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Trombadas

Os bravos pezinhos de Goreti

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

19/05/2022 04h01

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Faz uns três meses, perdi a paciência e coloquei essa plaquinha aí:

Medalhas e troféus
Conquistas da Dinorá

Porque cansei de ver as pessoas entrarem na loja, olharem a vitrine e virarem pra um dos meninos do balcão: "Nossa, cara, você correu tudo isso?!" Mesmo se eu estivesse ali do lado, era com os homens que falavam: "Rapaz, esse tanto de medalha é seu? Parabéns, hein, meu!". Ai que ódio. Nunca perguntaram QUEM FOI que ganhou as medalhas. Presumiam que tinha sido um homem. Aí falei: peraí que vou acabar com essa festa. Mesmo assim tem gente que continua, pois acha que Dinorá é homem. Então tô pra bolar um outro jeito de deixar mais claro que essas conquistas são minhas, da mulher aqui, ó, e não do zezinho ou joãozinho. Só que tem uma confusão aí, porque meu nome não é Dinorá, é Goreti. Eu te explico melhor esse negócio, só um minutinho.

— Benhê, dá uma olhada na loja que eu vou conversar com o rapaz.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

O Benhê é meu marido. Toninho. Estamos juntos há 45 anos. Toninho pro resto, Benhê pra mim. Então. A loja é que se chama Dinorá, tá na fachada, em homenagem à nossa filha mais velha. Abrimos quando ela nasceu, em 1987, pra fazer carimbos, brindes, chaves, xerox. Mas desde o começo a freguesia confundiu, achou que Dinorá era a dona. Durante um tempo, até que eu tentei desfazer o mal-entendido, mas não funcionou e larguei mão. Todo mundo aqui me conhece por Dinorá. No fim é até bom, porque um dos tratos que eu tenho com o Benhê é de não falar de trabalho em casa. Jamais! Então, aqui dentro eu sou Dinorá e lá fora, Goreti. Nas corridas, Goretinha, por causa desse meu tamanho todo que você pode ver.

Mas deixa eu te falar. Quero te pedir pra não colocar no papel o meu nome junto da palavra idosa. Tenho 65 anos, não escondo de ninguém, mas idosa é de lascar. Eu vou viver até os 120, então tô só na metade do caminho. Quando eu passar dos 100 talvez eu deixe você escrever sobre a idosa que corre ultramaratona. Antes não. Agora, o "senhora" pode dispensar sempre. Isso é bobagem. O maior sinal de respeito é a gente lidar com qualquer pessoa de igual pra igual, não se colocar abaixo dela dando esses tratamentos de senhor e senhora. Pra mim todo mundo é você. E olha que levei muito tabefe por causa disso. Nós éramos dez irmãos e eu, desde criança, a única que se recusava a chamar meu pai de senhor. Eu falava "você" e lá vinha a mão dele na minha cara. Pra ele era uma afronta. Mas acho que eu nasci pra afrontar mesmo.

