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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

De estrogonofe do Dona Onça ao McDonald's: que cancelem os russos!

O presidente russo Vladimir Putin - Reuters
O presidente russo Vladimir Putin Imagem: Reuters

Colunista do TAB

10/03/2022 04h01

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"Já pensou se cancelam o Renato Russo?".

Quase morri de tanto rir quando deparei com esse texto num tuíte. Diante do acirramento do confronto em terras ucranianas e o crescimento da hostilidade a toda e qualquer coisa de origem russa, o jovem deixou claro sua preocupação com o futuro da obra do cantor da Legião Urbana.

Poucos minutos depois, tive outra crise de riso com o balacobaco no Twitter por uma reportagem aqui do UOL. O Bar da Dona Onça, tradicional restaurante do centro de São Paulo, reduto de hispters, coxas e do underground local, havia decidido retirar um pratos mais pedidos do cardápio, o estrogonofe, "em repúdio à guerra que o governo russo está provendo na Ucrânia, matando e desabrigando milhões de inocentes". Menos de 24 horas depois, com a grita nas redes sociais, a dona do bar decidiu mantê-lo e doar a renda das vendas ao projeto "Pão do Povo da Rua".

Por essa, nem Putin esperava...

A intenção de Vladimir Putin de invadir parte das ex-repúblicas soviéticas e fazer do seu país uma grande potência (Make Russia Great Again) são antigas. Em 2015, numa uma entrevista com o cineasta norte-americano OIiver Stone (disponível aqui), o político deixou clara a sua preocupação. Estava desgostoso de ver a conversão de antigos aliados ao convescote da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), reclamava do interesse dos norte-americanos de posicionarem escudos antimísseis nas fronteiras e da falta de transparência dos mesmos quanto às próprias intenções na região.

Desde então, parou, arrumou a casa e se preparou para a guerra. Aumentou as trocas comerciais e a venda de petróleo e gás para a China para se proteger de possíveis sanções econômicas sobre os pilares de sustentação da economia russa; criou um sistema de cartão de crédito nacional, com o intuito de se proteger do boicote de empresas como Visa, Mastercard e American Express e manter a classe média russa consumindo; dobrou e diversificou as reservas internacionais do país para proteger a economia russa do chumbo grosso que viria.

Putin é um homem de um outro tempo. Ele tem consciência do caráter híbrido das guerras atuais, mas não levou em consideração as múltiplas camadas em jogo. O presidente tem plena consciência de que, para além dos tanques, caças e mísseis, hoje os campos de batalha também se dão na economia, na guerra de informação e nas frentes digitais.

Talvez não tivesse consciência da capacidade de contaminação do combate para outros tantos campos do cotidiano como o consumo e a atuação o posicionamento de grandes corporações. Putin provavelmente não leu Canclini e deve achar que o papinho de ESG (Environment, Social e Corporate Governance) é mimimi.

Há tempos, Néstor Canclini, sociólogo argentino e pensador da latinidade, nos lembra que, cada vez mais, consumo e cidadania são dois campos imbricados. Estão juntos e misturados. Com o esvaziamento das esferas políticas e a consciência compartilhada de que as decisões da nação operam um mundo à parte da vida cotidiana e dos desejos dos cidadãos, é através do consumo de bens comuns que construímos vínculos com os outros, tomamos consciência dos direitos e deveres e nos posicionamos diante do mundo.

O repúdio aos produtos de origem russa funciona como uma marcação de posição, um ato prático e político diante dos absurdos da guerra. Se os políticos precisam lidar com os constrangimentos diplomáticos, pressões internacionais e com os impactos de qualquer decisão no médio e longo prazos, nós, cidadãos comuns, vemos no não-consumo, no boicote, a possibilidade de afirmar o próprio ponto de vista. É como se cada decisão de compra ou eterna dúvida entre o crédito e o débito funcionasse como um voto sobre os rumos do mundo no pleito internacional.

Ao contrário das estratégias militares ou dos gráficos econômicos, as sanções fragmentárias do consumo são terríveis porque é difícil prever a extensão, a forma como se espalharão e por quanto tempo, mesmo depois do fim da guerra, se elas se manterão como verdade na mente dos consumidores.

Em Nova York, restaurantes de comida russa vivem tempos difíceis. Os clientes não se cansam de cancelar reservas já feitas, de fazer campanhas nas redes sociais pelo boicote e estimular uma onda de comentários depreciativos nos sites de resenhas. Não são poupados nem os estabelecimentos tocados por ucranianos. Se a comida é russa, é russo. Do mesmo jeito, hordas de consumidores se negam a tomar vodca russa ou com nome russo. Aqui na Europa, para vender o celebrado drinque "moscow mule", os donos de bares e restaurantes já o chamam de "kiev mule".

A questão é séria e a maneira com que o movimento ganha significados revela as múltiplas facetas da ofensiva. No noroeste da Inglaterra, estivadores de um porto se recusaram a descarregar um navio-tanque com petróleo russo e exigiram do governo que se negasse a comprar o produto dos inimigos de ocasião. O imbróglio só se resolveu quando as autoridades provaram que a embarcação enfrentara uma longa viagem pelos mares e deixou os portos russos antes do início da invasão. Portanto, estava tudo liberado.

Putin também não esperava as sanções de grandes organizações internacionais. Nos últimos dias, para além do estrogonofe do Bar da Dona Onça, já devidamente garantido no menu, o McDonald's decidiu fechar temporariamente as 850 lojas no país. A Zara e a H&M também não devem vender nem uma blusinha nas terras do Kremlin. E as gigantes de tecnologia brecaram o compartilhamento de informações, a compra e venda nas lojas virtuais e as interações nas redes sociais.

As medidas são fruto das pressões dos investidores. De uns tempos para cá, as empresas com capital aberto nas bolsas do mundo todo são obrigadas a investir em práticas de responsabilidade social, cuidado com o meio ambiente e governança corporativa para enfeitiçar os endinheirados a comprarem ações de suas empresas (é o tal do ESG). O medo de ver o preço de suas ações cair afugentou as grandes organizações da Rússia. Mais um exemplo da intensa mistura entre negócios, consumo e política.

No mundo de hoje, as guerras não combinadas com os russos ou com os outros saem mais caras do parecem. Para além do custos humano, social e dos mísseis trilhardários jogados de um canto a outro como aviãozinhos de papel, nunca se sabe até os impactos podem ir. Em tempos de junto e misturado, as reverberações das próprias decisões são incalculáveis.

Já se especula por aí que as editoras de livros precisam se preocupar: Depois do McDonald's, do moscow mule e do petróleo, Jean-Jacques Rousseau pode ser o próximo cancelado.