foi capaz de deixar ninguém colado às telas, como já aconteceu em outras edições. Mas foi nesse jogo que o abrasileiramento da expressão ganhou espaço no vernáculo nacional.

A expressão é mais um desses anglicismos da moda. Na língua da rainha, to flop, é usado para dar conta de quando algo não vai bem, se comporta de um jeito diferente do esperado, rateia.

No entanto, a maneira como nós usamos o verbo do inglês revela facetas importantes do funcionamento da vida digital e dos novos imperativos na produção de conteúdo. "Flopar" define a trajetória do reality global, mas também nos dá pistas sobre o entendimento da vida social fortemente marcada pela lógica dos algoritmos, das telas e das inovações tecnológicas.

Para início de conversa, flopa tudo aquilo que não tem poder de captura no mar de estímulos cotidianos, não mobiliza as emoções e não tem capacidade de gerar ainda mais interações nas redes. O sucesso de um produto ou conteúdo é medido, sobretudo, pelo "valor de conversa" que detém. Isto é, o quanto de debate, conversa, novos pontos de vista, embates e novas relações algo feito ou dito tem nas redes sociais ou na vida cotidiana.

A capacidade de reverberação de um assunto bombado (portanto, não flopado) é central para definição do valor de conversa. Um conteúdo bombado tem poder de se espalhar pelo tecido social como uma onda, ganhar novos significados com o passar do tempo, assumir novos contornos, até que obrigue a todos, querendo ou não, a participar do debate.

Diante deles, perdemos nosso direito de escolha de querer ou não saber de alguma coisa. Quando um novo viral (pode ser um novo comportamento, assunto-bomba ou dancinha besta do TikTok) se impõe, somos obrigados a saber de que se trata para continuarmos existindo no debate público. É como se, para existir como parte da vida social, precisássemos sempre saber para ser.

A edição anterior do "Big Brother Brasil" é um bom exemplo. Logo na primeira semana, as desavenças, crises de choro e brigas mobilizaram a sociedade brasileira de tal forma que gente que jamais assistiu a um único episódio do programa foi obrigada a se conectar. Seja no trabalho ou no sossego de casa, no boteco ou no restaurante mais chique da cidade, todos nós sabíamos e tínhamos uma opinião sobre os destinos do programa e de cada um dos seus participantes.

Assim como o reality show da TV Globo, qualquer novo conteúdo "não existe" mais a partir de sua produção ou lançamento. Ele só "existe", ou seja, só conquista seu lugar se tiver capacidade de gerar barulho, reverberar, produzir conversas no público-alvo.

Esse movimento é fruto do caráter plástico, precário, frágil e provisório de um mundo construído sobre um intenso processo de digitalização. Nas telas ou nas redes, a dinâmica da vida se constrói entre imagens e palavras. Falta-lhes a concretude, a existência material, o sólido, a independência em relação à percepção humana para existir. Com isso, quando algo não é capaz de gerar mais imagens e mais palavras, ganha uma existência precária, bamba, como se não estivesse ainda terminada. O conteúdo não morre, mas flopa.

Boninho, diretor do programa, vem tentando recuperar a vida do BBB22. Já fez de tudo. Diminuiu a comida, complexificou as brincadeiras, endureceu as regras e colocou novos participantes no jogo com a expectativa de ressuscitar o programa. Por ora, não adiantou. Com tantos problemas desde os primeiros dias, o público já se desconectou.

Ao que parece, "pau que nasce torto, morre torto", como ensina o ditado popular. Aos leitores portugueses, peço desculpas por mais uma expressão.

Essa a Ana Clara explica.