Sou de Assis, no interior, e vim menina pra Osasco. Meu pai comprou um terreno, construiu uma casinha de madeira e um bar. Minha mãe lavava pra fora e a gente comia mingau de fubá. Fubá doce, fubá salgado, fubá com abóbora, fubá com chuchu, fubá com qualquer coisa que ela colhia na horta do nosso quintal. No primeiro ano todinho do colégio eu fui descalça, porque não tinha sapato. Meu pezinhos balançando debaixo da cadeira, eu sentia eles frios, frios, enquanto escrevia e desenhava na cartilha. Hoje se você for na minha casa vai contar uns duzentos pares de sapato, um mais lindo que o outro, tudo salto 15, tamanho 33. Só uso outro tipo de calçado, tênis, pra treinar e correr. De resto, sou a rainha do salto 15. Acho muito elegante. Não é coleção não. É pra usar. Eu compro e saio da loja com eles no pé. Deusolivre me acontece alguma coisa entre o shopping e a minha casa. Quem vai usar meu sapato novo? Eu não deixo nada pra depois, não. Tenho urgência. Às vezes acho que meu cérebro saiu com ligações de neurônio a mais, que davam pra umas três mulheres, sei lá. Tem essa gíria aí, né?, "tô no corre". Eu não tô no corre, querido. Eu sou o corre.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Num dia como hoje, vê, nem consegui trocar a roupa do treino que fiz de manhã. Eu treino seis dias por semana na USP, num deles puxando um pneu pela cintura. Quase sempre eu consigo tomar um banho e trocar de roupa antes de pegar no batente. Hoje é que não deu. Sim, tem bastante trabalho na loja, mas o Benhê me ajuda, não é esse o problema. O enrosco é que eu quero estar no comando o tempo todo. É um terror isso, não consigo mudar, não sei por que eu sou assim. Tem gente que leva a mal, mas o que eu posso fazer? Ah, não, culpa eu não sinto. Esse negócio de culpa inventaram pra manter a gente na rédea. Coisa da igreja. E eu detesto igreja. Até cerimônia de casamento eu evito. Em Deus eu creio, mas igreja me dá preguiça. Quando eu tinha sete anos, fui me confessar e perguntei pro padre: "Padre, na missa você fala de marido e mulher, de família, mas por que você não é casado?" Foi um sururu. Ele abriu a cortininha do confessionário, saiu bufando, me deixou lá sozinha e mandou chamar a minha mãe. Ara!, ninguém me encilha, não. O bom é que o Benhê se habituou com esse meu jeito. Deus me mandou a tampa certa, encaixe perfeito. Falo pra ele: "Benhê, eu sei que você me ama, porque ficar esse tanto de tempo do meu lado não deve ser fácil".

— Verdade, Toninho?

— Lógico! É amor pra mais de metro. Um metro e meio, pra ser preciso. Se ela estiver de salto 15 dá um pouco mais.

E sabe o melhor? Ele me conheceu assim e nunca quis me mudar. Como foi? Xi, Benhê, vou contar pra ele. Na época eu trabalhava numa fábrica de lonas aqui no Butantã, onde fica a nossa loja e onde moramos hoje. Minha roupa do dia a dia, roupa normal, era decotão nas costas atééééé, você sabe, até o limite, aí minissaia de quatro dedos de comprimento que a minha mãe costurava pra mim e o bendito salto 15. Eu passava de ônibus e duas coisas aconteciam. Na hora de pagar a passagem, eu tirava a marmita da bolsa pra pegar o dinheiro e o pessoal já fazia gracinha: "Aí, marmiteira!". Eu nem ligava, porque estava concentrada na rua. Queria ver passar o bonitão pensativo de cigarro na boca. Foram meses olhando sem ser vista. Um dia desci do ônibus e fui atrás, até a loja de móveis onde ele trabalhava. Fingi ser uma cliente, já pintou aquele clima e aqui estamos. Dois filhos, três netos, casa na praia, sítio, sempre correndo.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Não, correr o Benhê não corre. Ele prefere fumar. Mas está comigo em todas, é o meu apoio antes, durante e depois das provas. Ele lava o meu tênis, arruma a minha mochila, faz as compras, abastece a van, estuda o caminho até o local da prova, o Benhê organiza tudo, tudo, tudo. Eu só levo o meu corpo e a minha adrenalina. Aí eu vou correndo e ele vem atrás de mim, dirigindo a van. Quando quero alguma coisa, abano no braço assim, ele emparelha comigo. Benhê, laranja. Ele me passa uma laranja. Benhê, isotônico. Ele me passa o isotônico. Benhê, um leitinho quente. À noite, quando a gente dá uma parada, eu descanso e ele cozinha. Tem corrida que, numas partes, os carros de apoio não entram e o Benhê precisa contornar e me encontrar lá adiante, 30 quilômetros depois. Ele prepara uma mochilinha pra mim e eu sigo sozinha. Como eu fico? Aflita!

