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Trombadas

As reconstruções de Arnold

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

17/06/2021 04h01

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Passei três meses caminhando e comendo do lixo. Três meses louco. Estava louco e sozinho. Não havia mais casas. As pessoas faziam tendas. Eu não tinha nem tenda. Então fui andando pelo litoral para oeste. Queria me afastar de Porto Príncipe. Mas o que eu via era igual em todo lugar: destruição e gente morta. Não falei com quase ninguém nesses três meses. Todas as pessoas tinham sofrimento, por que se preocupariam com o meu? Só uma vez pedi ajuda. A voz nem saía na hora de falar. Pedi comida aos militares brasileiros. Eles disseram que no Brasil cabra e porco não são de ninguém, ficam na rua e as pessoas podem pegar. Que eu deveria procurar um porco ou uma cabra pra fazer churrasco. Os militares brasileiros só faziam isso lá, churrasco.

Quando cheguei em Gressier, resolvi voltar. Andei 30 quilômetros tudo de novo, no sentido oposto. Aí parei na frente do que tinha sido a minha casa e enxerguei um pouco adiante uma pessoa toda de branco. Um velho. Ele desceu do cavalo, que era branco também, e veio falar comigo: "Arnold, vende esse carro, vende esse terreno e sai do Haiti". Ele disse isso e desapareceu. Assim, puf. Depois encontrei esse velho de novo, uma vez em Quito e outra aqui em Carapicuíba, perto de onde eu moro agora.

Eu era o filho mais novo, sabe? E o filho mais novo faz muita coisa errada. Faltava um ano pra terminar a escola clássica e ir pra faculdade. Meu pai já tinha falado assim: "Se você estudar bastante e fizer tudo direitinho eu mando você aprender engenharia civil no Equador". Eu queria muito ser engenheiro. Acho que ainda quero. Meus três irmãos mais velhos estudavam medicina em Cuba. E nesse dia que aconteceu essa coisa eles tinham vindo nos visitar. Estava a família toda em casa. Pai, mãe e nós, os sete filhos. Eu tinha três irmãs também. A nossa mãe era dona de uma farmácia. E nosso pai, de uma loja de carros usados. Ele trazia de navio dos Estados Unidos e revendia em Porto Príncipe. Vivíamos bem. Escola privada. Quase todo ano íamos de férias pra Havana, Punta Cana, Panamá, Equador. Além disso, eles alugavam o andar de cima da nossa casa para três casais.

TAB Trombadas - O haitiano Arnold Joseph, o estudante de engenharia que perdeu tudo no terremoto  - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Eu tinha saído da escola às duas da tarde, mais ou menos. Almoçamos e os irmãos mais velhos foram pro quarto descansar. Eu e as irmãs ficamos estudando com nosso pai. Ele colocava exercícios na lousa e nos mandava fazer. Depois sentava do nosso lado pra corrigir. Eu não gostava. Preferia estar na rua. Nesse dia, num momento em que o nosso pai estava ajudando as irmãs com os exercícios, aproveitei e saí. Abri o portão bem devagarinho pra ele não ouvir. Da calçada vi quatro crianças jogando bola de gude ali na frente e pensei: "Vou lá jogar também".

De repente a terra começou a dançar. Muito forte. Logo ficou tudo pó. Não se via nada, só se escutava. Pessoas gritando, todo mundo gritando. Comecei a gritar também, a pedir perdão e a chamar Deus. "Perdão! Perdão! Perdão, meu Deus!" Meu pensamento era que Jesus estava voltando, porque todo haitiano cresce ouvindo que Jesus vai voltar. No meio daquele pó e daqueles gritos, eu achava que era isso. Mas não era.

Não sei quanto tempo durou. Uns dez minutos tudo balançando? Mas o pó só baixou depois de uns 40, eu acho. Enquanto estava pó eu corria sem enxergar muita coisa. Batia em outras pessoas que também corriam, em carros parados. Era muito muito muito grito. Quando acabou o pó e ficou mais claro eu vi e até hoje não acredito no que vi. As casas da rua não existiam mais. A nossa também. Tinha caído com a minha família inteira dentro. Todos mortos.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Foi aí que saí andando. Estava louco. Depois de três meses, com o espírito mais normal, voltei e me instalei no que tinha sido o nosso quintal. Com quatro paus e um pano grande ergui uma tenda. Fiquei lá sem saber o que fazer. O carro do meu pai estava intacto, um Nissan Pathfinder. O nosso poço também.

