Diferenciados

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Capital da desigualdade

No mapa, Santana de Parnaíba se localiza na Grande São Paulo. Mas seu verdadeiro lugar é na área VIP do abismo social do Brasil: a cidade dos condomínios de luxo é também a líder do ranking nacional da diferença de renda dentro de sua população

Texto Rodrigo Bertolotto
Design Denise Saito
Fotografia Junior Lago

Vira-casaca

Seu apelido é "o berço dos bandeirantes", mas hoje bem poderia se chamar "a cama super king size dos ricos e famosos". Nos últimos anos, Santana de Parnaíba despertou do sono colonial de seu casario dos séculos 17 e 18 para virar uma cidade-dormitório de afortunados.

Com essa mudança, a cidade hoje acumula a maior renda per capita do país, mas também lidera o ranking da desigualdade, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

A partir da década de 1980, a expansão de condomínios de luxo sobre seu território quase rural criou um retrato de profundo contraste. Dentro dos muros altos com cercas elétricas e arames farpados, há uma utopia de gramados perfeitos, piscinas cristalinas, colunas de mármore e fileiras de palmeiras frondosas. Do lado de fora das portarias monitoradas 24 horas, desfila a realidade de desmatamento para novos empreendimentos, bairros sem água encanada e casebres em ruas de terra.

Quando o Brasil era colônia portuguesa, de Parnaíba saíram os bandeirantes Fernão Dias, Anhanguera e Domingos Jorge Velho, que aprofundaram as fronteiras do país atrás de pedras preciosas e de índios para serem escravizados.

Atualmente, quem agrega valor na região são magnatas da mídia, executivos de indústria e herdeiros do comércio varejista. E eles precisam de um exército de serviçais, que moram em loteamentos populares do outro lado da cidade. A piada local é que para cada Alphaville existe um Alfavela. Seria engraçado se não fosse trágico e emblemático.

As mulheres ricas... e as pobres

A jornalista Fabíola Gadelha, a piloto Débora Rodrigues e a apresentadora Jackeline Petkovic falam de suas rotinas como moradoras de Alphaville e da diferença de vida em relação a três habitantes de bairros pobres do mesmo município

A NOVA ALFÂNDEGA

Os residenciais de alto padrão foram erguidos sobre a antiga fazenda Tamboré, propriedade da família Álvares Penteado desde a época da monarquia. "Onde eu plantei muita cebola hoje só cresce mansão", resume José Alves de Oliveira, 86. Durante 20 anos (de 1955 a 1975), ele morou e trabalhou na fazenda do clã quatrocentão que foi compartimentada para abrigar os novos ricos paulistanos. Lá nasceram os quatro filhos de José. Hoje, o agricultor aposentado mora com a filha Ester, que vive de catar sucata na porta dos condomínios. Ela não consegue mais entrar no local em que nasceu. "Os seguranças olham torto quando a gente quer pegar algum entulho que está nas lixeiras de lá", se queixa a mulher de 49 anos, exilada em seu próprio município.

Eles moram em um bairro chamado Cristal Park. Apesar do nome pomposo, é uma área de casas mal-acabadas em ruas lamacentas à beira das águas hediondas do rio Tietê. O cenário é exatamente contrário na outra margem do rio, onde os novos loteamentos e suas alamedas asfaltadas como tapetes estão desertas à espera de palacetes que surjam como numa animação 3D imobiliária.

As portarias dos residenciais funcionam como autênticas alfândegas para outro mundo. A entrada de "serviço" sempre exibe maior fila que as cancelas dos "moradores" e "visitantes". Um pelotão de jardineiros, piscineiros, arrumadeiras e faxineiras se aglomera para se identificar e ter autorização de transitar pelas ruas públicas, mas de acesso restrito. O segurança, atrás da cabine blindada, ordena pelo comunicador eletrônico que o forasteiro deposite o documento em uma gaveta metálica. Depois pergunta aonde vai. Liga para a casa. Após confirmada a autorização, tira uma foto do intruso, caso não tenha cadastro.