Ah, comecei 20 anos atrás, quando uma amiga me chamou pra caminhar na praça. No segundo dia achei chato só andar e comecei a correr. Fui indo. Participei de tudo quanto é prova de asfalto, fiz e refiz várias vezes, aí comecei a achar chato e fui pra montanha. Corri todas as que existem por aí, até na Patagônia, enjoei também e cheguei na ultramaratona. Depende da prova. Tem umas de 150 quilômetros, outras de 200 quilômetros. É uma delícia. Barro, ribanceira, precipício, reta, curva, tombo, pedra solta, flor, espinho. Tenho 60 horas pra completar, mas não estou competindo nem desafiando ninguém. Meu único desejo é chegar.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Ultramaratona é uma coisa infinita e profunda. Você olha pro que já correu e não vê o começo. Olha pro que ainda tem que correr e não vê o fim. Só uma coisa no que pensar: você. Ali não preciso comandar nada, liderar nada. Só sentir — o que tá ao meu redor, que é lindo, as paisagens são maravilhosas, e também o que tá dentro de mim. Uma vez tentei correr ouvindo música no fone de ouvido, mas percebi que perdia o som do meu tênis batendo no chão. Aí não dá. Sabe por quê? Aquela batida constante, ritmada, mesmo vindo de um tênis de 600 paus, às vezes sozinha naquelas lonjuras que eu nem sei onde, aquele som me conecta com a menininha de pezinhos frios balançando embaixo da cadeira da escola. Você desculpa se eu fico emocionada, mas é que a corrida até aqui foi dura. Tenho orgulho do que a gente conquistou com nosso trabalho. E pra correr bem a gente não pode soltar a mão da criança que a gente foi.

Ai, ufa!, pausa pra gente pegar fôlego. Vamos tomar um suco? E que rumo que tomou essa conversa, hein? É sempre assim? Achei que fosse outra outra coisa. Mas vamos seguir.

Em janeiro desse ano eu não consegui terminar uma prova pela primeira vez na vida. Um ultra de 217 quilômetros em Minas Gerais. Parei com 190. Mas parei por causa da porcaria da ômicron, que me pegou em dezembro. Me detonou. Eu achei que ia dar, mas não deu. Maldita. Só que não aceitei, né? Ficar sem completar a prova? E eu lá nasci pra isso? Então, 15 dias depois o Benhê preparou tudo e a gente voltou lá. Rodamos 300 quilômetros na van pra eu correr os 27 que ficaram faltando. Sozinha, por mim. Ah, precisava. Eu não ia aguentar viver com aquela angústia o resto da minha vida. Mais 60 anos com aquela sensação, cê tá doido?

Eu já tinha completado essa mesma ultra em condições piores, no ano passado. Jesus Cristo! Aquilo foi duro. Faltando 21 quilômetros eu caí numa curva em descida. O pé foi pra trás, virou e eu, tum!, chão. Capotei. Aí levantei, nem bati o pó da roupa, e continuei. Mas com cinco minutos meu pé já estava deste tamanho. Acenei pro Benhê. Ele encostou a van.

— Benhê, enfaixa meu pé, que eu quero continuar.

— Tá feio, você não vai conseguir.

— Você me conhece.

— Tudo bem. O que você decidir eu tô do seu lado.

— Ótimo, então vamos, que eu quero terminar a prova.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

O Benhê passou pomada, enfaixou e eu fui. Chegou uma hora que não aguentava mais pôr o pé no chão e comecei a pular. Fui indo igual saci até o final. Demorei oito horas pra fazer os 21 quilômetros que faltavam. Normalmente eu levaria quatro. Se acontecia de sem querer bater o pé machucado no chão, era a pior dor que eu senti na vida. Porque dor de parto eu não tive a oportunidade de sentir: duas cesáreas. Esse negócio de que a dor fortalece é conversa mole de padre. Dor dói.

Quando cruzei a linha de chegada já tinha uma maca me esperando. O pé era uma bola preta. Me deram a minha medalha, que taí na vitrine, e me levaram pro hospital. O médico falou que, se eu tivesse parado, o conserto ia ser mais rápido. Como eu quis continuar, seis meses de recuperação.

— Ah, doutor, você não me conhece.

Em três meses eu já tava boa. Agora tô pesquisando uma ultra de mil quilômetros que quero correr no Rio de Janeiro. Claro que dá! Só preciso me organizar pra deixar a loja por dez dias. E do resto o Benhê cuida. Com ele comigo eu corro até Marte, Júpiter, Saturno, sei lá. Mas vou logo avisando, porque tenho quilometragem nessas coisas: podem tirar o zóio. Fui eu que vi primeiro, de dentro do ônibus, quase 50 anos atrás. O Benhê é meu. Não empresto, não vendo, não troco, nem compartilho.

Grata, a gerência.

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Maria Goreti Tavares de Souza, 65 anos

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro -- é fundamental parar --- e escuto. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.