Eu usava a água dele pra beber, tomar banho e lavar a minha roupa, que era a mesma desde o dia do terremoto. Vesti a mesma roupa por quase dois anos. Aí vieram uns caminhões com guindaste e começaram a carregar tudo. Disseram que a ordem era limpar os terrenos. Contei onze corpos sendo retirados do lugar onde ficava a nossa casa. Não teve funeral, nada. No país inteiro era muita pessoa morta. Eles pegavam de caminhão e levavam para um lugar distante, jogavam num buraco bem grande. Não tinha como colocar no cemitério.

Depois de um tempo passou uma organização internacional perguntando quantos eram na família: nove. Quantos sobreviveram: só eu. Quais os bens: o terreno e o carro. Quais documentos tem: nenhum. Refizeram meus documentos. Eu chorava todos os dias. Lembrei do velho de branco e decidi vender o carro e o terreno. Vendi o carro muito barato pra um voluntário estrangeiro: US$ 2.500. Valia US$ 15 mil. No terreno peguei US$ 1.300. Então finalmente eu consegui pensar em alguma coisa: ir embora.

Fui na embaixada do Equador e perguntei como fazia pra viajar pra lá. "Não precisa de visto. Compra uma passagem, reserva um hotel e pode ir." Comprei a passagem por US$ 600 e reservei hotel para uma semana, US$ 50 a diária. Quando cheguei em Quito, o taxista me levou pra longe, endereço diferente, pra me roubar. Era um lugar bem vazio. Ele parou o carro, vieram outras pessoas e começaram a pegar as minhas coisas. De repente, do nada aparece um monte de carro policial. Vários. Não sei como souberam. Prenderam os ladrões e eu não perdi nada. E naquele lugar vazio, sem ninguém, sem carros, sem pessoas, lá na frente estava o velho que eu tinha visto em Porto Príncipe. De roupa branca, barba branca, encostado assim num poste. Dessa vez estava sem cavalo e não falou comigo. Até hoje não sei quem ele é.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

No Equador eu trabalhava em uma marcenaria e à noite ia pra faculdade de engenharia. Ganhava US$ 40 por semana e pagava US$ 10 no aluguel de um quarto com banheiro. Era barato viver lá. Fiquei três anos. Aí ouvi que no Brasil dava pra ganhar até US$ 500 por mês. Então eu vim. Cheguei na Copa de 2014 com US$ 800 e só me comunicava pelo Google Tradutor. Mas aí mudou a política e ficou ruim. Péssimo, pra falar a verdade. Faz sete anos que trabalho no Brasil e nunca fiz mais do que R$ 1.500 por mês. Mesmo assim, guardo pelo menos R$ 500. Não bebo, não fumo, não saio. Só gasto com comida, roupa e aluguel. Não passo vontade de nada, só de estudar, fazer faculdade. Mas acho que não vou conseguir mais. Ficou tudo muito caro, tudo muito pobre e muito racista. Uma época fui trabalhar de pedreiro em Santa Catarina. Balneário Camboriú. Não aguentei nem um mês. Eles são muito, muito, muito racistas lá. Voltei pra Carapicuíba, trabalhei em padaria, pizzaria, churrascaria. Já pensei em mudar para a França. Ou para Portugal. Mas continuo aqui.

Eu gostava de jogar futebol, ouvir rap francês. Agora não gosto mais de coisa nenhuma. Não tenho desejo nenhum. Desde 2010 estou por minha conta. Nunca mais morei com alguém. Fico em casa sozinho quando não estou trabalhando. Às vezes sonho que estamos todos juntos, pai, mãe e irmãos num lugar bonito. Parece um parque. Todos felizes, brincando, rindo bastante. Aí eu acordo e me sinto triste o dia inteiro. Então todas as noites eu vou dormir torcendo pra não sonhar com nada.

