Deserto Alimentar

Comida saudável mesmo é comida de verdade. Mas quem tem acesso a ela?

Maria Zélia Carneiro Silva, 62, costuma ir ao supermercado uma vez por semana. Na lista de compras: arroz, feijão, café, leite, ovos, entre outros itens, sem esquecer das bolachas recheadas e do achocolatado para o neto de 12 anos. Frutas e hortaliças? Só quando sobra dinheiro. “É difícil também porque ninguém em casa gosta muito e acaba estragando rápido”, conta.

Além da dificuldade econômica, barreiras físicas também atrapalham a jornada que leva ao hipermercado mais próximo. “Às vezes pego um ônibus para facilitar e costumo voltar de táxi, pois não consigo fazer a volta com as compras”, diz. Na Serra da Cantareira, na zona norte de São Paulo, as casas ficam em lugares altos. O local é repleto de ladeiras. É preciso andar por pelo menos 20 minutos até o estabelecimento com maior variedade de produtos do bairro, que abastece praticamente sozinho todos os moradores da região e do entorno da Vila Albertina.

Maria Zélia está em um deserto - mas no lugar da areia está o asfalto e o cimento. E a escassez é de comida de verdade. Trata-se de um deserto alimentar. O conceito, recente e complexo, define os lugares com difícil acesso a alimentos nutritivos - e que têm, como consequência, a diminuição do seu consumo.

Saara de pedra

Definir exatamente o que é um deserto envolve uma série de aspectos sociais e econômicos. Portanto, a distância geográfica não deve ser o único ponto a ser levado em consideração, já que não necessariamente as pessoas saem de casa exclusivamente para comprar comida - muitas fazem isso no caminho para algum outro lugar. “As definições são sempre arbitrárias. O que impede medições exatas é que cada pessoa tem uma ideia construída de bairro e território, depende da forma como ela se desloca, não apenas do lugar onde mora”, afirma Ana Clara Duran, doutora em Ciências e pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo), especialista no ambiente alimentar urbano do município.

Além da questão gastronômica, os desertos refletem questões de saúde pública e de desigualdade social. Regiões mais pobres e mais ricas têm acesso diferente a alimentos de verdade - o que impacta na qualidade da comida que consomem.

“Ouve-se muito que as pessoas em regiões mais afastadas da cidade e do país estão aumentando o consumo de comida processada, mas primeiro precisamos analisar a logística de distribuição para esses lugares, como está e se está chegando alimento fresco lá”, diz Ana Clara Duran.

Sua tese de doutorado analisou, entre outras coisas, a influência que a disponibilidade de mercados e restaurantes próximos de casa tem nas escolhas de consumo da população. A conclusão foi que moradores próximos de pontos com variedades de frutas as consomem mais - enquanto lugares com mais fast foods estão associados com maior consumo de refrigerante, açúcar, menor consumo de frutas e hortaliças. O impacto? Maior prevalência de obesidade entre os homens.

Segundo ela, é difícil saber por que a população masculina é mais afetada, mas algumas das hipóteses podem estar relacionadas ao maior acesso deles a vales-refeição, um efeito da desigualdade de gênero no trabalho formal. Por isso, estariam mais propensos a comer em restaurantes fast food - 26% dos homens comiam em restaurantes desse tipo ao menos uma vez por semana, contra 19% das mulheres. Além disso, há evidências de que as mulheres são mais atentas à informação nutricional.

O acesso à alimentação é um direito humano em si mesmo, na medida em que a alimentação constitui-se no próprio direito à vida. Negar este direito é, antes de mais nada, negar a primeira condição para a cidadania, que é a própria vida

Josué de Castro (1908-1973), médico, professor, geógrafo, sociólogo e político. Sua declaração foi usada no Plano Nacional de Alimentação e Nutrição (1999)

Um deserto pode surgir por diversos fatores, como falta de feiras ou de supermercados com variedades de produtos in natura. Além disso, há também a forte articulação da indústria de ultraprocessados na distribuição para o pequeno comércio, que consegue chegar em praticamente todos os pontos de venda da cidade. Isso pode explicar, por exemplo, o alto número de bares e mercadinhos em regiões mais afastadas que comercializam em sua maioria produtos industrializados e não possuem alimentos frescos. Em outras palavras: em muitos pontos de São Paulo, é mais fácil comprar um pacote de bolacha recheada do que uma maçã.

