A agência de viagens online 123milhas ignorou alertas internos sobre o prejuízo do Promo123 e, segundo ex-funcionários, mentiu a autoridades e clientes durante a crise que levou a empresa a pedir recuperação judicial, em 2023.

Nos últimos meses, o UOL acessou documentos e ouviu mais de 50 ex-funcionários de diversos departamentos e níveis hierárquicos. Eles revelam o caos que se instalou na 123milhas após o cancelamento de milhares de passagens aéreas que a agência vendeu barato, mas não conseguiu entregar. Todos terão suas identidades preservadas.

"A gente sabia que, no fim, o cliente não teria nunca as passagens", conta uma ex-supervisora. "Eu tinha que ouvir o gestor, mentir para o cliente e fingir que estava tudo bem."

No fim de agosto de 2023, a 123milhas demitiu quase mil funcionários e passou a enfrentar mais de 16 mil ações judiciais. Hoje deve cerca de R$ 2,5 bilhões a mais de 800 mil pessoas físicas e jurídicas.

No pedido de recuperação judicial (instrumento jurídico que congela cobranças por até seis meses), a empresa alegou "circunstâncias de mercado adversas" para explicar a crise.

Procurada pelo UOL, a 123milhas afirmou que "a crise financeira gerada pelo produto Promo e pelas condições adversas do mercado tem relação com equívocos ou deficiências de gestão, reconhecidos e corrigidos, mas não houve má-fé".

Na última quinta-feira (1º), 17 endereços relacionados ao grupo foram alvo de mandados de busca e apreensão durante investigação da 14ª Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor da Capital, de Belo Horizonte, dessa vez por suspeita de estelionato e lavagem de dinheiro.

ERROS E MANOBRAS CONTÁBEIS

A 123milhas foi fundada em 2016, em Belo Horizonte, pelos irmãos Augusto e Ramiro Madureira. A ideia era oferecer passagens aéreas a preços baixos.

Um dos modos era o Promo123, uma linha promocional com datas flexíveis, idealizada por Augusto e lançada em 2021. Uma ferramenta de busca, como um bot, vasculhava os menores preços para comprá-los na hora certa.

A empresa investia pesado em publicidade. Só naquele ano foram R$ 2,37 bilhões injetados em anúncios, com garotos-propaganda como o sertanejo Zezé di Camargo e o apresentador Bruno De Luca, transformando o grupo no maior anunciante do país naquele ano, segundo ranking do Meio & Mensagem com a consultoria Kantar.

Só que R$ 1,3 bilhão gasto com publicidade não foi registrado como despesa no balancete, mas como investimento ("ativo intangível", na terminologia usada pela empresa), indicam documentos acessados pelo UOL. Em outras palavras, a 123milhas jogou durante anos como "positivo" um item que deveria ser "negativo" no balanço.

É um erro, segundo o relatório financeiro da consultoria KPMG, contratada pela vara em que tramita a recuperação judicial pedida pela empresa. O processo foi suspenso pela Justiça de Minas Gerais em 26 de janeiro.

Foi essa manobra que, entre 2020 e 2022, permitiu à 123milhas distribuir dividendos (lucro) de quase R$ 30 milhões para os sócios do grupo, a família Madureira: além de Augusto e Ramiro, a irmã Cristiane, e a esposa de Augusto, Tânia.

Não fosse esse artifício, a empresa teria fechado no vermelho por três anos seguidos (2020, 2021 e 2022).

Ouvida pela reportagem, a 123milhas afirmou que "jamais pretendeu lesar e tampouco gerar vantagens indevidas a quem quer que seja, à custa dos seus clientes", e que "quase todo o lucro distribuído nos últimos anos foi reinvestido na empresa por seus sócios, na forma de empréstimos".

A empresa também contesta o valor investido em publicidade (segundo a assessoria de imprensa, foram R$ 937 milhões entre 2021 e 2022) e a análise da consultoria sobre o balanço operacional: "Não é verdade que o Grupo 123milhas operava no vermelho desde 2020 ou que tenha manipulado resultados para distribuir dividendos aos sócios. Essa é uma interpretação da KPMG da qual a 123milhas discorda".