Em 2012 eu tentei voltar pro Haiti. Desde que estou fora mando dinheiro para lá, por aplicativo. Fica numa conta no meu nome. Consegui construir uma casinha e pus pra alugar. Eu mesmo desenhei o projeto. Aí cheguei em Porto Príncipe pensando em abrir um mercadinho, ou um restaurante. Mas não deu certo. Muita gente tinha saído do país. E quem ficou estava sem dinheiro pra gastar. E eu também lembrava muito do passado. Numa tarde vi um pai jogando bola com o filho na rua e percebi que não suportaria mais viver no Haiti. Comecei a chorar, fui chorando pra casa, chorei até dormir. Decidi tentar mais uma vez o Brasil.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Arrumei serviço numa padaria. Começava às cinco da manhã. Um dia o chapeiro faltou e me pediram para dobrar até as dez da noite. Eu falei "tudo bem". Era quase onze quando eu terminei de lavar a chapa e máquina de café. Deixei tudo limpo e arrumado no balcão. Avisei meu chefe que estava indo embora descansar e ele me disse: "Mas você vai largar o chão sujo igual um chiqueiro do seu país?" Voltei pra casa chorando, perguntando por que estava passando por isso. Aí, de novo, o velho de branco apareceu na esquina. Quando tentei chegar perto, sumiu. Eu não sei por que ele vem e vai desse jeito. Não consigo entender. Nesse dia um cachorro branco me seguiu até em casa. Abri o portão, ele atrás de mim. Quando me virei pra fechar, cadê o cachorro? Puf.

Uma vez por semana eu vou à loja maçônica. Lá é bom porque não sabem nada de mim, posso ser igual aos outros. Meu pai era maçom e do vodu. Eu achava as duas coisas meio diabólicas e entrei para a Igreja Adventista. Depois de tudo isso, do que virou a minha vida, senti vontade de agradar o meu pai, honrar o nome dele, e comecei a me interessar pela maçonaria também. Não tem nada de diabólico. A gente aprende a trabalhar a nossa pedra bruta, que é amar o próximo, mesmo quem nos faz mal. Me sinto menos sozinho e um pouco mais protegido lá. Uma vez, andando perto de casa, fui cercado por quatro homens em duas motos. Queriam roubar meu celular. Aí soprei neles umas palavras que aprendi na loja e eles não conseguiam mais me ver. Eu estava bem na frente deles, mas não me viam. Voltei pra casa tranquilo. Os mestres da maçonaria dizem que um dia vou entender tudo. Mas preciso me desenvolver ainda.

Enquanto isso vou passando os dias. Agora tenho dois empregos. De manhã e à tarde numa churrascaria, à noite numa pizzaria. Um ano e meio atrás me tornei pai de duas menininhas. Gêmeas. Mas o pai da minha namorada pediu minha permissão pra levar as bebês pra Miami, onde ele mora. São haitianos também. Ele disse que o Brasil não está bom pra criança crescer. Eu concordei e dei minha permissão. Sinto muita saudade, choro, penso nas meninas todos os dias, mas é melhor eu sofrer do que elas. A mãe delas montou um salão de beleza lá e ficou de me mandar passagem pra eu ir visitar. Ela quer que eu mude pra Miami também, mas não tenho mais força pra começar tudo do zero outra vez. Então estou economizando pra montar uma pizzaria delivery aqui. Mas as coisas continuam difíceis. Faz onze anos que minha vida virou de ponta-cabeça e nunca mais melhorou, nunca mais foi nem perto de como era. E eu nem entendi por quê.

Outro dia fui tirar carteira de motorista. Paguei adiantado. Só que passou um tempão e eles não agendavam aula, prova, nada. Fui lá reclamar. Me disseram assim: "Por que você não tira carteira no seu país? Vocês pretos vêm fazer o que aqui? Já está tudo ruim e vocês deixam ainda pior". É isso. Em alguns aspectos o Brasil consegue ser pior que o Haiti. Na autoescola me devolveram só a metade do que eu tinha pagado. As pessoas me dizem pra ir na Justiça, que posso receber a outra metade e mais um pouco de multa, indenização, essas coisas. Mas não se deve brigar por causa de dinheiro. Com ninguém. Ouça o que eu estou dizendo. As pessoas devem brigar só por uma coisa. Uma coisa e nada mais: para salvar suas almas. Fora disso não tem nada.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Arnold Joseph, 30 anos

Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e ouço. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.