A premissa básica do Guia Alimentar da População Brasileira, lançado pelo Ministério da Saúde em 2014, é o consumo de uma maior quantidade de produtos in natura ou minimamente processados e a redução de alimentos ultraprocessados, sempre levando em consideração os hábitos alimentares de cada cultura. A OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda a ingestão diária de pelo menos 400 gramas de frutas e hortaliças, o que equivale, aproximadamente, ao consumo diário de cinco porções desses alimentos.

No almoço de cada dia na casa de Maria Zélia, o prato tem arroz, feijão, carne ou frango, às vezes algumas batatas fritas e, com pouca frequência, legumes cozidos, como cenoura ou chuchu: “eu preciso comer legumes porque a médica mandou, devido aos meus problemas de saúde. Mas sinceramente, não gosto muito”, afirma.

COMER DIREITO

Mais da metade da população está com peso acima do recomendado. A obesidade atinge 18,9% dos brasileiros. Nos últimos dez anos, os casos de hipertensão cresceram 14,2% e os de diabetes, 61,8%. Os dados, referentes a 2016, foram divulgados em abril de 2017 pelo Ministério da Saúde. Além disso, pela primeira vez na história, a atual geração corre o risco de viver menos que seus pais.

Se poucas décadas atrás a fome era o principal problema relacionado à alimentação, hoje há um cenário oposto acontecendo simultaneamente. Ao passo em que o combate à desnutrição continua sendo necessário, especialmente em grupos e regiões mais vulneráveis, os esforços de países e entidades do mundo todo agora se concentram na qualidade da alimentação.

O Direito Humano à Alimentação Adequada, o DHAA, está assegurado pelo artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), de 1948. Em 2010, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 64, que inclui o direito à alimentação no artigo 6º da Constituição Federal do Brasil.

O DHAA envolve a Segurança Alimentar, que significa pleno acesso à alimentação em qualidade e quantidade suficientes de forma permanente sem comprometer outras necessidades essenciais. Neste contexto, cabe ao poder público a execução de programas, políticas e ações que garantam a segurança alimentar da população.
 

Oásis de comida

“O deserto existe também na cabeça da gente”, diz Paulo Magrão, produtor cultural e um dos criadores da horta comunitária Cores e Sabores. O nome é inspirado no álbum “Cores e Valores”, dos Racionais MC’s, e diz muito sobre o projeto. Construída entre o final de 2014 e o início de 2015 em um antigo terreno abandonado atrás da Escola Estadual Presidente Café Filho, no Jardim Ipê, região do Capão Redondo, zona sul de São Paulo, a horta alimenta a equipe e as crianças da Associação Capão Cidadão com mais de 60 variedades de alimentos, incluindo frutas, verduras, plantas alimentícias não convencionais (as PANCs), e ervas medicinais.

A Capão Cidadão foi fundada há 13 anos e oferece cursos gratuitos de dança, karatê, reforço escolar e educação ambiental. Além de Paulo, outras 14 pessoas trabalham na horta, que aos poucos foi sendo integrada ao currículo da associação e da escola ao lado. “Tem criança que nunca viu um coentro, um mamão, ou não sabe que o amendoim vem debaixo da terra. O objetivo é multiplicar a ideia da questão alimentar para as crianças, embasada no Guia Alimentar da População Brasileira”, conta Paulo.

A equipe da horta observa que eles mesmos acabam percebendo a importância da boa alimentação e a incorporam no cotidiano. Diminuíram a quantidade de refrigerante e aumentaram o consumo de frutas e verduras, por exemplo. Além disso, os professores participam e aprendem junto. “Nesse processo a gente vê que os professores também estão distantes dessa educação”, afirma Jackson Ramos, técnico em meio ambiente que atua na horta.

Alimentação não é gasto. É investimento

Sônia Ribeiro, professora da EMEI Professora Dirce Zillesg Borges dos Santos

Na EMEI Professora Dirce Zillesg Borges dos Santos, localizada no Recanto Campo Belo, extremo sul da capital paulista, não só os professores como também as cozinheiras escolares (as populares “merendeiras”) participam ativamente da educação alimentar das crianças de 4 e 5 anos.

Em 2011, percebendo a grande rejeição dos alunos às frutas, legumes e verduras servidas nas refeições, a professora Sônia Ribeiro e a equipe da escola plantaram uma semente que literalmente traria muitos frutos: deram início a um projeto pedagógico que consiste em despertar o interesse pelos alimentos por meio da literatura infantil, ao mesmo tempo em que fizeram pequenas plantações de hortaliças em vasos.

No ano seguinte, os funcionários reformaram um espaço ocioso e construíram uma horta e um pomar, enquanto nas salas de aula os alunos ouviam e discutiam histórias como “O Grande Rabanete” ou “O Grande Urso Esfomeado e os Morangos Vermelhos” e eram apresentados a obras de artistas como Tarsila do Amaral e Aldemir Martins, que pintavam memórias afetivas de alimentos.