'AUGUSTO SABE O QUE ESTÁ FAZENDO?'

Uma versão experimental do Promo123 foi lançada na Black Friday de 2021. "Deu muito certo", lembra um ex-funcionário, também sob condição de anonimato.

Augusto Madureira se empolgou: com propaganda massiva e preços atrativos (ida e volta para Miami por R$ 849, por exemplo), a empresa esperava ter um caixa cada vez mais forte. Mas quem estava nas operações do dia a dia viu que os gastos iam além do que era possível bancar.

"Foi na época do Rock in Rio de 2022: a passagem tinha sido vendida por R$ 1.000, mas na hora de emitir, mais perto da data do festival, custou para a empresa R$ 7.000. Onde está o lucro? Não tinha lógica."

Uma ex-colaboradora conta que procurou o gerente Deusdedith Martins para perguntar: "Augusto sabe o que está fazendo? Não tem como o Promo dar certo: o cliente está comprando a passagem por R$ 300 e a gente está pagando R$ 1.500 para emitir'. E ele dizia: 'Augusto sabe e mandou continuar'."

Ex-funcionários dizem que procuraram chefes e até o compliance para alertar sobre a insustentabilidade do modelo. À reportagem, a 123milhas diz que não recebeu nenhuma ressalva formal sobre o Promo123 no compliance.

Diversas projeções de caixa foram feitas buscando alternativas para contornar os prejuízos do Promo123. "Uma gambiarra para tentar fazer a conta fechar", relata um ex-funcionário.

Na nota enviada à reportagem, a 123milhas afirmou que "não irá comentar informações em off prestadas por ex-funcionários".

O TAMANHO DO ROMBO

À CPI das Pirâmides Financeiras, em setembro de 2023, Ramiro Madureira foi impreciso sobre quando a 123milhas identificou a crise. "A partir do segundo tri... [...] Quando chegou junho, julho, agosto, vimos que realmente os preços não estavam dando oportunidades de emitir nessa linha promocional [Promo123]."

Mas ex-colaboradores relataram ao UOL que o rombo do Promo123 vinha de antes. Só em 2022, de acordo com documentos acessados pela reportagem, foram R$ 311 milhões de prejuízo relacionado à linha promocional. Dos R$ 2,5 bilhões que a empresa deve hoje, R$ 1,1 bilhão se refere apenas ao Promo123.

Internamente, o discurso oficial dizia que se tratava de "só mais uma crise", que ninguém precisava se preocupar, pois o Promo123 representava 5% ou 7% do faturamento da empresa.

À CPI, Ramiro também minimizou: disse que o produto era uma "porcentagem pequena", de até 15%, dos negócios.

Mas o UOL apurou que, em julho de 2023, o Promo123 representou 45,15% das vendas do grupo -- 261 mil das 578 mil vendas de passagens aéreas e hospedagens foram na linha promocional. "Era uma bomba, uma bola de neve", definiram ex-funcionários.

'SALA DE GUERRA'

Desde janeiro de 2023, a 123milhas vinha demitindo funcionários, aos poucos. "Janeiro, 30. Fevereiro, mais 30", relata uma ex-coordenadora responsável pelos cortes de um setor. Maio, até então, havia sido o mês com mais demissões.

Em julho veio o susto: segundo as regras do Promo123, a empresa precisava emitir passagens até dez dias antes do embarque do cliente, mas, para ter melhores preços e maior margem de lucro, a antecedência deveria ser de ao menos 60 dias.

No fim daquele mês, funcionários estranharam que as passagens previstas para setembro ainda não tinham sido emitidas.

O tombo aconteceu na tarde de 18 de agosto, quando a empresa anunciou a suspensão do Promo123.

Após o anúncio, feito por volta das 18h, a fila de espera de atendimento saltou de 30 para 18 mil, segundo relatos. No ReclameAqui e no Consumidor.Gov, o mesmo tipo de demanda subiu de 10 para 300. Uma "sala de guerra" foi montada para tentar controlar a crise.