Mendigos, catadores, afiadores, sorveteiros e qualquer tipo de andarilho são deportados logo na entrada. Em alguns condomínios, os entregadores de pizza passam depois de se identificar e comprovar que foram chamados. Em outros, param na fronteira, e só o produto passa. Até os recenseadores do IBGE tiveram que se identificar para perguntar aos habitantes de lá sobre suas rendas. Prefeito e vereadores só são admitidos se explicarem o que foram fazer ali.

A segurança de Alphaville, Tamboré e Aldeia da Serra segue o padrão de bairros fechados dos EUA, que por lá atendem pelo diminutivo de "condos". Quando a gigante norte-americana de tecnologia HP decidiu se instalar na região na década de 1970, seus altos funcionários pediram à construtora Albuquerque-Takaoka, responsável pelo parque industrial de Barueri, para construir um condomínio residencial semelhante ao da sede mundial da empresa, em Sausalito, na Califórnia. Surgiu o residencial Alpha 1, com uma infraestrutura de urbanização e serviços que atraiu cada vez mais moradores de classe alta para a área.

Resultado: os bairros murados transbordaram a divisa de Barueri e deslizaram Santana de Parnaíba adentro. A ex-apresentadora infantil Jackeline Petkovic, 34, foi testemunha disso, afinal, mora desde sete anos de idade na cidade. "De fim de semana, a gente pegava trilha até uma cachoeira", relembra. "Tenho na mente até hoje o cheirinho de eucalipto que vinha da mata quando eu ia para a escola. De repente, virou um grande condomínio e nunca mais vi a cachoeira." Jackeline habitava no residencial 4 e hoje recuou para o de número Alpha 12.

Cidades que fazem a diferença

Uma boa renda per capita quase sempre esconde a desigualdade num município no qual os ricos puxam essa média para cima. Mas a diferença entre média e mediana escancara o desequilíbrio

Coisa de grife

O modelo de esconderijo para os endinheirados dos Estados Unidos se espalhou pelo mundo todo. Na Argentina, os "country clubs" ao norte de Buenos Aires são reservas artificiais para quem sobreviveu a tantas crises econômicas. Os assentamentos judaicos na Cisjordânia são condomínios que avançam sobre os campos palestinos. Na Arábia Saudita, são enclaves em que os estrangeiros podem praticar seus "hábitos ocidentais". Já na África do Sul, o revelador é que os "security villages" se multiplicaram com o fim do regime de segregação racial.

No Brasil, o modelo de fortaleza habitacional se replicou em todo o território. Alphaville virou uma grife imobiliária com unidades em mais de dez Estados. Tem Alphaville até em Brasília, que está na escolta de Santana de Parnaíba como a cidade mais desigual do país. Além do abismo entre o Plano Piloto e as cidades-satélites, o Distrito Federal virou cenário de dezenas de bairros fechados em áreas como Lago Sul, Águas Claras e Bairro Noroeste, contrariando ainda mais as ideias urbanísticas que inspiraram sua criação.

No top 10 da desigualdade de renda, outras três cidades concentram muitos condomínios de luxo: Niterói-RJ (3ª do país), Nova Lima-MG (4ª) e Valinhos-SP (7ª). Esse ranking mostra como uma alta renda per capita pode se esconder por trás uma grande diferença entre pobres e ricos dentro de um mesmo município.

Com dados do IBGE, Santana de Parnaíba tem a maior diferença nacional entre a média de rendimentos (R$ 2.933) e a mediana (R$ 1.000), em termos absolutos. Na prática, a comparação mostra que, no município com a maior renda por pessoa no Brasil, metade da população de 108 mil habitantes vive com menos de R$ 1.000. É uma quantia bem distante daquela de outros munícipes, como a do atacante Paolo Guerrero, que ganhava R$ 480 mil mensais do Corinthians - está indo para o Flamego -, ou do apresentador Marcelo Rezende, que recebe todo mês R$ 400 mil da TV Record.