O projeto rendeu à escola o Prêmio Educação Além do Prato, realizado pela prefeitura em 2014, que visa reconhecer iniciativas de educação alimentar nas escolas das redes municipais e valorizar o trabalho das cozinheiras escolares. Vencedor da categoria “prato quente”, o arroz colorido é uma receita da avó de Sônia que mistura os grãos com cremes nas cores verde, rosa e amarelo, feitos com espinafre, beterraba e cenoura, respectivamente.

“Aqui no Brasil falta fazer nossas crianças saberem sobre os alimentos, ainda existe muito a cultura do desperdício”, conta Maria Aparecida, que reforça o cuidado com a comida mesmo com as dificuldades, principalmente de baixa remuneração, que enfrenta com todas as cozinheiras escolares, contratadas por empresas terceirizadas: “Cozinho todos os dias como se fosse para os meus filhos”, diz.

O MAIOR RESTAURANTE DO MUNDO

“A alimentação escolar é um dos veículos que garantem o DHAA”, conta Erika Fisher, ex-diretora da Codae (Coordenadoria de Alimentação Escolar da Prefeitura de São Paulo), órgão responsável pelo gerenciamento técnico, administrativo e financeiro do Programa de Alimentação Escolar da Cidade de São Paulo, que serve aproximadamente 2,2 milhões de refeições (e não merendas) por dia. Os pratos são elaborados com o objetivo de reunir todos os grupos nutricionais necessários para o desenvolvimento sociológico, biológico e psicológico dos mais de 900 mil alunos da rede municipal.

Em novembro de 2016, a cidade de São Paulo venceu o Prêmio Mayor Challenge, promovido pela Bloomberg Philanthropies, que busca iniciativas municipais para o desenvolvimento urbano sustentável. Junto de outras 290 cidades, a capital paulista concorreu com o projeto “Ligue os Pontos”, uma plataforma digital com intenção de aproximar os produtores rurais da cidade com os consumidores e potencializar políticas públicas com relação à agricultura local. Como prêmio, a cidade recebeu um aporte de US$ 5 milhões para implementação do projeto.

“As compras públicas têm um poder fundamental na ligação entre a alimentação, a escola, os alunos e os pais, estabelecendo bases para girar a economia local valorizando especialmente a agricultura familiar e evitando até mesmo o êxodo rural. O modelo feito em São Paulo está se tornando uma referência para cidades do mundo todo”, reforça Erika, que ficou na Codae até o início de 2016.

ASSINATURA DE COMIDA

Aproximadamente um quarto do território da cidade de São Paulo é rural. Na Ilha do Bororé, uma APA (Área de Proteção Ambiental) da Zona Sul de São Paulo, a ligação entre produtores e consumidores já existe e funciona de forma coletiva. “A gente fala de autonomia e não sabe plantar um pé de mandioca”, diz o permacultor e educador Jaison Pongiluppi, morador da ilha (que na verdade é uma península cercada pela represa Billings), onde o acesso é feito por meio de uma balsa.

Ele é um dos colaboradores da Ecoativa, um espaço sociocultural multidisciplinar de ecologia, turismo e educação, que iniciou no segundo semestre de 2016 um sistema de comercialização de alimentos orgânicos com o conceito de CSA (Comunidade que Sustenta a Agricultura). A ideia é sair do campo exclusivo do comércio e articular quem produz e quem quer consumir.

Funciona como uma “assinatura de comida”, onde os consumidores pagam mensalidades entre R$ 100 e R$ 120 e podem retirar todo sábado uma cesta com seis ou oito itens, colhidos horas antes. Os produtos variam conforme a época e incluem diversos tipos de frutas, hortaliças e PANCs, produzidos por agricultores da Cooperapas, uma cooperativa formada por cerca de 30 produtores familiares da Zona Sul, entre orgânicos e convencionais. Porém, como não existem feiras orgânicas no extremo sul da cidade, a produção deles costuma ir para lugares em regiões mais centrais, como o Instituto Chão e o restaurante Arturito, da chef Paola Carosella.

Mas o serviço, por enquanto, ainda é restrito. A implantação em grande escala de um sistema inteligente que promova a integração e o fortalecimento da agricultura familiar estão entre os muitos desafios que São Paulo tem para abastecer a população com comida de verdade.

Para Jaison, ambientes produtivos e com relações sustentáveis de produção e consumo devem ser pensados pelas bordas, por meio de políticas públicas: “a fome é um boicote do sistema”.

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