DEZ DIAS DE CAOS

Segundo diversos ex-colaboradores, o trabalho foi intenso, tentando tranquilizar os milheiros (quem vende milhas) e os clientes (que adquiriram passagens aéreas). "Eles [123milhas] estavam precisando muito do pessoal. Até que não precisaram mais."

Mais de 900 pessoas foram demitidas na manhã de 28 de agosto. No dia seguinte, a empresa pediu recuperação judicial -- o que quer dizer que os ex-funcionários só poderão receber as verbas das rescisões após o fim do imbróglio na Justiça, que pode levar anos.

No pedido, a 123milhas alegou que não conseguiu honrar o que vendeu devido ao aumento dos preços das passagens pós-pandemia e a outros fatores, como a mudança nos sistemas de segurança das companhias aéreas.

A mudança refere-se a um dos fatores fundamentais para o Promo123 funcionar: o mercado paralelo de compra e venda de milhas aéreas -- uma jabuticaba que só existe no Brasil.

Em tese, beneficiários de milhas (de programas de fidelidade de companhias aéreas) não podem comercializá-las. E, em tese, uma empresa não poderia comprar milhas para emitir passagens aéreas para terceiros. Isso porque esse mercado não é regulado, diz o advogado Douglas Galiazzo, professor do curso de direito da Estácio.

Só que é isso que a 123 Milhas vinha fazendo, através de outras empresas do grupo, como a HotMilhas e MaxMilhas.

O UOL procurou companhias aéreas por email, mas nenhuma delas quis comentar o caso. A Latam destacou, via nota, que nunca negociou com o grupo 123milhas e que o regulamento do seu programa de fidelidade proíbe a venda de milhas.

PIRÂMIDE 'SUI GENERIS'

Na CPI, o deputado federal Áureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), presidente da comissão, leu um email do grupo 123milhas que orientava um consumidor a mentir: "Caso a companhia aérea entre em contato com você, deverá informar que doou suas milhas para algum amigo ou parente e que está ciente de todas as atualizações".

Questionado sobre o assunto na CPI, o ex-diretor e consultor Marcos Brandão disse desconhecer o teor do email e atribuiu indiretamente a responsabilidade a funcionários: "Em uma empresa que tem 1.500 colaboradores, ocorre de tudo".

Ex-funcionários ficaram revoltados com as declarações.

"A gente era obrigado a dizer: caso a companhia entre em contato é para dizer que está ciente das emissões e que doou milhas para um amigo ou familiar. Se não dissesse, a gente era repreendido."

"É uma pirâmide sui generis brasileira", definiu ao UOL o deputado federal Ricardo Silva (PSD-SP), relator da CPI, cujo relatório final pediu o indiciamento dos Madureira por estelionato (artigo 171 do Código Penal), entre outros crimes.

"Todo mundo lembra do golpe que os clientes levaram, mas ninguém lembra dos funcionários", diz um ex-colaborador. "Os clientes perderam as viagens dos sonhos, mas a gente perdeu a fonte de renda. Tem família, tem filho autista, tem mãe solo com três filhos pra sustentar. A gente saiu com uma mão na frente e outra atrás."

Enquanto aguardam as decisões sobre a recuperação judicial, que pode levar anos, ex-funcionários tentam tocar a vida. "A vida continuou para os ricos, né?", comenta um ex-analista. "Eles [os Madureira] continuaram dirigindo carrões, tendo lucro. E nós?"

Muitos relatam que não querem processar a 123milhas, pois dizem que, até então, era um lugar legal de trabalhar. "Torço para a empresa se reerguer para pagar o que deve", diz um ex-colaborador. "Sei que vou receber, a questão é: quando?"

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A primeira versão desta reportagem afirmava que o prejuízo causado pelo Promo123 em 2022 era de R$ 311 mil. Na realidade, o prejuízo foi de R$ 311 milhões. A informação foi corrigida.

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