A diferença pode ser ainda maior, afinal, a base de dados usada para esse ranking foram as respostas espontâneas ao Censo de 2010. Se fossem usadas as declarações do imposto de renda, a disparidade seria muito maior. Mas a Receita Federal, responsável sobre esses números, não totaliza essa informação. Recentemente, o órgão estatal disponibilizou dados para uma pesquisa da UNB (Universidade Nacional de Brasília) que apontou a desigualdade no país a mesma entre 2006 e 2012, mesmo com os programas de transferência de renda dos governos petistas. No mesmo período, o IBGE tinha apontado que a desigualdade havia caído 3%.

A invasão dos condomínios

Confira a trajetória de Santana de Parnaíba: de município rural que remonta ao período colonial do país a uma cidade dividida por muros entre loteamentos de luxo e outros populares

até 1975

distrito
rural

distrito
rural

distrito
rural

distrito
rural

distrito
rural

distrito
rural

centro
histórico
Casario da época que a cidade era o ?Berço dos Bandeirantes?

sítio de
migrantes
japoneses

rio
tietê

distrito
rural

fazenda
tamboré
Propriedade da família quatrocentona Álvares Penteado

mata atlântica
e plantação
de eucaliptos

2015

bairro
popular
A partir da década de 1990 começam a se multiplicar loteamentos de bairros populares

ÁREA DE NOVOS
LOTEAMENTOS
Áreas de muitas construções de condomínios destinados para a classe média-alta

aldeia
da serra
É outro exemplo de condomínio de luxo que cresceu a partir de bairro cercado de Barueri

bairro
popular
A partir da década de 1990 começam a se multiplicar loteamentos de bairros populares

centro
histórico
Casario da época que a cidade era o ?Berço dos Bandeirantes?

ÁREA DE NOVOS
LOTEAMENTOS
Áreas de muitas construções de condomínios destinados para a classe média-alta

rio
tietê

bairro popular A partir da década de 1990 começam a se multiplicar loteamentos de bairros
populares

alphaville
e tamboré
Condomínios de luxo cresceram a partir da década de 1980 como prolongamento de empreendimentos de Barueri

ÁREA DE NOVOS
LOTEAMENTOS
Áreas de muitas construções de condomínios destinados para a classe média-alta

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PROTETORADO?

A distância abissal entre classes é desde a colonização um componente formador da tal brasilidade. Não por nada, as telenovelas contam com "núcleos ricos" e "núcleos pobres" em suas tramas. Por aqui não há imposto sobre grandes fortunas, grandes heranças nem taxas progressivas para ganhos de capital. A adoção dessa política fiscal é apontada pelo cultuado economista francês Thomas Piketty, autor do best-seller "O Capital no Século 21", como solução para que países capitalistas dinamizem suas economias e sejam mais justos.

A Constituição de 1988 previu a criação de um tributo sobre grandes fortunas, mas sua regulamentação tramita no Congresso desde aquela época - até o então senador Fernando Henrique Cardoso apresentou um projeto em 1989, mas quando era presidente esqueceu-se do tema. A atual equipe econômica já acenou com impostos sobre herança e fortuna. Ficou no aceno até agora.

O problema de Santana de Parnaíba também passa por sua política local. Nos últimos dois anos, dois prefeitos foram afastados por improbidade. O curioso é que eles eram pai e filho. Enquanto cada condomínio ostenta em média 60 seguranças, a guarda civil municipal está em greve desde o início de 2015.

O município tem 13º maior imposto territorial do país (IPTU), mesmo assim a arrecadação pouco se traduz em serviços públicos. O exemplo é o bairro Pingo D'Água, que é abastecido por caminhões-pipa e recebeu luz e pavimentação apenas no último ano. "Só trouxeram os postes e o asfalto porque ergueram um condomínio aqui do lado. A prefeitura ficou com vergonha", argumenta a dona de casa Valquíria da Silva.

Por essas e por outras que a emancipação de Alphaville-Tamboré ganha força entre seus moradores de tempos em tempos (o último movimento foi em 2012). Mas uma lei estadual exige que todos os eleitores de Santana de Parnaíba e Barueri votem em plebiscito para que o município suntuoso vire realidade, o que é muito difícil.

Se acontecesse, a cidade contaria com um time forte de futebol, afinal, muitos jogadores brasileiros que defenderam equipes europeias voltaram ao Brasil com o gosto pela privacidade dos condomínios. Cafu, Rivaldo, Denílson, Viola e outros buscaram abrigo lá. Também os corintianos montaram concentração no local, casos de Emerson Sheik, Cássio e Jadson, por exemplo. Há também são-paulinos (Ganso), palmeirenses (Zé Roberto) e santistas (Ricardo Oliveira). Até poucos anos atrás, as estrelas do futebol preferiam morar em bairros vizinhos aos clubes.

Ilustres de Alphaville-Tamboré

População flutuante dos condomínios de luxo de Santana de Parnaíba e Barueri


FAZ DE CONTA

Antes dos boleiros, os ídolos da música já tinham invadido o "protetorado" de Alphaville-Tamboré, chamado também como a "Beverly Hills brasileira". A dupla sertaneja Zezé Di Camargo e Luciano está há duas décadas na área e foi seguida por Fábio Júnior (criou seu filho e astro Fiuk por lá), a banda Calypso, Roberto Leal e, mais recentemente, Luan Santana.

Já a lista de celebridades da TV é gigante. Tem donos de concessões, como Silvio Santos e suas filhas (SBT) ou Amilcare Dallevo Jr. e Marcelo de Carvalho (RedeTV!), que se recolhem aos aposentos com suas funcionárias e mulheres, Daniela Albuquerque e Luciana Gimenez, respectivamente.

Dallevo, aliás, ergueu no alto de um morro de mata nativa o que é considerada a maior mansão do país, com 17.800 metros quadrados de área construída, hangar para quatro helicópteros e estacionamento subterrâneo para 50 carros. No mesmo município está a casa de menos de 15 metros quadrados em que Núbia Gonçalves mora com o marido e três filhos. O barraco é feito de madeirite e fica à beira de um brejo. "Em vez de ajudar, a prefeitura vem aqui só para despejar a gente", reclama. Núbia atualmente é dona de casa, mas já trabalhou como faxineira em duas casas de Alphaville, por R$ 70 a diária. "Larguei porque as patroas não estavam mais me pagando. Esse pessoal tem tanto dinheiro e ainda atrasam nosso pagamento."

No hall da fama local não falta espaço para aqueles que vivem retransmitindo a violência da cidade real, mas habitam em um bairro fortificado. São os casos de José Luiz Datena, Marcelo Rezende, César Filho, Geraldo Luís e Fabíola Gadelha. A lista de televisivos inclui Gugu, Rodrigo Faro, Eliana, Ratinho, Celso Portiolli, Milton Neves e Rachel Sheherazade. Há três décadas no ar, Carlos Alberto de Nóbrega recebe todos os tipos populares no banco do humorístico "A Praça É Nossa". A cena é impossível no condomínio onde ele mora, um pedaço de Primeiro Mundo que adorna a periferia pobre da Grande São Paulo. Ricos e pobres juntos, só na ficção.

Rodrigo Bertolotto

Repórter do UOL Notícias. Só moraria em um condomínio que tivesse mendigos de crachá e trombadinhas contratados.

tabuol@uol.com.br

Esta reportagem também contou com apoio de:

Rodrigo Bertolotto, reportagem. Raphael Villar e Felipe Santos, câmera.

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